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…….. . Histórias & Historinhas Sonhos de Natal Eu
nasci e vivi alguns anos numa aldeia muito pequena escondida por uma enorme
mancha de altos pinheiros e carvalhos gigantescos. Pedra de Hera era o nome
dessa aldeia. Todos
os anos, com a chegada do Outono, da chuva e dos fortes ventos, as castanhas
desprendiam-se dos redondos ouriços que enfeitavam os castanheiros
centenários que havia espalhados por toda a Pedra de Hera. Sem as castanhas,
os ouriços abertos lá no cimo dos castanheiros faziam-me lembrar ninhos
cobertos por picos. E as folhas amarelecidas pareciam cobertores pequeninos a
secar ao sol. Com
o passar dos dias e das noites cada vez mais frios, a chuva e as medonhas
rajadas de vento punham as copas das árvores a abanar e faziam calar o canto
dos pássaros. As
folhas dos castanheiros voavam em todas as direcções, como se fossem as
borboletas da Primavera. Acabavam por cair em cima dos telhados, nos pátios,
nos campos e nos caminhos estreitos, onde, além dos homens, mulheres e
crianças, também passavam as cabras e as ovelhas, as vacas, os cães, os
gatos, as raposas, os ratos do monte, as doninhas, os coelhos bravos e os
javalis. Quando
os ramos dos castanheiros ficavam sem folhas, às vezes a minha pequena Pedra
de Hera ficava coberta por um imenso manto de nuvens muito cinzentas. O
vento deixava de soprar, e os pássaros festejavam esse tempo tão sereno com
as suas tímidas cantorias. Os camponeses apressavam os trabalhos nos campos e
nas matas. Punham bastante comida nos estábulos dos animais. Depois iam
sentar-se em frente da lenha que ardia calmamente nas lareiras de pedra,
queimadas pelas fogueiras de muitos e muitos anos. Nós,
as crianças, começávamos a dar grandes gargalhadas e a saltar de contentes
porque sabíamos que a neve não demoraria a chegar. Flocos ainda mais brancos
do que as rocas de açúcar desceriam das nuvens, bailariam no ar e cairiam no
chão. E
assim acontecia. De repente, os flocos de neve apareciam. E eram tantos e
tantos e tantos, dançando e caindo de mansinho, que daí a pouco os caminhos,
os campos, as matas e os telhados ficavam brancos. Às
vezes, a neve caía de noite sem fazer barulho. Logo
de manhã, enquanto bebia por uma malga com flores azuis o leite fervido e
ainda a escaldar que a minha avó Mariana tirava da nossa cabra Lourença,
espreitava pela vidraça da janela do meu quarto. E via marcadas na neve que
tudo cobria, as patas dos pássaros desorientados e quase me parecia ouvir o
bater muito apressado dos seus minúsculos corações. Daí a nada, com um
carapuço de lã de ovelha que minha avó tricotara, e me oferecera no primeiro
dia em que fui para a escola, pisava a neve, enterrava-me nela, e começava a
fazer enormes bolas que acabavam em pedacinhos quando batiam nas paredes das
casas, ou nos muros de pedra onde os lagartos e as sardaniscas dormiam
profundamente. Depois
aparecia a Ana, a Joana, o Pedro, o Ricardo, meus companheiros de escola e
brincadeiras, e também o senhor Afonso, que vivia sozinho numa casa muito
pequenina e era muito mais velho que nós. Ele costumava dizer que tinha
quarenta mais trinta anos. Eu
gostava muito do senhor Afonso e achava normal que ele tivesse quarenta mais
trinta anos. Também achava natural que ele brincasse connosco, nos fizesse
brinquedos de madeira, e que, de vez em quando, nos chamasse para dentro da
sua cozinha escura e pobre e nos oferecesse pataniscas de bacalhau tão bem
fritas e tão saborosas como só ele sabia cozinhar. Nem a minha avó era capaz
de fazer pataniscas tão boas como as do senhor Afonso. A minha avó ficava
triste por eu ter essa opinião, e dizia: — As
pataniscas do velhote são boas porque sabem a fumo. — Minha mãe ria-se. E eu
respondia: —
Então porque é que a avó não vai fritá-las a casa dele? —
Era o que faltava, menino! — zangava-se minha avó Mariana. Quando
vinha muita neve, nós não íamos à escola, que ficava muito longe da nossa
aldeia, e o senhor Afonso também saía de casa para nos ajudar a fazer um
grande boneco de neve. Púnhamos-lhe
pauzinhos na cabeça a fazer de conta que eram cabelos, uma cenoura para que o
nariz ficasse bem comprido. Grãos
de milho para que pudesse ver, uma manga de uma camisola vermelha a fazer de
conta que era uma gravata muito vistosa. E, finalmente, uma vassoura velha
para que se transformasse numa bruxa e voasse de noite, se tivesse vontade.
