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…….. . Historias & Historinhas
Os
Caçadores de Bruxas Naquela
manhã, a avó de Berlinda acordou meio tarde, ouvindo o canto desafinado do
galo Carijó junto à sua janela. Nunca ele cantara tão fora de ritmo e com voz
tão fina e engasgada. Nena sentou-se na cama. Olhou o pequeno despertador
sobre a mesinha - já passava das sete horas. Dificilmente
ela deixava o sol surpreendê-la deitada. Levantava-se, sempre, antes das
cinco. Com as pontas dos pés, a velha procurou os chinelos debaixo da cama,
enquanto ouvia o desentoado Carijó cantando junto à janela. Mas seus pés não
encontraram os chinelos e, sim, uma coisa redonda e caroquenta. - Aí, Nena
sentiu uma friagem que lhe subia pelas pernas. Inclinou-se, então, para ver o
estranho objeto que tocara com os pés e deu com um enorme e balofo sapo
Cururu a olhá-la, debaixo da cama. Era o sapo Cururu de sua neta. Como fora
parar ali? Na certa, Berlinda teria esquecido de colocá- lo sob a bacia, no
terreiro, e ele, achando a porta da cozinha aberta, entrara para dentro de
casa. Um mau sinal. Sapo debaixo da cama só traz azar. A velha se benzeu três
vezes e deixou o leito de mau humor. Pegou, porém, o sapo pelas costas e o
levou para fora, atirando-o no terreiro. Ele foi cair sobre um tufo de capim
seco onde, ajeitando o corpo e fechando os olhos por causa do forte sol, por
pura preguiça, ficou quieto. O
galo tornou a cantar e a velha Nena volveu os olhos em sua direção. Seu
espanto foi enorme: quem cantava não era o seu galo Carijó, mas a pesteada da
galinha Pedrés. Ela estava sobre o pau da cerca do galinheiro, berrando feito
louca. Mais uma vez, a velha se benzeu três vezes e tocou a galinha dali: -
Xô, agourenta! Uma galinha que passa a arremedar um galo é sinal de muito
azar e péssimos agouros. Por isso, a velha Nena suspirou, resignada, enquanto
a galinha Pedrés corria para dentro do galinheiro. Ela estava pronta para
receber todos os azares daquele dia. Girou sobre os calcanhares e entrou na
cozinha. Tinha de fazer o café, acordar a neta para as aulas, arrumar a casa,
lavar as roupas e fazer o almoço. Sem dúvida alguma, aquele não era o seu
dia: levantara-se com o pé esquerdo, coberta de maus presságios. Antes de
terminar de coar o café, ouviu alguém batendo na porta da sala com muita
insistência. Teve que gritar peraí- já- vai umas quatro vezes. E quando abriu
a porta, deu com o carteiro da Prefeitura, um sujeitinho feio, de cabeça
redonda e cara amarrotada; tão feio que parecia estar chupando limão o tempo
todo. -
Bom dia, dona - cumprimentou o carteiro, batendo os dedos no boné. - É aqui
que mora Filomena Alinhagem de Marzagão? -
Sou eu mesma - respondeu a velha Nena, sem muito entusiasmo. O
carteiro tirou um envelope pardo do meio dos outros e o entregou à velha.
Disse: - Até logo E tocou a bicicleta morro abaixo. A velha seguiu até onde
seus olhos puderam acompanhá-lo e depois entrou em casa. Foi à cozinha, à
procura dos óculos. Sem eles, seria impossível ler uma única palavra daquela
carta. Não os encontrou em parte alguma. Como não podia perder tempo em
procurá-los por toda a casa, resolveu acordar a neta e pedir-lhe que lesse a
carta. Achou a neta acordada, brincando com o gatinho negro sobre a cama. -
Bom dia, Berlinda! Um carteiro acaba de me entregar esta carta. Como não
consigo encontrar meus óculos, quero que você a leia para mim. A
menina deixou o gato no colo, abriu a carta para a avó e leu: PREFEITURA
MUNICIPAL DE PATAFUFO GABINETE DO PREFEITO SR. ARISTIDES GARRAS DE GAVIÃO Patafufo, 12 de agosto de 1986. Ema. Sra. FilomenaAlinhagem de Marzagão
Serra do Curral, s/ n Município de Patafufo Prezada Senhora: Como o progresso não
pode parar e meu mandato tem que ser coroado de êxito, resolvi solicitar
vossa presença em meu Gabinete. Sua visita mui nos honrará e trará
benefícios inimagináveis à nossa cidade. Há muito que venho estudando um
projeto faraônico, que consiste em passar uma rua sobre sua casa, ligando a
Serra do Curral à Serra das Piteiras. Como sei que poderei contar com sua
preciosa ajuda e consideração, aguardo sua visita. Prometo oferecer- lhe um
acordo vantajoso e de real Valor. Sem mais, com minha estima e consideração,
Me coloco ao seu inteiro dispor, subscrevendo- me. Atenciosamente, Aristides Garras de Gavião Prefeito de
Patafufo Quando
Berlinda terminou de ler a carta, a avó fez careta e com raiva disse, entre
dentes: -
Aquele cachorro! Não vou fazer acordo nenhum com ele. Pensa que sou boba! Não
arredo o pé desta casa. -
Nós vamos ter que mudar daqui, vó? -
Nunca! Só se for por cima do meu cadáver! A velha Nena pegou a carta da mão
da neta e saiu furiosa do quarto. O
gato fez carinho na perna da menina e moveu-se com muito dengo. Berlinda
ergueu-o até os olhos e, fitando-o, disse-lhe: -
Você ouviu, Xano? É capaz de a gente perder a casa. Eu não quero sair daqui,
vovó também, não quer, nem você quer. Temos que fazer algo se quisermos
permanecer aqui. Xano
soltou um miado agudo e pulou das mãos de Berlinda para o chão. Correu para
fora. Berlinda espreguiçou-se e deixou a cama. Foi ao guarda-roupa e retirou
o uniforme escolar. Xano atravessou, ligeiro, a sala e a cozinha, deu uma
olhadela na velha Nena pondo a mesa para o café, estacou- se junto ao fogão,
sentou- se nas patas traseiras e, por uns momentos, ficou ouvindo a velha
xingar: -
Aquele explorador não vai me tirar daqui. Ele não me conhece. Ele não sabe
quem é Filomena Alinhagem de Marzagão! Não arredo o pé daqui nem a poder de
bala. E quando eles vierem, que venham prontos e armados até aos dentes. Vou
recebê-los com chumbo grosso! Xano
seguia a velha com os olhos. Sabia que ela era osso duro de roer. Capaz de
“ar com meio mundo quando tinha razão. O Prefeito não podia tirá-la da Serra
do Curral por causa de uma estrada. Não era justo. Xano, como todos os outros
animais da Granja, tinha nascido e crescido ali. A Granja era seu lar e por
ela sentia necessidade e obrigação de brigar: -
Aquele prefeitinho de meia tigela vai aprender com quantos paus se faz uma
canoa. Não pense que vai me vencer facilmente - concluiu a velha Nena,
decidida. Xano
viu Berlinda entrar na cozinha e sentar- se para tomar café. – A
senhora vai lá conversar com o Prefeito, vó? -
Não! Se ele quiser, que venha aqui. Não vou perder tempo com aquele safado! -
resmungou a velha, servindo o café à neta. - Ele pensa que me engana. Sei que
há mais coisas por trás disso tudo. Ele não se preocupa, nem quer o bem da
cidade. Só olha se seus bolsos tão cheios de dinheiro dos contribuintes. Berlinda
reparou na agitação da avó. Seus nervos estavam à, flor da pele. E, por um
momento, temeu pela sua saúde. -
Melhor a gente não se preocupar com isso, vovó. - Eu
me preocupo, sim resmungou a velha. - Nasci aqui, me casei aqui, e moro aqui
há sessenta e quatro anos; não vou deixar nenhum prefeito safado me tirar
daqui. Se for preciso, declaro guerra contra a Prefeitura, contra a Câmara de
Vereadores, contra o Governo do Estado, mas ninguém me tira daqui. Berlinda
achou melhor trocar de assunto, a avó estava ficando cada vez mais agitada. -
Sabe, vó, ontem a Coruja que mora no depósito de milho fez as pazes com o
Xano - disse Berlinda. - Acho que eles vão parar de brigar por uns tempos. - É
bom mesmo. E vê se você prende direito aquele sapo no terreiro. Hoje ele
amanheceu debaixo de minha cama. Eu quase pisei nele. - O
Coác não toma jeito mesmo, vó - disse Berlinda, rindo. A
menina terminou o café, pegou uma tigela e encheu-a de leite. Depois a
colocou diante do Xano. Ele miou agradecido e começou a lamber o leite.
