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O rato da cidade e o rato da aldeia

 

Um Rato usado à cidade,

Tomou-o a noite por fora;

(Quem foge à necessidade?)

Lembrou-lhe a velha amizade

De outro Rato, que ali mora.

Faz um homem a conta errada

Muitas vezes, e acontece

Crescimento na jornada;

Diz, e entretanto na pousada,

Cidadão logo parece.

O pobre assi salteado

De um tamanho cortesão,

Em busca de algum bocado,

Vai e vem, sempre apressado,

Sem tocar cos pés no chão.

Ordena a sua mezinha,

Pôs-lhe nela algum legume,

Mesura, quando ia e vinha,

Deu-lhe tudo quanto tinha,

Pede perdão por costume.

Diz, quem tal adivinhara,

Contra o cortesão severo,

Que tanto andara e buscara,

Té que alguma cousa achara,

A quem tanto devo e quero?

Cumpre porém nesta mesa,

Que haja mais fome, que gula:

Tem-lhe a fogueirinha acesa,

Faz rostro ledo à despesa,

Vê-a o outro, e dissimula.

E dizendo está consigo:

Que gente a dentre penedos!

Quando há de Pedro e Rodrigo!

Que bem diz o exemplo antigo,

Que não são iguais os dedos.

Ora, depois de comer

Jazendo detrás do lar,

Começa o nobre a dizer:

Dous dias, que hás-de viver,

Aqui os queres passar?

Na aspereza do deserto,

Que não sei quem o suporte,

De urzes e de tojos coberto,

Sendo tudo tão incerto,

Sendo só tão certa a morte?

Vive, amigo, a teu sabor;

Mais é que cousa perdida

Quem por si escolhe o pior;

Vai-te comigo onde eu for,

Lá verás que cousa é vida.

E depois que ambas provares,

(Que eu de outrem não adivinho)

Quando te enganado achares,

Aqui tens os teus manjares,

I também tens o caminho.

Assi disse; eis o vilão

Em alvoroço e balança,

Ia, e vinha o coração,

Ora si, e ora não;

Venceu porém esperança.

E que pode i al fazer!

Vive com tanto suor,

E mal pode inda viver;

Mal pode o amo vencer,

Sempre a saída é maior.

E diz: Quem não se aventura,

Não ganha; quem há que o negue?

Escolheram hora segura,

Foram pela noite escura;

Que o rico, o pobre segue.

Entram por paços dourados,

Cheirosos inda da ceia;

Tristes dos casais colmados,

Do sol, do vento queimados,

Pobre e faminha da aldeia!

Vou-me por meu conto avante;

Mostra-lhe o cidadão tudo,

Que traz no bucho um Infante;

Quem quereis que não se espante?

Anda o vilãozinho mudo.

Que somente em provar

Das cousas, que mais lhe aprazem,

Já começam de enjeitar;

Fartos para arrebentar

Em lãs estrangeiras jazem.

Nisto o despenseiro chega,

Que estes bens não duram tanto;

Vê-os, mas a pressa o cega,

Um tiro, ou dous mal emprega,

Corre-os de canto em canto.

Os cães à volta se ergueram,

Ladram, que é alto serão.

As casas estremeceram;

Todos juntos lá correram.

Foi dita que os gatos não.

Sabia o da casa a manha,

Subiu o paço, e fugiu:

O Ratinho da montanha,

Aos pés em pressa tamanha

O coração lhe caiu.

Enfim passado o perigo

Da morte, que ante si vira,

O coitado só consigo

Polo seu repouso antigo,

Que mal deixara, suspira.

Minha segura pobreza,

Se chegarei a ver, quando

A vós torne, e esta riqueza,

Mal, que o mundo tonto preza,

Fuja, se puder, voando!

Ai baldias esperanças,

Meu entendimento fraco!

Deixemos tais abastanças,

Tais riquezas, tais mostranças,

Deus me torne ao meu buraco.

 

(Francisco de Sá de Miranda, Cart. III, est. 39, e segs.)

 

 

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