Depois, com as mãos dormentes, ríamos muito e corríamos ao encontro das
fogueiras, para nos aquecermos. E o senhor Afonso recomendava: —
Estejam atentos. Se ouvirem barulho saltem da cama. Se calhar, desta vez é
que vai acontecer! Quando
vinha a noite, eu ficava muito ansioso. O que eu mais queria era ver o nosso
boneco de neve a voar. Eu
vivia com a minha avó Mariana e com a minha mãe. O meu pai não estava na
Pedra de Hera. Quando aconteceu tudo isto que estou aqui a contar, eu não sabia
como era a voz do meu pai. Conhecia apenas uma fotografia de um homem muito
sério que estava dentro de um caixilho pendurado na sala da nossa casa. De
vez em quando, o senhor Martins aparecia na Pedra de Hera. O senhor Martins
era o velho carteiro, gorducho e bonacheirão, que trazia dentro de um saco de
couro envelhecido boas e más novidades escritas em cartas e postais. A minha
mãe ficava muito contente, se o via a parar junto de nossa casa. O senhor
Martins, enfiado na sua farda de carteiro, quase sempre bastante transpirado
por causa da longa caminhada, entregava uma carta a minha mãe e dizia,
sorrindo: —
Que lhe faça bem! Minha
mãe ia para a cozinha, sentava-se num banquinho, abria o envelope com muito
cuidado, retirava uma folhinha cheia de letras e começava a ler. E, enquanto
lia, eu via-a sorrir, ficar de repente com um ar muito sério. Quando acabava
de ler tudo, dava um suspiro fundo, olhava para mim e dizia: — O
teu pai manda-te mil beijinhos. E a
minha avó Mariana perguntava: —
Então? —
Está bem, tirando as queixas do costume. Ora
num ano, quando as férias do Natal já tinham começado, o senhor Martins
entregou uma carta a minha mãe e disse, sorrindo: —
Que lhe faça bem! Minha
mãe foi para a cozinha, sentou-se num banquinho, abriu o envelope com muito
cuidado, retirou uma folhinha cheia de letras e começou a ler. E, enquanto
lia, eu via-a sorrir, sorrir sempre. Quando acabou de ler tudo, arrumou a
carta no bolso do avental e não disse nada. E a
minha avó Mariana perguntou: —
Então? —
Está bem, tirando as queixas do costume. E eu
fiquei muito admirado: —
Então ele não manda nada para mim? —
Manda dar-te mil beijinhos. Eu
não disse mais nada. Mas achei que o meu pai escrevera coisas diferentes
naquela carta O
meu pai estava a trabalhar no Brasil. Fora para lá três meses depois de eu
ter nascido. Era o que minha mãe contava. — Um
dia ele aparece por aí — dizia a avó Mariana. No
tempo das férias de Natal, eu, o Ricardo, o Pedro, a Joana e a Ana passávamos
muitas tardes enfiados na cozinha do senhor Afonso a ouvir as histórias que
ele sabia contar. Às vezes ajudávamo-lo a cortar lenha. Empilhávamos as achas
delgadas de carvalho a um canto da cozinha, que ele rachava com um machado
muito afiadinho. Depois de estar tudo arrumado, ele dava-nos pataniscas de
bacalhau. E era uma festa. O
senhor Afonso também ia cortar lenha para nossa casa. Mas a minha avó, em vez
de fazer pataniscas, punha nos pratos arroz com penca e grossas fatias de
salpicão cozido. No
tempo das férias de Natal, cada dia que passava, mais cedo anoitecia. As
noites eram imensas e frias e eu, sentado num banquinho, ficava em frente da
lareira a desejar que o Natal não tardasse muito a aparecer. Porque é no
Natal que os sonhos são mais bonitos. Uma
semana antes do Natal, os dias andam ainda mais vagarosamente do que
minúsculos caracóis. E dentro de nós vai crescendo uma vontade muito grande