Berlinda apanhou a pasta escolar e despediu-se do gato, dando-lhe um leve
puxão de orelha. - Vê se comporta direito na minha ausência, heim?! Obedeça à
vovó e não saia batendo pernas por ai como um gato vagabundo. Em seguida, deu
um beijo na avó e saiu para a escola. A velha Nena deixou Xano tomando seu
leite e foi varrer a casa. Ia ter um dia muito atarefado. Tinha começado mal.
Acordara tarde, ouvindo a galinha Pedrês cantando como galo; quase pisara no
sapo e, por fim, recebera aquela maldita carta. Era um dia de maus
presságios, sem dúvida alguma. Ao
passar diante da folhinha, teve a curiosidade de olhar que dia era aquele tão
azarado. O calendário indicava sexta-feira, 13. Pior dia, impossível gente. -
Há dias em que é melhor a sair da cama - resmungou a velha Nena para si
mesma. UM
GRILO SABIDO Xano
lambeu até a última gota de leite da tigela e saiu para o quintal. Pulou
sobre a cerca do galinheiro e andou tranqüilamente sobre a tábua que não era
maior que a sua pata. Atravessou toda a extremidade da cerca com passos
mansos e firmes como se estivesse andando no chão. O galo Carijó, junto ao
portão do galinheiro, seguiu, desconfiado, os movimentos de Xano. Ele não gostava
muito do gato. Considerava o bichano um vaidoso que adorava exibir suas
peripécias. Talvez fosse por causa da agilidade e esperteza do gato que o
Carijó o detestava. O galo já era bem velho, seus anos de energia haviam sido
estagnados. Agora, ele se limitava a dormir dia e noite. Não mais gostava de
saudar a manhã nem de governar o galinheiro. Estava muito velho, muito
cansado. Xano atingiu o fim da cerca e saltou para o chão. Antes, porém, de
voltar a andar, deu uma olhadela para o galo e fez careta para ele. O Carijó
fechou a cara e correu para a cerca aos tropeções. Veio de asas abertas,
soltando um cocoricó aflito. Tentou diminuir a marcha, mas estava perto
demais da cerca de arame. Bateu com o peito contra a cerca e foi arremessado
para trás. Caiu sentado, meio tonto, meio enfurecido. Xano
fez os seus bigodes agitarem- se num insulto e depois saiu pisando de leve no
chão, sem olhar uma única vez para trás. O
galo esticou o peito e gritou: Um dia você me paga, gato fedorento! Xano
nem tomou conhecimento da ameaça. Buscou o caminho que o levava ao brejo. O
Sol avançava para o meio do céu e da terra subia um mormaço misturado com
cheiro de plantas e barro úmido. Xano atravessou as moitas de capim-gordura,
cuidando para não sujar suas patas de barro, e encaminhou- se para o barracão
abandonado. Era uma velha construção feita de pau a pique. O esqueleto do
barracão havia sido erguido com finos Paus de lenha amarrados com cipó
rabo-de-macaco, sendo os buracos preenchidos de terra argilosa retirada do
próprio brejo. O gato, como a maioria dos animais que ali moravam, não sabia
quem tinha erguido aquele barracão e nem qual era a sua idade ou serventia.
Boa parte da construção tinha inclinado para o lado do brejo por causa do mau
tempo e do abandono. E a cada dia que passava, essa inclinação aumentava mais
ainda. Do telhado de folhas de buriti, restava apenas a metade. O resto fora
levado pelo vento. As paredes estavam rachadas e apresentavam pequenos
buracos, expondo o interior. Xano deu a volta por trás da construção,
evitando a lama, e pulou sobre a laje polida que ficava junto à porta. Olhou
de um lado para o outro e, por fim, fixou o olhar nos pequenos charcos que
formavam o brejo. Não encontrara nada que despertasse a sua curiosidade.
Apenas uma cigarra cantava não muito longe dali. Reparou mais uma vez no
barracão e, só então, percebeu que ele havia inclinado mais do que nos outros
dias. Um terço da porta estava mergulhado no brejo, e as dobradiças
enferrujadas a seguravam por um fio. Mais alguns dias e todo o barracão
estaria dentro do brejo. Há muito tempo, quando ainda era um gatinho, Xano
vinha brincar ali. Gostava
de Perseguir os ratos que moravam nos buracos e também gostava de dormir
sobre o telhado de buriti. Passara toda a sua vida naquele brejo e, agora, os
homens da carta iam acabar com ele e com a casa da velha Nena. Que seria dos
animais? -
Cri! Você já sabe da novidade, Xano?! Xano assustou-se e volveu os olhos para
a direita. Deparou com o pequeno grilo a seu lado, no meio de uma touceira de
capim. –
Que novidade - Cri! Que vão pôr a gente pra correr. -
Coisa decidida pela Prefeitura. Os homens, amanhã, vêm aqui pra demarcar a
estrada. Cri
sabia mais das coisas do que Xano. Se existia um grilo sabido, era o Cri.
Nada passava despercebido aos seus olhos ou ouvidos. Era tido como sábio e
conhecedor das coisas. - É
bom todo mundo tratar de ajuntar as trouxas, inclusive a feiticeira -
arrematou Cri, escorando-se numa das folhas do capim. A
feiticeira era a velha Nena. Ele a chamava assim por ela gostar de benzer os
outros, olhar sorte no baralho e viver fazendo remédios com todo tipo de raiz
que encontrava pela frente. - Eu
acho que ela não vai arredar o pé de casa confidenciou Xano, coçando o
focinho com uma das patas. -
Eles a tiram na marra. -
Não vão ter coragem de bater numa velha como a Nena comentou Xano, temeroso. -
Cri! Confie nessa e não reze não. Político, quando quer uma coisa, não olha
idade e nem respeita as coisas dos outros. Eles mandam e… acabou-se. O resto
que se dane. Xano
ficou preocupado. Se Cri estava afirmando aquilo, deveria ser porque era pura
verdade. -
Não podemos perder nossa morada, Cri. -
Claro que não! Gosto daqui. Sempre morei aqui. -
Precisamos fazer alguma coisa. - O
quê, por exemplo? -
Lutar pelo brejo - revelou Xano com certa decisão na voz. Devemos brigar por
tudo o que é nosso. Cri
deixou escapar um sorriso de ironia e disse: - Cri! Como você é ingênuo,
Xano! Desconhece os humanospolíticos. Eles têm máquinas poderosas que furam
buracos maiores que os de mil tatus juntos- Podem varrer isto aqui que você
está vendo -
Mesmo assim, acho que devemos ficar e lutar. -
Para sermos massacrados? - Se
preciso for, seremos massacrados. Lutaremos por um ideal - respondeu Xano,
decidido. - Penso
que não dará certo. -
Deixe de ser pessimista, Cri. Contra a união ninguém pode. Devemos unir todos
os bichos e lutar. Você topa ou não topa? Cri
pensou por uns instantes. Mediu as vantagens e as desvantagens. Não tinha
muito que perder com uma guerra assim. Os homens eram bichos difíceis de ser
derrotados, principalmente os homens-políticos; mas eles mereciam uma lição.
