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…….. . Histórias & Historinhas Uma Estrela Todos
os anos, pelo Natal, eu ia a Belém. A viagem começava em Dezembro, no
princípio das férias. Primeiro pela colheita do musgo, nos recantos mais
húmidos do jardim. Cortava-se como um bolo, era bom sentir as grandes fatias
despregarem-se da areia, dos muros ou dos troncos das árvores velhas,
principalmente da ameixieira. Enchia-se a canastra devagar, enquanto a avó ia
montando o que hoje se chamaria as estruturas, ou mesmo as infra-estruturas,
junto da parede da sala de jantar que dava para o jardim. Eram caixotes,
caixas de chapéus e de sapatos viradas do avesso, tábuas, que pouco a pouco
ela ia cobrindo de musgo, ao mesmo tempo que fazia carreiros e caminhos com
areia e areão. Mais tarde, os rios e os lagos, com bocados de espelhos antigos,
de vidros ou mesmo de travessas cheias de água. Até que todos os caixotes,
caixas e tábuas desapareciam. Ficavam montanhas, planícies, rios, lagos. Era
uma nova criação do mundo. Aqui e ali uma casinha ou um pastor com suas
cabras. E todos os caminhos iam para Belém. Não
era como o presépio da Igreja que estava sempre todo pronto, mesmo antes de o
Menino nascer. A cabana, a vaca, o burro, os três reis do Oriente. Maria,
José, Jesus deitado nas palhinhas. Via-se logo que era a fingir. Não o da
avó, que era mais do que um presépio, era uma peregrinação, uma jornada
mágica ou, se quiserem, um milagre. Nós estávamos ali e não estávamos ali. De
repente era a Judeia, passeávamos nas margens do Tiberíades, andávamos pelo
Velho Testamento, João Baptista baptizava nas águas do Jordão e aquele monte,
ao longe, podia ser Sinai ou talvez o último lugar onde Moisés, sem lá
entrar, viu finalmente a terra onde corria o leite e o mel. Mas agora era o
Novo Testamento. A avó ia buscar as figuras ao sótão, eram bonecos de barro
comprados nas feiras, alguns mais antigos, de porcelana inglesa, como aquele
caçador que a avó colocava à frente dizendo: Este é o pai. Seguia-se a mãe,
de vestido comprido, dir-se-ia que ia para o baile, mas não, saía de cima de
uma mesinha da sala de visitas e agora estava ao lado do pai, olhando
levemente para trás onde, entretanto, a avó já tinha colocado figuras mais
toscas, eu, a minha irmã, os primos, alguns amigos, todos a caminho de Belém. — E
a avó? — perguntava eu. — Eu
já estou velha para essas andanças. De
dia para dia mudávamos de lugar. E todas as manhãs deparávamos com novas
casas, mais rebanhos, pastores, gente que descia das serras, atravessava os
rios e os lagos. Os caminhos ficavam cada vez mais cheios. E todos iam para
Belém. À noite tremulavam luzes. Acendiam e apagavam. Mas ainda não se via a
cabana, nem Maria, nem José. Então
uma noite, entre as estrelas do céu, aparecia uma que brilhava mais que
todas. —
Esta é a estrela — dizia a avó. Era
uma estrela que nos guiava. Na manhã seguinte lá estavam eles, os três reis
do Oriente, Magos, explicava o pai, que também não dizia Pai Natal, dizia S.
Nicolau, talvez por influência de uma misse de origem russa que em pequeno
lhe falava de renas e trenós e de S. Nicolau atravessando as estepes. Cheirava
a musgo na sala de jantar. Cheirava a musgo e a lenha molhada que secava em
frente do fogão. E os Magos lá vinham, a pé, de burro, de camelo. Traziam o
oiro, o incenso, a mirra. Às vezes nós, os mais pequenos, juntávamo-nos e
cantávamos: “Os três reis do Oriente/Já chegaram a Belém.” —
Não chegaram nada — atalhava a avó — ainda não. Estávamos
cada vez mais perto. E também nervosos. Confesso que às vezes fazia batota.