de ir ao calendário e apagar todos esses dias. Naquele
tempo também eu pensava do mesmo modo. Lá, na Pedra de Hera, nós andávamos
cada vez mais ansiosos. E o Pedro voltava a contar o que lhe tinha acontecido
no ano anterior. Nós já estávamos fartos de ouvir aquela história, mas
deixávamo-lo falar, porque era muito bonita e fazia-nos sonhar. E eu aprendi,
agora que já tenho quase tantos anos como o senhor Afonso, que uma das coisas
mais bonitas da vida são os nossos sonhos ou os dos nossos amigos. Contava
o Pedro que, na noite de Natal do ano anterior, depois de se deitar na cama,
ouviu, a meio da noite, um barulhinho muito estranho. Então, ele, com o
coração aos saltos, pensou que era o Menino Jesus que estava a descer pela
chaminé para entregar os presentes. Depois de muito hesitar, saiu da cama sem
fazer barulho e foi caminhando com muitas cautelas em direcção à cozinha.
Quando lá chegou, ficou sem poder falar nem mexer-se quando viu uma luz a
desaparecer pela chaminé. Apesar da luz ser muito intensa, ainda teve tempo
de ver os pés pequeninos do Menino Jesus. — Se
ele aparecer este ano, de certeza que o apanho! — terminava o Pedro, com os
olhos muito brilhantes. — E
para que é que tu o queres apanhar? — perguntava a Joana. O
Pedro ficava calado por alguns instantes. —
Fazia-lhe muitas perguntas. —
Podias pedir-lhe para me levar uma boneca muito grande a minha casa — dizia a
Ana, que sonhava ter uma boneca que fosse tão alta como ela. E eu
dizia: — O
Menino Jesus é muito esperto, nunca se deixa apanhar. Ninguém consegue vê-lo. — Eu
gostava de o ver… — suspirava o Ricardo. — E nós também. Nem
sempre houve televisão, vídeo e jogos de computador. A história que estou a
contar passou-se num tempo em que essas coisas não existiam. Mas, mesmo sem
essas coisas, nós, as crianças, gostávamos de ter presentes muito especiais.
Para esse ano a nossa lista era a seguinte: Ana
— uma boneca muito grande. Joana
— uma casa de bonecas, com caminhas, berços e um trem de cozinha. Pedro
— um carro de corrida e uma carroça puxada por um burrinho. Ricardo
— um avião e um barco. Manuel
(que era eu) — Livros que tivessem muitas figuras coloridas e contassem
histórias com aventuras extraordinárias e uma gravata vermelha. —
Para que é que queres a gravata? — perguntava o Ricardo. —
Para parecer bem. Não posso? — Um
avião e um barco é melhor, porque, assim, eu posso brincar a dar muitos
passeios. — Os
livros são melhores porque contam histórias com princesas, monstros e bruxas. — Tu
lês muito bem, mas não sabes a tabuada toda… — ria-se o Pedro. E eu
fazia de conta que não tinha ouvido. Mas era verdade. Eu nunca me lembrava
que sete vezes oito são cinquenta e seis. Mas sabia muito bem que três vezes
nove são vinte e sete, sentadinho na retrete está o senhor Valete a comer um
sabonete. E,
assim, cada um de nós ficava com o seu sonho. E é por isso que hoje temos
profissões diferentes. A
Ana é costureira e tem uma filha que é muito maior do que ela. A
Joana é cozinheira num restaurante. O
Pedro é taxista. O
Ricardo trabalha no aeroporto de Lisboa. O
Manuel (que sou eu) inventa histórias e tem algumas gravatas vermelhas. No
dia vinte e três de Dezembro, depois do almoço, a Joana fazia lembrar a menina
da história do Capuchinho Vermelho. Só que, em vez do capuz, a Joana trazia
na cabeça um lenço muito florido que era de sua mãe, a Aninhas tecedeira.