Não podiam sair por ai derrubando e cortando tudo que era árvore; secando os
lagos e lagoas, poluindo os rios e mares, pondo fim à fauna e à flora sem
serem punidos. E achou que se os bichos do brejo viessem a perder a guerra, o
seu exemplo de luta permaneceria a seria contado e cantado de geração em
geração. -
Também, eu topo - disse Cri, com firmeza. Xano riu de contentamento. Agora cabia a
cada um arranjar mais adeptos à causa. -
Que tal convocarmos alguns bichos e traçarmos uns planos? -
Boa idéia! - concordou Cri. –
Você tirou isso de minha boca. -
Poderemos nos reunir esta noite no barracão, propôs o gato. -
Será que ele agüenta tanto bicho aí dentro? – indagou Cri, depois de lançar
um olhar ao velho barracão. -
Claro que agüenta - afirmou o gato, todo eufórico. - O barracão será nosso
quartel general. Vou ver se consigo trazer Berlinda. O
grilo fez cara de descontentamento. Não aprova a presença de humanos. Não
tinha confiança neles. - Não seria melhor esperar para ver como as coisas vão
ficar? - indagou o grilo preocupado. - A presença de humanos aqui pode
assustar os outros bichos. Afinal, estamos; tramando algo contra os humanos. -
Mas Berlinda ama os animais. E ela quer ficar morando na Serra do Curral. -
Ela pode amar os animais, querer brigar por este pedaço de terra; mas não
deixa de ser humana - concluiu o grilo, com ar preocupado. -
Não podemos culpar todos os humanos e nem odiá-los por causa de uma minoria. Eta
gato danado! - pensou Cri. Ele às vezes consegue dobrar a gente. - Está bem,
você venceu, gato! Pode trazer a menina. Eu avisarei os outros bichos. -
Então, até logo, Cri. -
Até logo. Xano
pulou fora da pedra e caminhou para trás do barracão. Atravessou as moitas de
capim- gordura e sumiu. Cri o seguiu com os olhos. Depois pulou o charco,
voando para junto dos caniços. APENAS
HISTÓRIAS DE GATOS Ao
cair da tarde, antes do jantar, como fazia todos os dias, Berlinda sentou-se
no chão da sala e Xano veio deitar-se confortavelmente em seu colo. A menina
abriu o livro e, antes de começar a lê-lo, avisou ao gato: - Vê
se fica quieto, heim, Xano! O
gato soltou um miado manhoso e semicerrou os olhos. A menina pode ver as duas
pupilas dilatadas, parecendo dois globos luminosos, sob as pálpebras. Durante
o dia, eles se transformam em apenas dois estreitos riscos negros. Então,
Berlinda leu: O gato surge para a vida durante a noite. Escapa dos
malfeitores pulando de telhado em telhado, com os olhos a brilhar através da
escuridão.
Berlinda
parou de ler, desviou os olhos do livro e fitou o gato, dizendo-lhe: -
Que vidão tinham os gatos lá no Egito Antigo, heim, Xano?! -
Mas isto deve ter sido muito tempo atrás, Berlinda - respondeu-lhe o gato,
sem tirar a cabeça do colo da menina. - Nem me recordo disso direito. –
Isto foi a três mil anos atrás, seu bobo! - É,
pode ser isso ai – sussurrou Xano de olhos moles, quase fechados. - Continue
a ler. Gosto de ouvir coisas boas. Leia mais sobre esse tempo maravilhoso em
que os animais eram respeitados, principalmente nós, os gatos. Berlinda
riu e voltou ao livro: No tempo dos Faraós, matar um gato era crime e o assassino
era linchado pela multidão. E quando morria um cão em casa, os moradores
raspavam todos os pêlos do corpo. O principal deus do Egito Antigo, Ámon, era
representado como um humano com cabeça de carneiro sobre os ombros. Ápis era
um touro sagrado adorado na cidade sagrada de Mênfis e todos o respeitavam
como se fosse a imagem de um deus vivo. Havia também a maravilhosa Fênix que,
segundo os gregos, era do tamanho de uma águia, com topete na cabeça, dourada
no pescoço, cauda branca matizada de penas vermelhas e olhos brilhantes.
Vivia acima de quinhentos anos e, quando sentia que seu fim estava próximo,
voava para o deserto. E ali, na duna mais alta, fazia um ninho com plantas
odoríferas e nele permanecia até que os raios do sol queimassem o seu corpo, restando
apenas as cinzas. Das cinzas, nascia uma outra Fênix. -
Que tal você saltar esses parágrafos que falam de outros bichos e ler mais
sobre os gatos – pediu Xano, sem abrir os olhos. -
Como você é egoísta, Xano! -
Não é que eu seja egoísta. Eu gostaria de ouvir mais coisas sobre os gatos. -
Está bem - concordou Berlinda, com a cabeça. Ela
saltou vários parágrafos, procurando só os que falavam de gatos, e leu: Nos
tempos quase pré-históricos do Egito, habitava a região uma espécie de gato
selvagem que era conhecido pelo nome de Chaus. Possuía uma cauda curta, muito
pêlo, e era agressivo e grande caçador. Os gatos atuais do Egito são
descendentes desses Chaus. A partir do Império Médio, ou seja, há dois mil
anos antes do nascimento de Jesus Cristo, os gatos passaram a ser
domesticados e representados na pintura e escultura egípcias, tendo um
considerável papel na cultura da época. Acredita-se que os gatos têm uma
grande relação com a natureza. Os nativos da Indonésia, em tempos de seca,
achavam que era possível atrair a chuva apenas atirando algumas gotas de água
sobre o gato. No Brasil, muitos afirmam que quando um gato pula e corre
nervosamente, é sinal de muito vento. E se ele coça as orelhas com
insistência, é prova de que haverá muita chuva. E caso ele se sente de costas
para o fogo, é aviso de tempestade. Berlinda
ainda folheou o livro, mas não encontrou mais nenhum parágrafo sobre os
gatos. -
Aqui não diz mais nada sobre gatos, Xano. O
gato fez cara feia e lançou um olhar de desprezo ao livro aberto no colo da
menina. - Livreco fajuto. Este livro não presta - concluiu ele. Berlinda
fechou o livro e disse-lhe: - Você tem que aprender que todo livro presta,
Xano. Não existe livro ruim. -
Livro que não fala de gatos não vale nada - insistiu Xano. -
Deixe de dizer bobagem. Só porque um livro não trata de determinado assunto,
isto não quer dizer que ele não vale nada. - Eu
penso assim. E pronto. Berlinda
viu que nada adiantaria discutir. Xano não ia dar o braço a torcer. Não ia
voltar atrás. Era um cabeça-dura. Quando punha uma coisa na caixola, ninguém
tirava. Era por demais parecido com a velha Nena. Berlinda
se pôs em pé e disse ao gato: - Acho que é hora de irmos à tal reunião. Xano
espreguiçou-se e depois tomou o caminho da cozinha, pisando mansamente. A
menina o seguiu. A
REUNIÃO Um
bando de vaga-lumes, havia se colocado no meio do teto do barracão, servindo
de lâmpada. Mesmo assim, a claridade que jorrava de seus corpos mal dava para
iluminar os bichos que estavam sob o foco de luz. O barracão, superlotado;
todos os animais da Granja, ali; até animais de outros sítios distantes, de
granjas vizinhas. Como era mês de muito vento, Cri temia que o barracão não suportasse o peso
dos animais e a ventania o atirasse para dentro do brejo. Com a chegada dos
animais, as tábuas iam estalando, rangendo de uma extremidade à outra. Pregos
saltavam do velho madeirame, expondo gretas por onde atravessavam fortes
rajadas de vento. Já passava das dez horas e nada de Xano aparecer com a
menina. Muitos bichos, cansados de esperar, tinham adormecido e roncavam sem
parar. O Rónc, um velho e gordo porco alemão, dava formidáveis roncos que
faziam estremecer as paredes frágeis do barracão, ameaçando espatifá-las com
seu estrondoso chiado. Na verdade, ninguém ouvia o que o outro animal dizia.