Toda a gente a tratava assim porque ela tinha um velho tear de madeira onde
fazia mantas, lençóis de linho e cobertores de lã. De manhã à noite, ouvia-se
sempre o mesmo som, que já nem os pássaros espantava: truc-truc, truc-truc,
truc-truc, truc-truc… Nesse
ano, a Joana veio ter a minha casa com o lenço na cabeça e uma cestinha de
vime na mão. Atrás dela, cada um com sua cestinha, vinham o Pedro, a Ana e o
Ricardo, muito bem agasalhados, com carapuços enfiados na cabeça. Fomos
ter a casa do senhor Afonso, que ficava perto da fonte da Pedra de Hera e
encontrámo-lo a dormitar, sentado em frente da sua lareira, onde havia sempre
uma panela de ferro com água, muita cinza, um gato e um lume brandinho. —
Onde é que vão os meninos com essas cestinhas todas? Vão aos cogumelos, ou há
por aí alguma videira que ainda não foi vindimada? — perguntou o senhor
Afonso. Riu-se e eu reparei que naquela boca já não havia muitos dentes. E a
cara tinha muitas rugas. — Já
está na hora de ir arranjar musgo e heras! Venha! Venha! — gritava a Joana. E
ele, muito sério: —
Agora não posso, tenho muita coisa para fazer… —
Venha agora, se não, vem a noite e já não conseguimos fazer nada. — Se
eu for, o que é que os meninos me dão?!… Ficámos
calados a olhar uns para os outros. Nós não tínhamos nada para lhe dar. —
Perderam a língua?!… Então,
eu lembrei-me das nozes que trazia nos bolsos das calças. —
Dou-lhe duas nozes. —
Não quero, é muito pouco… E eu já não tenho dentes para comer nozes… —
Venha, por favor! – pediu a Ana. —
Está bem. Se é um favor que me pedem… É só o tempo de calçar as botas. Pouco
depois, andávamos na mata a escolher o musgo que revestia pedras e penedos. E
as nossas cestas foram-se enchendo de pequeninos tapetes verdes que não se
podiam dobrar. —
Deixem ficar a terra, levem só o musgo — aconselhava o senhor Afonso,
colhendo heras para um cesto. As
heras tinham muitos metros de comprimento e bagas muito pretas. Eu punha-me a
imaginar que aquelas bagas bem podiam ser os olhos das heras. Às vezes,
também imaginava como seria bom se os pássaros falassem connosco, mesmo os
gaios e os melros que me roubavam as cerejas da cerejeira e bicavam as peras
que havia no meu quintal. Quando
as cestas ficaram cheias, carregámo-las para o cimo da Pedra de Hera. Como as
cestas pesavam imenso, caminhávamos devagar e tínhamos de descansar de dez em
dez metros. O senhor Afonso, apesar de levar um cesto cheio de heras às
costas, ia sempre a andar e nunca fazia pausas. Finalmente
chegámos junto de uma borda, à beira dum caminho estreito e pousámos as
cestas. Nessa borda, havia uma gruta que há muitos anos alguém ali escavara.
Dentro da gruta, talhado no saibro, havia um banquinho. Assim, se de repente
chovesse, toda a gente lá podia entrar para se abrigar. Nós
gostávamos de ir para dentro da gruta, quando começava a cair imenso granizo.