O barulho do vento juntava-se às vozes dos animais e, nem mesmo gritando,
eles se entendiam. Cri, no meio da sala, impaciente e preocupado ao mesmo
tempo, não tirava os olhos da porta. Sabia que não devia esperar mais. Tinha
que começar logo a reunião ou, se não, poderiam acontecer duas coisas que
pareciam inevitáveis. Primeira:
todos os bichos adormeceriam e ninguém participaria da reunião. Segunda:
o mais trágico dos acontecimentos - o barracão não suportaria o peso dos bichos
e arriaria no charco, causando ferimentos e até mesmo a morte de muitos dos
presentes. AI, o grilo tomou uma resolução: abriu bem os pulmões e berrou o
suficiente para ser ouvido a uns dez quilômetros: -
Silêncio!!! Muitos
dos animais tiveram seus tímpanos doloridos. O berro do pequeno grilo
assustou até a si mesmo. Duas galinhas, que estavam dormindo no alto dos
caibros, caíram do poleiro com o berro e foram esborrachar-se no colo do
Rónc. O velho porco, gordo de fazer inveja a um elefante, deu um salto e se
pôs em pé, gruhindo feito louco. As
galinhas foram lançadas para o alto e saíram correndo como se tivessem
deparado com uma figura horrenda que só habita os pesadelos. Nenhuma
bomba teria feito tal estrago como o grito do pequeno grilo. Ele esperou que
o susto passasse e que os zunzuns de sua voz deixassem o interior do barracão
para, em tom baixo, falar: -
Caros amigos! Cri! Estamos aqui reunidos, não para conversarmos sobre
assuntos fúteis, mas para resolvermos um grande problema. Mais dias, menos
dias, estaremos sendo enxotados destas terras. E só a natureza sabe para onde
iremos. Perderemos mais uma vez nossa morada. Seremos de novo enxotados e
expulsos de nossa terra. Cri! - Só
sairemos mortos! - gritou um pequeno pirilampo no alto do teto. - Só arredo o
pé destas terras morto. -
Nós também! - chiou um bando de ratazanas no canto do barracão. Os
gritos de protesto cresceram, chegando a tomar conta do recinto. Cri
esperou que o silêncio voltasse a reinar e disse: - Sei que ninguém quer sair
daqui. Sei também que temos poucas chances de ficar. Cri! Mais
uma vez os gritos de protesto encheram o barracão. Os pássaros que não
puderam gritar, assobiaram com impetuosidade; outros animais bateram as patas
no assoalho, estremecendo todas as paredes. Cri pediu silêncio e calma com
acenos de mãos, sendo logo obedecido. -
Então, prosseguiu: - Temos de enfrentar os homens que virão aqui a partir de
amanhã. Cri! Eles demarcarão terreno por onde passará a tal estrada. Sei que
nossas forças de nada valem contra as máquinas do homem. Muitos de nós
perderão a vida. Mas, unidos, poderemos enfrentar os homens. Teremos mais
chances. Cri! - Eu
conheço os homens melhor do que ninguém - disse o Vira-Lata, avançando para o
grilo. -
Ele não pode depor contra os homens! - gritou a Maritaca, quase sem fôlego de
tanto cochichar com as suas comadres. - Todos os cães são amigos dos homens. -
Tem razão, Maritaca - concordou Cri, após- fitar o Vira- Lata. -
Sou amigo do homem até que o homem seja meu amigo disse o Vira- Lata com
firmeza na voz. - Quero que vocês não esqueçam que, antes de ser um amigo do
homem, eu sou um cão, um animal como vocês. -
Você é um espião! - enfatizou a Maritaca. - Você veio nos espionar para
depois ir contar tudo aos homens. -
Mentira! - rosnou o Vira-Lata, pronto para morder a Maritaca. - Estou aqui
para ajudar. Se não querem minha ajuda, então vou embora. E o
Vira-Lata encaminhou- se para a porta, abrindo caminho entre os animais. O
grilo ergueu a pata e gritou: - Espere, amigo! O
Vira- Lata parou e volveu apenas a cabeça para trás. E olhou por uns segundos
o grilo e a parte da multidão ali reunida. -
Você é bem- vindo, Vira- Lata. Pode ficar e fazer parte do grupo, se quiser. Alguns
animais deram tapas nas costas do cão, propondo que ele permanecesse ali. E o
incidente foi logo esquecido, porque a porta do barracão abriu- se e Berlinda
entrou seguida pelo gato. O galo Carijó, que até aquela hora não havia se
manifestado e se colocara num canto, ao ver o gato atravessar a soleira da porta,
enfureceu-se e gritou bem alto, para que todos os bichos ouvissem: -
Este maldito não pode fazer parte da reunião! Cri
voltou-se para o Carijó, que já estava de pé sobre um caibro, tendo as penas
arrepiadas. E como sabia que o galo- não suportava o gato, avisou: - É
melhor que vocês esqueçam as antigas divergências e se preocupem apenas com a
nossa causa - e, voltando-se para todos os animais, determinou: - Que todas
as brigas sejam interrompidas em favor de nossa luta contra os homens da
Prefeitura. Que nenhum gato persiga um rato e que nenhuma ave predadora
devore outra ave. As caças estão suspensas. - E
vamos comer o quê? Terra?! – indagou um Gavião, de mau humor. -
Não comeremos terra, mas frutas e legumes - propôs o grilo. -
Ficaremos tão bem alimentados como nunca. -
Muito bem! - gritou a Maritaca, eufórica, ao ouvir a referência a seus
alimentos prediletos. E
todos os animais bateram palmas para o grilo. Berlinda sentou-se no meio da
roda, sob a lâmpada de vaga-lumes. Colocou o Xano no colo e se pôs a escutar
tudo com bastante atenção. Cri cruzou as patas atrás do corpo e desfilou
pensativo em volta da menina. Depois, disse-lhe: -
Sei que você faz parte do mundo dos homens. Sei, também que nem todos os
homens são maus. Por essa razão, você é bem-vinda à reunião. Berlinda
sorriu para o pequeno grilo e, em seguida, para todos os que estavam à sua
volta. E falou: - Obrigada. Espero poder ajudar em algo. Eu e minha avó não
queremos deixar a Granja. Vamos lutar para ficar, como vocês. Todos os animais
bateram palmas e assobiaram novamente. Pela
terceira vez, o grilo pediu silêncio e começou dizendo: - Muito bem. Agora
vamos traçar os planos para permanecermos aqui na Serra do Curral. Como hoje
é sexta-feira, 13, chamaremos nossa luta de Caça às Bruxas. Cada um de nós
será um caçador e as bruxas serão os homens que querem nos tirar daqui. Há
muito tempo que nós, os animais, sofremos nas mãos dos humanos. Somos mortos
por causa de sua ignorância. Somos caçados por puro prazer e somos banidos de
nossas terras por caprichos dos homens. É hora de irmos à luta. Caçaremos as
bruxas! Os gritos dos animais ecoaram pela noite adentro, sacudindo todo o
barracão. Mas nenhum animal pensava em vingança; somente em defender seu lar,
lutar até a morte pela posse e o direito de permanecer onde quisesse. AS
CARTAS DO TAROT A
velha Nena tirou da mesa o jarro de flores e a toalha. Abriu a pequena gaveta
da estante e pegou as setenta e oito cartas de seu baralho, indo sentar-se à
mesa. Sempre que havia algo ruim acontecendo em sua vida, a velha Nena
buscava o baralho e tentava ler nas cartas o seu destino. Muitas
resoluções haviam sido tomadas com a ajuda das cartas. Para a velha
cartomante, as cartas nunca mentiam. Ela confiava em suas revelações. Nena
era conhecida em quase toda a cidade de Patafufo. Muitos a tinham como
feiticeira, evitando-a. Outros, já, a procuravam confiantes em seu saber.