Sentados no banco, ficávamos calados e cheios de medo. As nossas mães não
gostavam que fôssemos, mas aquele espectáculo era fascinante e nós gostávamos
de ter medo durante algum tempo. Na
véspera de Natal, o interior da gruta que havia ao ciminho da minha aldeia
sofria uma grande transformação. E em toda a Pedra de Hera nada havia mais
bonito do que aquela gruta escavada na terra saibrenta. O
cesto com a hera e as cestinhas com o musgo ficaram no caminho, junto da
gruta. E nós corremos para casa do senhor Afonso. Mas ele não nos acompanhou,
vinha muito devagar, pouco se importando com as nossas pressas. —
Venha depressa! — gritava a Ana. E
ele respondia: — Já
tenho idade para não ter pressas. Quando
o senhor Afonso chegou, nós já tínhamos comido todas as nozes que havia nos
bolsos das minhas calças, e estávamos fartos de esperar. O
senhor Afonso abriu a porta da cozinha; nós entrámos depois dele e corremos
para junto de uma grande caixa de madeira enegrecida que havia na sala
pequenina, à beira da janela, que tinha um vidro estalado. Ele
levantou a tampa da caixa com muito cuidado, encostou-a à parede, e nós
espreitámos lá para dentro. Dentro da caixa havia saquinhos de linho com
centeio, milho e feijões. No fundo de tudo, estava outra caixa, muito mais
pequena, também de madeira. Com
muito cuidado, o senhor Afonso apanhou essa pequena caixa e foi pousá-la
sobre uma cadeira. Depois de ter fechado a caixa grande, pegou na mais
pequena com muito cuidado e saiu de casa. Nós
seguimo-lo, muito devagarinho, fartos de saber que o senhor Afonso já não
tinha idade para ter pressas. E íamos calados para que a caixa não fugisse
das mãos do senhor Afonso. Quando
a caixa ficou junto das nossas cestinhas cheias de musgo e do cesto carregado
de hera, o senhor Afonso disse: —
Isto tem de ficar muito bem feito, ouviram? Agora quem manda sou eu.
Combinado? —
Combinado! —
Ninguém se zanga. Combinado? —
Combinado! — Só
fazem o que eu disser. Combinado? —
Combinado! —
Vamos lá começar! —
Combinado! — disse a Joana, pouco atenta. E toda a gente se riu. A
primeira coisa a ir para dentro da gruta foi o musgo. Com muito jeito,
alcatifámos o chão com as mantas fofas e verdes que fomos tirando das cestas.
As heras foram crescendo em redor. E, de repente, o interior da gruta
transformou-se numa serra verdinha, com arvoredo e cheia de pasto, a precisar
de um rebanho de ovelhas e de alguns pastores. O
senhor Afonso levantou a tampa da caixa e nós ficámos calados a ver o que
estava lá dentro. E o que estava lá dentro eram muitos embrulhinhos de jornal
muito bem acondicionados. Ai,
mas aqueles jornais escondiam figuras que ganhavam vida e nos faziam sonhar
tanto! A
primeira figura que ficou sem o papel era um pastor que se fartava de rir.
Tinha umas bochechas muito encarnadas, vestia uns calções que lhe davam até
aos joelhos e trazia um saquinho pelo ombro e uma cabaça à roda da cintura.
Era um pastor alegre e devia ser bem amigo das suas ovelhas.