Quase todos os dias Nena recebia visitas de consulentes. Pessoas que vinham
saber acerca de seus destinos, se iam ter sorte ou em determinados
empreendimentos. A velha Nena nunca cobrava nenhuma consulta; fazia aquilo
por puro prazer. E se alguém teimasse em gratificá- la, sentia-se ofendida a
ponto de expulsar o consulente de sua casa e nunca mais recebê- lo ali. As
mãos enrugadas da velha, cartomante pegaram as cartas e as embaralharam
várias vezes. Depois elas foram distribuídas de faces para baixo sobre o
tampo da mesa numa seqüência conhecida como ÁRVORE DA VIDA DA CUBALA. Em
seguida, Nena as foi virando uma a uma e lendo, separadamente, o que cada
carta virada estava revelando. A maior preocupação da velha Nena eram as
terras da Granja. Temia perdê-las para a Prefeitura. Conhecia muito bem, as
safadezas do atual Prefeito. Ele era um verdadeiro sugador do município. Como
todo político safado deste País, ele recebia as pessoas afetuosamente, dando
tapinhas amigáveis nas costas, prometendo mundos e fundos. E, quase sempre,
não fazendo nada em favor da comunidade - É
como cobra, sopra pra depois morder - murmurou a velha, entre dentes,
pensando no Prefeito. Por um momento, teve de esquecer o mau caráter do
Prefeito e concentrou-se na leitura das cartas. Seus finos dedos viraram a
primeira da direita e deparou com a carta do BOBO, que representava o
Prefeito de Patafufo. A
segunda carta foi a TORRE ATINGIDA POR RAIO, que representava mudanças na
vida da, velha. Bem que poderia ser sua forçada mudança da Granja.
Provavelmente o BOBO do Prefeito estava planejando retirá-la da Serra do
Curral com facilidade, sem contar com sua reação. Mas ele estava muito
enganado. Ela não ia ceder assim, sem antes lutar. A terceira carta a ser
virada foi, para a velha Nena, a revelação de que as coisas não estavam nem
um pouco boas para o seu lado. Era a do MAGO, que significava claramente
estar a sua Granja ameaçada. E avisava, de antemão, que a velha teria que
tomar sérias decisões, se não quisesse perder a Granja. A
quarta carta representava a LUA, ou seja, o perigo iminente rondando a
Granja. Perigo que avançava sobre a cabeça da velha Nena e de suas terras. As
coisas ficavam claras à medida que as cartas iam se revelando. O BOBO (o
Prefeito), tentando a todo custo atingi- la com seus raios de safadezas e
desonestidades. Mas a velha Nena teria bastante cuidado e seria tão esperta
como o Prefeito. Se preciso fosse, agiria com safadeza e desonestidade.
Decidida, a velha virou a quinta carta do baralho e deu com a JUSTIÇA, que só
vinha reafirmar e sustentar sua decisão: quem semeia ventos, colhe
tempestade. - O
Prefeitinho vai se ver comigo. Se vier armado, que venha até os dentes -
resmungou para si mesma. - Estou pronta para o que der e vier. O
MAL DAS COISAS Antes
que o sol surgisse direito atrás da Serra do Curral, o sapo Cururu saltou
para fora de casa. Sabia que a velha Nena não tolerava sapos dentro de sua
moradia. O único animal que podia entrar e sair a qualquer hora da noite e do
dia era o gato - Xano. Esse tinha livre acesso a tudo. Coác pulou em direção
ao fundo do quintal. Passou pela cerca do galinheiro sob os olhares
desconfiados do Carijó, que era o galo mais encrenqueiro das redondezas. Mas,
sem se importar com ele, tomou o caminho do brejo. Quando se aproximou do
brejo, Coác viu dois homens carregando um estranho objeto às costas.
Procurou, então, ocultar-se atrás de uma touceira de capim-gordura e ficou
observando os movimentos dos dois homens. Não os conhecia e podia garantir
que eles não moravam naquelas bandas. Um
deles, o mais velho, apoiou o comprido objeto no chão e disse ao mais jovem:
- Podemos começar daqui a medição. O
jovem assentiu com a cabeça e foi ajudar o mais velho a armar o objeto.
Jamais o sapo Coác tinha visto coisa igual. Era um objeto esquisito. Possuía
três pernas finas, que nem taquaras. Viu quando as pernas do objeto foram
abertas até o máximo o mais velho dos homens disse: -
Pode armar o teodolito. O jovem obedeceu e veio com um outro objeto escuro,
encaixando- o sobre as três pernas finas. Depois, colocou o olho atrás do
objeto escuro - e ficou olhando. -
Acho que tá bom - falou o jovem, saindo de trás do objeto escuro. -
Pegue a vara de medição e vá até aquela elevação ali - pediu o mais velho. O
jovem cumpriu as ordens. Tirou uma curta régua da sacola e, puxando uma das
extremidades dela, a fez ficar maior do que ele. Em seguida, encaminhou- se
para a pequena elevação. Coác
ficou prestando atenção. Os movimentos dos dois homens ainda não eram
suspeitos.- Mas isto não significava que eles eram bem- vindos à Serra do
Curral e muito menos que seriam bem recebidos pelos animais da Granja de Dona
Nena. O Sapo Cururu tratou de ficar em seu posto, aguardando o desenrolar dos
acontecimentos. Se percebesse algum movimento suspeito, o sapo não perderia
tempo: chamaria pelo grilo. -
Acha que será necessário derrubar todas essas árvores?, indagou o mais jovem.
-
Claro! De nada valem. - Me
contaram que a velha é macumbeira não vai abandonar a Granja - comentou o
mais moço, pondo a vara de medição na terra. –
Aquela mulher tá precisando é de ser internada num hospício - disse o mais
velho, voltando o olhar dentro do teodolito. Coác
não quis ficar mais ali ouvindo os comentários, mesquinhos daqueles dois
homens. Saltou para o lado e, pulando para dentro do charco, atravessou-o até
dar no barracão. Nem mesmo esperou sair da água para chamar pelo grilo. Foi
berrando que nem um louco. Cri, que estava sobre a laje esfregando as patas
umas nas outras ao sol da manhã, levou um tremendo susto e quase caiu dentro
do charco. Coác aproximou-se de respiração ofegante e atirando água para,
todos os lados. - Que foi?! Pra que tanto berreiro?! - quis
saber o grilo, assustado. -
Eles estão ali! - foi logo dizendo o sapo, quase num engasgo. – Eles estão
ali. O
grilo protegeu- se da chuva provocada pelo sapo e esperou que este se
controlasse para, depois perguntar: - Eles… quem? – As
bruxas! - berrou o sapo Cururu. -
Tem certeza? -
Tenho. -
Eles estão perto! -
Fazendo o quê? -
Ainda não sei. Trouxeram uma arma esquisita com eles disse o sapo, todo
afobado. - Ela tem três pernas e eles olham dentro dela. O
grilo, que conhecia muitas armas humanas, nunca tinha visto uma que
correspondesse à descrição feita pelo sapo. -
Você tem certeza de que é uma arma? - É,
sim. Uma arma diabólica! – reafirmou Coac. -
Sendo assim, é melhor a gente pôr o PLANO 1 em ação. E
resolvido, o grilo voou para fora do brejo, buscando a direção das Granjas.