Muito atento, o pastor foi para o
cimo do monte e começou a assobiar pelo seu cão. O
cão, todo preto e com manchas brancas por todo o corpo, pulou da caixa,
desembaraçou-se dos jornais que o embrulhavam, e foi logo ter com ele. Aquele
cão era, com toda a certeza, um grande amigo do pastor, sempre pronto a
ajudá-lo a guardar as ovelhas e a fazer-lhe companhia naquela serra imensa e
silenciosa, onde o tempo custava a passar. Gordinhas,
com o corpo coberto de lã branca muito encaracolada, as ovelhas também
apareceram e espalharam-se por toda a verdura. Muitas estavam cheias de fome,
porque não paravam de pastar. Duas estavam tão fartas que nem sequer olhavam
para aquele belo pasto. De cabeça erguida, fartavam-se de balir. Se calhar,
achavam que estava na hora de dar a mama aos filhotes. Mas eles andavam lá
longe, nos sítios mais altos do monte, a dar pinotes, felizes com tanta
liberdade. Feita
com espigas de trigo, saiu da caixa uma manjedoura. Era uma boa ideia. Se
chovesse ou nevasse, aquela manjedoura serviria para lá pôr feno seco para o
rebanho comer. Outro
pastor chegou. Aquele pastor, que era ainda rapazinho e tinha um chapéu roto
na cabeça, foi pôr-se junto dos cordeiros. E fez muito bem. Aquela parte da
serra não estava vigiada. Se aparecesse um lobo, os cordeiros, coitaditos,
nem sequer teriam tempo de chamar pelo cão. Depois
apareceu uma vaca. Devia ter dentro dela um filhote, porque tinha uma grande
barriga e quis deitar-se junto da manjedoura. Do outro lado veio encostar-se
um burrinho. Logo depois apareceu S. José e foi encostar-se à manjedoura.
Atrás de José, veio Maria. O
burrinho, a vaca, José e Maria estavam a olhar para a manjedoura. Bem se via
que estavam bastante preocupados. O bafo muito quente saía das narinas da
vaca e do burrinho e aquecia a palha da manjedoura. Uma
estrela prateada apareceu no cimo da gruta, bem perto de um galo, que não
parava de cantar. Finalmente,
muito gorducho, sempre a rir, só com uma fralda de pano no corpo, o Menino
Jesus foi posto na manjedoura. Depois
ficámos bastante tempo a olhar, calados. O
silêncio era tão grande naquela gruta que até parecia que ouvíamos o Menino
Jesus a respirar tranquilamente. O
senhor Afonso deixou-nos carregar a caixinha e os jornais que vinham dentro
dela. Quando entrámos na sala, fui eu que meti a caixinha dentro da caixa de
madeira enegrecida, junto dos sacos de linho cheios de centeio, milho e
feijões. Estava
a anoitecer quando eu entrei em casa. Fui encontrar a minha mãe a mudar a
água às muitas postas de bacalhau que estavam a demolhar num balde de
madeira. Antes de me sentar, fiz-lhe um recadinho: fui à fonte buscar um
regador de água. Andei
bem depressa, entornei até alguma água. Mas tinha de ser assim. É que já
estava a ficar muito escuro e eu tinha medo que alguma bruxa má ou até um
lobisomem surgisse de repente na curva do caminho, que era estreito e
serpenteado. Já
vi muitas coisas, umas boas outras más. Já
ouvi muitas verdades e muitas mentiras. Já
passei por grandes cidades e por lugares ainda mais pequeninos do que a minha
Pedra de Hera. Muitas
vezes me alegrei e algumas vezes fiquei triste. Já
não têm conta as vezes que sonhei acordado. E muitos sonhos compartilhei com
os meus amigos. Mas
nada foi tão especial como aquele dia que calhou a vinte e quatro de Dezembro
desse ano que agora relembro. Quando
acordei, já a minha mãe e a minha avó andavam muito atarefadas na cozinha. Na
lareira, enormes labaredas aqueciam grandes panelas de ferro. Depois de
almoçar o leite e as sopas de pão que a minha avó pôs dentro da malga
com flores azuis, minha mãe mandou-me tratar da cabra
Lourença. E eu
fui. Pelo caminho reparei que todas as casas da Pedra de Hera tinham um
chapéu de fumo a cobri-las. No
nosso lameiro, que ficava junto da ribeira, comecei a cortar a erva com uma
foicinha muito bem afiada. Tinha
já cortado um bom pedaço quando me assustei. No meio da erva encontrei um
ninho de ratos pequeninos, ainda sem pêlo, muito rosadinhos. Estive quase
para os matar com a ponta da foicinha. Depois pensei no Menino Jesus e nas
prendas de Natal e deixei-os viver. O Menino Jesus devia ter ficado muito
contente por ver que eu tinha um bom coraçao. Com
uma cordinha apertei a erva num belo molho e levei-o para a manjedoura da
cabra. A Lourença ficou contente comigo. Ao regressar a casa, surpreendi-me
com o cheiro diferente que envolvia toda a Pedra de Hera. Cheirava a açúcar
queimado, a canela e a frituras. Nessa
noite, que demorava tanto a chegar, a nossa casa iria encher-se de gente. À
volta da mesa comprida estariam os meus tios e os meus primos, a minha avó, a
minha mãe e eu. Ao todo, éramos catorze. Quando
entrei na cozinha, minha avó enfeitava com canela grandes travessas de
aletria. Minha mãe, com o rosto muito vermelho, transpirada, fritava as
primeiras rabanadas. Em cima da mesa estava um monte de pencas repolhudas, e
no chão um balde cheio com as maiores batatas criadas no nosso quintal. —
Queres comer uma postinha de bacalhau assado? — perguntou minha mãe. Não
cheguei a dizer que sim, que era muito capaz de comer uma bela posta de
bacalhau assadinha nas brasas muito vivas da lareira, muito bem regada com
azeite aquecido, e temperada com um dente de alho partido em pedacinhos. E
não cheguei a dizer que sim, porque ouvimos um barulho que não era habitual
na Pedra de Hera. As
galinhas ficaram alvoroçadas, os cães desataram a ladrar. E a minha mãe
disse, quase a medo: —
Será? — É!
— respondeu a minha avó. Saí
da cozinha a correr. Minha mãe acompanhou-me. Quando
cheguei ao largo da Pedra de Hera, vi a Ana, o Pedro, a Joana e o Ricardo, o
velho táxi do senhor Joaquim a largar fumo e um homem alto e magro, de fato e
gravata. Esse desconhecido ajudava o senhor Joaquim a retirar do velho táxi
uma grande mala castanha. Três malas estavam amontoadas no chão. Ao
ver-me, o senhor Joaquim disse, de dedo apontado: — Ó
Zé, olha quem está ali! O
homem alto e magro olhou para a minha mãe e depois para mim. Abriu os braços
e começou a caminhar devagarinho. Eu estava bem colado à minha mãe e vi que
ele tinha os olhos muito brilhantes e sorria. Aqueles
braços abertos vieram enlaçar-se na minha mãe. Estiveram imenso tempo
abraçados. E um manto de silêncio envolveu o largo. Depois
o homem olhou para mim. E, de repente, pegou em mim, atirou-me ao ar, como se
eu fosse uma pena de um pássaro e acabei por cair nos seus braços. Apertou-me
contra o seu peito. E eu
apercebi-me que os nossos corações batiam com muita força. —
Não dás um beijo ao teu pai? — perguntou. E eu
dei. A cara dele tinha uma barba que picava. Os beijos dele eram húmidos. Quando
meu pai me pôs no chão, toda a gente da Pedra de Hera estava no largo. O
último a chegar foi o senhor Afonso. E eu
fiquei muito admirado: era a primeira vez que eu via lágrimas nos seus olhos. Quando
a escuridão tomou conta da Pedra de Hera, fui dizer ao senhor Afonso para vir
consoar connosco, como era costume. Nessa
noite, a nossa sala ficou cheia de gente muito faladora à volta da mesa
comprida. E era uma alegre confusão: — Dá
cá as batatas! —
Passa para aqui essa travessa de bacalhau! —
Não entornes o azeite! —
Quem é que tem a garrafa do vinagre? —
Estas tronchas estão muito paladosas. Só a geada é que lhes dá este sabor! —
Quero aletria! —
Dá-me daí um sonho! —
Que belas rabanadas! —
Quero outro bolinho de chila! —
Olha o que fizeste à toalha! Que grande nódoa de vinho… — É
Natal, não faz mal… — O