Coac: quase não conseguiu ver direito que rumo ele tomara. Sua cabeça
percebeu apenas parte do vôo de Cri, que sumiu por trás de uma das moitas de
caniços. Como de nada adiantava ele ficar ali, o sapo tratou de saltitar até
onde estavam os dois homens. Alguém tinha que vigiá-los, sondar seus
movimentos. E ninguém melhor do que Coác para isso. Sentia- se como um
mocinho de TV que arriscava sua vida só para espionar o inimigo. Antes que o
sapo Cururu chegasse à moita de capim-gordura, ele deparou com um bando de
pombos riscando velozmente o céu azul. Pareciam uma esquadrilha de aviões
preparando- se para atacar o inimigo. Faziam muito barulho com as asas e
piavam como se estivessem enlouquecidos. Coác os seguiu com os olhos e viu
quando o bando de pombos ganhou as alturas e, depois, mergulhou rapidamente
contra os dois homens. Os homens, como estavam atarefados em medir as alturas
zenitais e os ângulos do terreno, não pressentiram o súbito ataque dos pombos. Ficaram
atônitos quando receberam as primeiras bicadas nas cabeças. O mais velho
desesperou-se, soltando pragas intermináveis contra as aves. O
mais jovem tratou de largar a vara de medição e pôs-se a correr morro abaixo.
Por uns minutos, o velho, tentou enfrentar os pombos. Todo o seu rosto estava
cheio de bicadas e por pouco não teve os olhos furados. Se tivesse
permanecido mais no campo de batalha, de suas roupas teria sobrado quase
nada. Foi com esforço e muita dificuldade que conseguiu achar o caminho morro
abaixo. O bando de pombos os seguiu ainda por vários Metros e só os deixou em
paz quando atingiram a entrada da cidade. Coác andou pelo campo de batalha,
examinando atenciosamente as armas. No inicio, aproximou- se com receio. O
teodolito estava todo esparramado no chão, imóvel; as três pernas, quase
fechadas - não havia sinal algum de perigo. O Sapo rodeou o teodolito,
saltitando, e, por fim, criou coragem, arriscou uma olhadela no tubo de
lentes. O que viu ali deixou-o chocado e, ao mesmo tempo, besta. - As coisas,
vistas através do teodolito,. ganhavam outra dimensão. Ficavam tão perto que
era possível tocá-las, se quisesse. O
grilo, que até aquele momento se mantivera distante, rindo do sapo Cururu,
chegou perto dele e falou: - Isto não é uma arma Coác. É um teodolito e serve
para medir os terrenos. Coác tirou os olhos do tubo de lentes e ficou olhando
para o grilo feito bobo. -
Não é arma então? Não faz mal tocá- la? Claro
que não - garantiu o grilo. - O mal das coisas não está nelas, mas em quem as
utiliza. UM
PREFEITO EM APUROS O
Prefeito Aristides Garras de Gavião estava sentado confortavelmente em sua
cadeira com um grosso Livro de Balanço aberto à sua frente, de onde não
despregava os olhos. Nem viu quando a porta do gabinete foi aberta, deixando
passar o secretário Amadeu e os dois topógrafos totalmente esfarrapados. -
Senhor Prefeito! - chamou o secretário Amadeu. Sem
tirar os olhos do Livro de Balanço, o Prefeito gritou com certa irritação: -
Já disse trilhões de vezes que não quero ser importunado hoje! Não viu que
estou atarefado, seu incompetente? Amadeu
estacou-se no meio da sala, sem graça: e um pouco envergonhado, por ter sido
chamado de incompetente na presença de estranhos. Tentou ignorar o adjetivo
humilhante e disse: -
Senhor Prefeito, estão aqui os dois topógrafos. Querem conversar com Vossa
Excelência. O
Prefeito ergueu os olhos, atrapalhado. Procurou fechar o Livro de Balanço,
mas se atrapalhou ainda mais. O livro acabou escorregando de suas mãos e
caindo no chão, bem diante dos dois topógrafos. Eles puderam ver dentro do
livro a revista do BATMAN. Ao invés de o Prefeito se preocupar com as coisas
da Prefeitura de Patafufo, ele lia revistas do BATMAN. Era um irresponsável,
pensou Amadeu. Sem perda de tempo, o Prefeito agarrou o livro e fechou a
revista. -
Não sei como essa revista veio parar aqui dentro - disse ele, meio sem jeito.
- Deve ser o meu filho. O
secretário virou o rosto e conteve o riso irônico, cheio de malícias. Estava
vingado. Se havia alguém incompetente naquela sala, era, sem sombra de
dúvida, o digníssimo Senhor Prefeito Aristides Garras de Gavião. -
Bem, vamos ao que interessa - disse o Prefeito, sentando-se. E só então
reparou no estado lastimável dos dois topógrafos. - Onde vocês dois se
meteram? - Não
conte comigo para demarcar a Serra do Curral - foi logo avisando o topógrafo
mais velho. - Não volto lá nem amarrado. - Eu
também não - concordou o mais jovem indo sentar-se no banco junto à janela. -
Mas o que houve, gente? - quis saber o Prefeito estupefato. -
Eles foram expulsos da Serra do Curral - interferiu o secretário Amadeu,
rindo com muita ironia. Tiveram que correr de pombos. -
Como é que é? - indagou o Prefeito, mais espantado ainda. -
Estávamos fazendo um levantamento topográfico, quando um bando de pombos
surgiu, não sei de onde, e nos atacou contou o velho topógrafo. -
Aquela Serra é enfeitiçada, Prefeito! Não volto lá nem debaixo de surra. -
Nem eu - acudiu o jovem topógrafo, espichado no banco. -
Não é possível que um bando de pombos tenha Posto vocês dois a correr. É
inacreditável - resmungou o prefeito contrariado. - De
uns tempos para cá, Prefeito, estão acontecendo muitas coisas na Serra do
Curral - comentou o velho topógrafo. - Muitos dizem que aquela velha da
Granja é meio maluca e até feiticeira. -
Que, bobagem! São crendices de gente analfabeta, como vocês dois! Acredita
que uma velha de quase cem anos pode controlar as coisas com feitiçaria? -
debochou o Prefeito - Não passam de uns idiotas incompetentes! - A
velha tem poder, senhor Prefeito! - garantiu o secretário Amadeu. -
Tem nada. O que ela sabe é passar os outros para trás vociferou o Prefeito,
irritado com os comentários do secretário. -
Dizem que ela cura muitas doenças com remédios que ela faz com as raízes de
matos silvestres. -
Invencionices! - berrou o Prefeito. – Ela não cura nem resfriado com aqueles
matos. Aquilo é tapeação. -
Muita gente a procura para saber da sorte. Ela lê o futuro nas cartas – disse
o secretário com firmeza, só para irritar mais ainda o Prefeito. – A velha
sabe das coisas. -
Sabe nada! Ela não passa de uma macumbeira de terceira categoria - voltou a
berrar o Prefeito, totalmente descontrolado. -
Pode até ser, mas eu não volto mais lá - disse o topógrafo, mais velho,
encaminhando- se para a porta. - Não conte comigo. Nunca mais volto lá. - Eu
também não - reafirmou mais uma vez o topógrafo mais jovem, deixando o banco
e seguindo o mais velho. O
Prefeito esperou que os topógrafos deixassem o gabinete e, com raiva, deu um
soco na mesa, atirando ao chão, novamente, o Livro de Balanço e a revista do
BATMAN. -
Aquela maldita velha, mais uma vez, está atrapalhando meus planos. -
Pelo jeito, essa rua nunca vai ser inaugurada - comentou maldosamente o
secretário. - E sem rua, seu loteamento não terá tanto valor. - Aí
que você se engana. Ainda hoje aquela macumbeira vai sair de lá ou eu não me
chamo Aristides Garras de Gavião profetizou o Prefeito, tornando a esmurrar a
mesa. O
soco foi com tanta força que uma das pernas da mesa quebrou-se, caindo bem em
cima do pé do Prefeito, fazendo-o urrar de dor. O secretário Amadeu teve de
conter o riso atrás do bloco de anotações, enquanto o Prefeito pulava pela
sala, segurando o pé e gemendo de dor. -
Sai da minha frente, seu incompetente! - berrou o Prefeito para o secretário,
num desabafo doido. SE
CORRER, O BICHO PEGA; SE FICAR, O BICHO COME. Berlinda
entrou apavorada na cozinha e quase derrubou a avó sobre o fogão. -
Eles vêm vindo, vó! - avisou, quase sem fôlego. -
Eles quem? - Os
homens da Prefeitura. A
velha deixou a caçarola sobre o fogão e foi até a janela. Olhou até onde seus
olhos alcançavam. E viu, na estrada que serpenteava pela Serra do Curral,
dois caminhões e um trator avançando em direção à Granja. - O
Prefeito vem vindo também, vó! - disse Berlinda, colocando- se ao lado da
velha. - Estão trazendo o trator pra derrubar nossa casa, vó! -
Eles vão se arrepender pro resto de suas vidas - resmungou a velha Nena com
muita raiva. - Não nasci ontem. Lagoa que tem piranha, jacaré nada de costas.