que eu mais gosto é de formigos. Ah, este sabor do mel é tão bom! Quero mais
um bocadinho. —
Não quero mais nada. Estou satisfeito. — Ó
Zé, bebe mais um cálice de vinho fino! —
Está aqui muito calor! —
Quando é que vem o Menino Jesus? —
Não há-de demorar!… —
Não dormes, menino! —
Quem quer figos secos? —
Vamos jogar o par e o pernão? —
Atenção, o rapa vai rodar… Mãos abertas em cima da mesa! —
Rapa, tira, põe e deixa! —
Rapa os pinhões todos! —
Tanta loiça para lavar! —
Oxalá que para o ano toda a gente esteja aqui! —
Tenho sono… — A
missa do Galo deve estar a começar. —
Que horas são? —
Breve é meia-noite! O tempo corre! — Lá
fora está um frio de rachar. Agasalhem-se! De
repente, um sono muito forte tomou conta de mim. Tinha sido um dia muito
especial. Fui
ao meu quarto buscar um sapato e pu-lo na lareira. Sentei-me no colo de meu
pai e… E
não me lembro de mais nada! Acordei
com o cócórócócó do Pintinhas. O Pintinhas era o nosso galo de crista
tombada. Eu é que lhe tinha posto esse nome por causa das suas penas com
muitas cores. O
Pintinhas acordou-me e eu deixei-me ficar estendido na cama, com os
cobertores por cima da cabeça. Na Pedra de Hera só se ouvia o cantar dos
galos e o latido dos cães mais medrosos. Era
tão bom ficar a dormitar! Depois,
lembrei-me que era dia de Natal. E a vontade de ficar no morninho gostoso da
cama passou num instante. O Menino Jesus já tinha passado pela minha casa e
eu ali deitado!… Nem
sequer tive tempo de me vestir e calçar. Sempre a correr, em bicos de pés
para não acordar a minha avó nem os meus pais, atravessei a sala e entrei na
cozinha. Era gelado o chão da cozinha, mas a pedra da lareira ainda estava
morna. A minha gata Tareca estava lá enroscada e não gostou nada que eu
aparecesse. Sentei-me
num banco, pus os pés na pedra e ali fiquei a olhar, com o coração a bater
com muita força. Pousado na lareira estava um grande embrulho. Que prenda estaria
ali dentro? Eu nunca tinha visto um embrulho tão grande… Devagarinho,
muito, devagarinho, assim como quem come um chocolate delicioso em pequenas
dentadas, comecei a tirar o laço. Oh! Era um laço tão bonito, tão dourado,
que dava pena ter de o desfazer. Mas a vontade de ver o que estava ali dentro
era tão grande!… Agora
que o laço estava enrolado em cima da mesa, era preciso retirar o papel. Era
um papel vermelho, muito mais vermelho do que a crista do Pintinhas. Não, não
podia estragar um papel tão bonito. Com ele até podia fazer moinhos de vento. Com
muito cuidado, fui retirando o papel. O
que estaria dentro daquela caixa de cartão? O que seria? O que seria? Agora
que o papel estava dobrado em cima da mesa, era preciso tirar a tampa da
caixa. O que estaria ali dentro? Tirei
a tampa. Vi o que estava dentro da caixa e soltei um grito que espantou a
Tareca. Dentro
da caixa estava um livro cheio de histórias, um livro de capa dura com muitas
folhas cheias de linhas azuis sem uma única palavra, uma caneta de tinta
permanente, um par de meias, uma gravata vermelha e um tambor. Agora
que as prendas estavam alinhadas em cima da mesa, era preciso admirá-las e
decidir qual delas deveria usar pela primeira vez. De
repente, senti que tinha os pés gelados. Peguei nas prendas e levei-as para a
minha cama. E
ali fiquei muito quieto a saborear o espanto e a alegria. Por
muitos anos que viva, nunca hei-de esquecer esse dia de Natal vivido nessa
aldeia muito pequena, escondida por uma enorme mancha de altos pinheiros e carvalhos
gigantescos. Pedra de Hera era o seu nome. Vilarelho,
Fevereiro de 1997 António
Mota Sonhos
de Natal V. N.
Gaia, Edições Gailivro, 2003 Adaptação Para: - Continuar a leitura em: Histórias - Voltar
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