Vou aprontar uma que eles jamais esquecerão. Foi até o armário e apanhou uma
cartucheira de dois canos que mais parecia um canhão. E indo à janela, pediu
à neta: Pegue a caixa de munição no guarda- roupa. Berlinda
buscou a tal caixa de munição e a colocou ao lado da avó. A velha abriu a
caixa, que não passava de uma caixeta de sapato repleta de vidros. - O
que é isso, vó? -
Espanta- ladrão- de- terra! revelou a velha, pegando um dos vidros. Abriu-
o, despejou o conteúdo gelatinoso nos canos da cartucheira e disse: - Com
isto aqui, não há ladrão que resista. O
grilo deu um vôo rasante e pousou no peitoril da janela, onde ficou
observando a velha Nena preparar a cartucheira. Xano pulou para o colo da
menina e ali ficou aguardando os acontecimentos. A coisa ia pegar fogo. A
comitiva do Prefeito avançava morro acima. Os dois caminhões vinham lotados
de trabalhadores, muitos com marretas e picaretas nas mãos. O Prefeito,
sentado ao lado do Motorista e do secretário, não perdia o seu ar de
superioridade. Sentia- se a força do poder em seus gestos e olhares. A
velha Nena esperou que os dois caminhões chegassem perto da casa e levou a
cartucheira até os olhos. O Prefeito fez sinal para que o motorista
diminuísse a marcha e, por fim, estacionasse. -
Melhor parar aqui. Vou ver se consigo manter um diálogo com essa macumbeira -
disse o Prefeito, preparando-se para descer do caminhão. - O diálogo ainda é
a fórmula mais eficaz de um político. O
secretário Amadeu conteve o riso irônico e seguiu o Prefeito até a cerca da
Granja. Olhou, desconfiado, sobre a cerca e viu a velha Nena na janela com a
cartucheira. Arrumou o terno no corpo e raspou a garganta antes de dizer: -
Bom dia, Dona Nena! -
Deixe de safadeza, Prefeito! Pode pegar a sua comitiva e volta pra Prefeitura
- gritou a velha, da janela. O
Prefeito desfez o sorriso e fechou a cara. O secretário esboçou seu riso de
deboche. A velha era osso duro de roer. Não iria facilmente na conversa do
Prefeito. Ela sabia com quem estava lidando. -
Isto não é maneira de receber uma autoridade, Dona Nena! gritou o Prefeito,
com voz grossa, numa advertência. - A
casa é minha e eu recebo da maneira que eu quiser - informou a velha, sem
abaixar a cartucheira. - A
senhora está levando as coisas para o lado da violência disse o prefeito,
depois de lançar um olhar demorado na cartucheira apontada para ele. - Sua
posição só vai dificultar as coisas. Viemos em paz. -
Você veio tomar minha casa, isso sim! Mas daqui não saio, daqui ninguém me
tira! - berrou a velha, resolvida. -
Podemos entrar num acordo. -
Não quero acordo nenhum com você. - A
senhora será indemnizada. É para o bem da comunidade que projetei uma rua bem
aqui, ligando o centro da cidade com a Serra do Curral. - É
mentira. Você quer passar a rua aqui para valorizar o seu loteamento. Pensa
que você me engana? O
Prefeito ficou furioso. A velha era mais sabida do que ele supunha e estava
ridicularizando-o diante de seus empregados. Aquilo era demais. Não viera ali
para ouvir desaforos. Girou os calcanhares e deu de cara com o secretário
rindo dele. - A
velha sabe das coisas, Prefeito. -
Saia da minha frente, seu incompetente! - e o Prefeito empurrou o secretário
para o lado. Aristides
Garras de Gavião passou pelos caminhões e foi cochichar algo nos ouvidos do
tratorista. Depois, volta à cerca e grita para a velha Nena: - Eu
tentei entrar em entendimento com a senhora. Todo mundo, aqui, é prova disso.
A
velha, que já estava com os nervos à flor da pele, nem quis mais dizer nada:
puxou o gatilho da cartucheira, berrando fogo contra a cerca onde se
encontrava o Prefeito de Patafufo. Ouviu-se um estrondo e uma nuvem de pó
cinza envolveu a casa e parte da estrada. Quando
a nuvem se desfez, pôde-se ver um rombo na cerca, por onde dava para passar
um boi. Mais adiante, estava o Prefeito estirado no chão, de olhos fechados.
Todo o seu corpo estava coberto por um pó cinza. Ele tossiu algumas vezes e
se pôs de pé, ajudado pelo, secretário, que também estava coberto pela, mesma
névoa de pó. - Me
dá mais um vidro ai, Berlinda - pediu a velha, voltando a carregar a
cartucheira. Temos que correr essa corja de ladrões. O
grilo, que durante a discussão se mantivera sobre a janela, ao ouvir o
estampido da cartucheira, voou para o campo aberto, enquanto Xano miava,
assustado, no colo de Berlinda. A menina soltou o gato no chão e avisou-o: -
Vamos reunir os outros animais, Xano. A coisa vai começar a esquentar agora. Berlinda
saiu correndo, seguida pelo Xano. Atravessaram o quintal e foram abrir o
galinheiro. Precisavam de toda ajuda possível. Todos os animais estavam sendo
convocados para a guerra. O sapo Cururu coaxava, apavorado, pelo terreiro.
Procurava um lugar em que se esconder e gritava sem parar: - O
mundo está acabando! - Se precisarmos de um medroso, esse aí vale por dois -
comentou o Carijó junto à cerca, dando passagem às galinhas. Eta cara
medroso! -
Xano! Vamos soltar a família do Ronc - grita Berlinda, tomando o caminho do
chiqueiro. Xano
ultrapassa a menina e pula o muro da pocilga, andando de um lado para o outro.
Toda a família do Ronc estava de ouvidos em pé, prestando atenção na correria
dos outros animais; só o Ronc nada via e nada ouvia: dormia tranqüilamente,
como se nada estivesse acontecendo. Berlinda abriu a porteira e deixou a
família do Ronc sair; depois, acordou o porco aos berros. Foi com muito custo
que o Ronc abriu os olhos e tomou noção das coisas. E, só então, deixou sua
confortável cama e saiu para fora da pocilga. O
Prefeito demorou a pôr-se em pé, tossindo e praguejando furiosamente. O secretário,
aflito, procurava limpar-lhe o terno. Um bando de pombos cruzou os céus e
atacou com bicadas os trabalhadores sobre os caminhões. Muitos tiveram que
pular às cegas para fora da carroceria, caindo em canteiros de urtiga e
plantas espinhosas. Ainda
meio tonto e trocando os passos, o Prefeito abriu caminho entre a confusão e
berrou para o tratorista: -
Que você está esperando, seu idiota? Derruba a cerca logo, seu incompetente! O
tratorista pisou no acelerador, fazendo o motor urrar e expelir uma forte
fumaça negra contra o céu azul. O Prefeito correu ao lado do trator, clamando
por vingança. A velha Nena, que tinha acabado de recarregar a cartucheira,
ergueu-a até a altura dos olhos e fez pontaria. Xano correu sobre a cerca e,
antes que a pá da escavadeira a derrubasse, pulou sobre a cabeça do
tratorista. Outra vez a velha Nena puxou o gatilho da cartucheira e novo
estrondo cortou os céus. Uma névoa de pó vermelho envolveu tudo e, quando se
desfez, o trator estava paralisado, com a pá toda entortada, enquanto o
tratorista berrava feito louco, na cabina. Xano continuava trepado em sua
cabeça. O homem berrava e dava pescoções no ar, para se livrar do gato, mas
não conseguia. A
essa altura dos acontecimentos, ninguém sabia onde tinham ido parar o
Prefeito e o secretário. Os pombos ainda atacavam os empregados da
Prefeitura. Alguns, mais espertos, corriam morro abaixo. O
grilo, que voltara à janela da velha Nena, comandava o ataque aos berros. As
galinhas, conduzidas pelo Carijó, investiam contra as canelas dos motoristas
dos caminhões. O ViraLata avançava na turma de picareteiros, em volta do
pátio. Berlinda gritava junto à cerca para que Xano voltasse. Temia que o
tratorista pegasse o gato e o machucasse. Mas quanto a isso, ela não
precisava se preocupar, pois Xano sabia se cuidar, e muito bem. Se não fossem
os gritos insistentes da menina, o gato não teria saldo de cima da cabeça do
tratorista e acabaria arrancando-lhe todo o couro cabeludo. O infeliz do
homem deu graças a Deus quando o gato o deixou em paz e correu para junto da
menina. Um pouco zonzo, o tratorista desceu do trator e cambaleou pela
estrada. Passava as mãos na cabeça e lastimava o tempo todo. –
Que gato excomungado! O
desgraçado do gato havia tirado uma rodela de um palmo do seu couro cabeludo,
bem no meio da cabeça. Ele fora escalpelado habilmente pelas unhas de Xano. Em
poucos minutos, diante da casa, restavam apenas o trator, todo amarrotado, e
os dois caminhões, abandonados. A velha Nena depositou a cartucheira no chão
e fitou por muito tempo a bagunça em frente à casa. Berlinda coçou a cabeça
do Xano e deixou a cerca. Ia voltando para dentro de casa, quando ouviu
gritos de socorro e os grunhidos do porco. Viu o Prefeito e o secretário
passarem correndo, a caminho da estrada, com Ronc atrás deles. Fugiam
desesperados, um tropeçando no outro. Pelo jeito, Ronc havia mordido a
poupança do Prefeito e se preparava para fazer o mesmo com a do secretário. O
Prefeito corria alguns metros e volvia a cabeça para trás, certificando-se se
o porco já tinha desistido da perseguição. Mas Rone continuava atrás dele,
quase alcançando-o. Berlinda
ainda pôde acompanhá-los com os olhos até que eles desapareceram lá em baixo,
entre espessa vegetação que cobria a Serra do Curral. A velha Nena chegou
perto da neta, e pondo a cartucheira no chão, apoiou as mãos nos canos e
murmurou: -
Não sei como esse bando de ladrões tem coragem de atacar uma pobre velha
indefesa e sua neta. Com
isso, pegou a cartucheira e voltou para dentro de casa, pisando com muita
firmeza no chão. Berlinda a seguiu com os olhos e riu para Xano, em seu colo.
-
Vovó é de morte! Xano
miou dengosamento no colo da menina e ela voltou a acariciar seu pêlo.
Depois, comentou: -
Você está muito dengoso, Xano. O
sapo Cururu saiu de debaixo da bacia e conferiu os estragos. Coác saltou pela
grama e, sabendo que a batalha chegara ao fim, aproximou-se do trator e dos
dois caminhões. –
Como você é engraçado, heim, Coác?! O sapo voltou-se e deu com o grilo sobre
uma pedra. - Na
hora do duro, você cai fora, vai se esconder - diz Cri, de cara fechada. - Eu não fugi - garante o sapo. -
Fugiu sim, senhor. - Só
não queria ver violência. Detesto violência. Você sabe bem disso. -
Você é um medroso, isso sim! Como
o assunto estava aborrecendo Coac, ele resolveu deixar o grilo falando
sozinho e saltitou em direção ao brejo. Afinal, ele merecia algum descanso,
depois de tanto corre- corre e tanta confusão. Cri parou de falar e lançou um
olhar de desprezo ao sapo, dizendo em tom baixo: -
Quanto mais gordo é o bicho, mais lerdo ele é. Deu
de ombros e saltou pelo pátio. O
REPOUSO DO GUERREIRO Providenciaram
uma almofada de espuma para que o Prefeito pudesse sentar- se na cadeira. E
ele, depois de se alojar da melhor maneira possível, exigiu a presença do secretário.
-
Entre duma vez, seu incompetente! - grita o Prefeito ao ver o secretário
estacado à porta do gabinete. - Feche essa maldita porta e prepare- se para
escrever a carta que vou ditar. Amadeu
obedeceu e, sacando o bloco do bolso, sentou- se diante do Prefeito,
esperando que a carta fosse ditada. -
Para quem é a carta, Sr. Prefeito? O
Prefeito mexeu- se um pouco na almofada e sentia uma dor aguda no traseiro.
Gemeu e, com muito sofrimento, conseguiu encontrar uma posição menos
dolorida. Por causa das caretas que o Prefeito fez ao mover- se na cadeira,
Amadeu deixou escapar seu riso irônico e debochado. O Prefeito enfureceu- se
e, apontando para o bloco nas mãos do secretário, berrou: -
Escreva a data ai, seu idiota! Aqui não é parque de diversão, cretino! Amadeu
conteve o riso e escreveu a carta ditada pelo Prefeito: PREFEITURA
MUNICIPAL DE PATAFUFO GABINETE DO PREFEITO SR. ARISTIDES GARRAS DE GAVIÃO Patafufo, 15 de agosto de 1986 Ema. Sra. Filomena Alinhagem de Marzagão
Serra do Curral, s/ n. Município de Patafufo Prezada Senhora: Como não aceitou minha
proposta e nem demonstrou nenhuma delicadeza em discuti-la, resolvemos dar o
caso por encerrado. Fica o dito pelo não dito. Sempre fui
amante do progresso patafufense, mas vejo que nem todos gostam do progresso.
E como não sou dado à violência e nem a atritos com meus vizinhos, retiro o
projeto de ligação da Serra do Curral à Serra das Piteiras. E daqui pra
frente, culpo a senhora de paralisar o avanço progressista desta cidade.
Afianço- lhe que seus atos de rebeldia serão arquivados para que as gerações
futuras se lembrem da senhora como uma anti- progressista, uma
anti-patafufense. Sem mais, só me resta renovar minhas tentativas de paz. Atenciosamente, ARISTIDES GARRAS DE GAVIÃO (Prefeito de
Patafufo) Terminando
de ditar a carta, o Prefeito exigiu: Que ela seja enviada ainda hoje. Perfeitamente,
Sr. Prefeito. O secretário Amadeu ergueu-se, dirigiu- se à porta e, antes de
sair, quis saber: -
Mais alguma coisa? -
Não. E que ninguém me interrompa hoje. Vou estudar uns projetos para o
engrandecimento deste município - advertiu o Prefeito, de peito estufado. -
Preciso de paz e de tranqüilidade para tirar esta cidade do atoleiro, da
ignorância e do atraso. Só eu me preocupo com essas coisas. E
dizendo isso, o Prefeito abriu o enorme livro sobre a sua mesa e, com muito
afinco, debruçou- se sobre ele. O secretário atravessou a porta e a fechou
com bastante cuidado. O
Prefeito esperou alguns segundos, depois ergueu a cabeça e, certificando- se
de que realmente estava sozinho, abriu a gaveta da mesa e retirou a revista
do BATMAN, pondo- se a lê- la tranqüilamente. Afinal, ele era o Prefeito da
cidade, o mais importante cidadão, aquele que se preocupava com o bem estar
de todos, com o progresso da cidade. Merecia, sem sombra de dúvida, algumas
horas de lazer, de descanso. Era o repouso do guerreiro. E
que guerreiro! FIM Para: - Continuar a leitura em: Histórias - Voltar
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