Empurrava-os um pouco mais para a frente, para mais perto de Belém e do lugar
onde eu sabia que mais tarde ou mais cedo a avó ia pôr a cabana. Mas ela
descobria. —
Não lucras nada com isso, podes apressar toda a gente, não podes apressar o
tempo. Cada
vez havia mais luzes na Judeia. Por vezes surgiam novos lagos, eram mistérios
da minha avó. E a estrela lá estava, a grande estrela de prata que brilhava
mais do que todas as outras, às vezes eu ia à janela e via a projecção
daquela estrela, ficava confuso, já não sabia se era a estrela da sala ou uma
estrela do céu, era uma estrela nova, uma estrela de prata, era uma estrela
que nos guiava. No céu, na sala, na Judeia, talvez dentro de nós. Até
que chegava o primeiro dos grandes momentos solenes. A avó chamava-nos ao
sótão (nós dizíamos forro), abria uma velha arca e desempacotava a cabana.
Depois, muito comovida, quase sempre com lágrimas nos olhos, as figuras de
Maria e José. —
Não há nada tão antigo nesta casa, já eram dos avós dos meus avós. Impressionava-me
sobretudo o manto muito azul de Maria e o rosto magro, quase assustado, de
José. A avó limpava-os com muito cuidado e mandava-nos sair. Nunca nos deixou
ver o resto. À
noite, quando regressávamos da missa do galo, a que a avó não ia, chegávamos
a casa e finalmente estávamos em Belém. A
estrela brilhava intensamente sobre a cabana, Maria e José debruçavam-se
sobre o berço, onde Jesus, todo rosado, deitado nas palhinhas, agitava os
braços e as pernas, envolvido pelo bafo quente dos animais, enquanto os três
reis do Oriente, agora sim, chegavam a Belém para depositar aos pés do Menino
o oiro, o incenso, a mirra. E vinham os pastores, e vinha o pai, de caçador,
a mãe, de vestido de baile, e vínhamos nós, eu, a minha irmã, os primos, não
eramos de porcelana nem de barro, estávamos ali em carne e osso, era noite de
Natal, uma estrela nos guiava, brilhava sobre a Judeia e sobre o presépio,
brilhava cá fora entre as estrelas, brilhava dentro de nós. Naquela noite,
naquele momento, nós não estávamos na sala de jantar em frente do presépio,
tínhamos chegado finalmente a Belém para adorar o Menino ao lado de Maria e
José e dos três reis do Oriente, Magos, não consegui deixar de corrigir o meu
pai. Mas mágica, verdadeira mágica, era a avó. Era ela que fazia o milagre da
transfiguração, trazia o Natal para dentro de casa, levava-nos a todos até Belém.
O cheiro a musgo e a lenha. Os montes, os vales, os rios, os lagos. Caminhos
e caminhos que iam para Belém. E a estrela de prata, a estrela que nos
guiava. Era uma estrela no céu, dentro de casa, dentro de nós. Pela mão da
avó ela brilhava. Pela sua magia, Belém estava dentro de casa. E a casa
também ia até Belém. Mais
tarde, muito mais tarde, eu estava no exílio. Na noite de Natal, os
revolucionários ficavam tristes e nostálgicos. Talvez recordassem outras
avós, outros presépios, outros lugares. Reuniam- se em casa deste ou daquele,
improvisava-se uma árvore de Natal, trocavam-se presentes. Mas ninguém, nem
mesmo os mais duros, os que faziam gala em dizer que o Natal para eles não
significava nada, nem mesmo esses conseguiam disfarçar uma sombra no olhar.
Saudade, dir-se-á. Mas talvez fosse mais do que saudade e solidão e o pior de
todos os exílios é o de se sentir estrangeiro no mundo. Talvez fosse a
consciência de que, para lá de todas as crenças ou não crenças, havia um
irremediável sentimento de perda. Muitas vezes me perguntei o que seria. Mas
não conseguia responder. Sentia o mesmo aperto, o mesmo buraco por dentro, o
mesmo sentimento de algo para sempre perdido. Uma
noite de Natal, em Paris, eu estava sozinho. Comprei uma garrafa de vinho do
Porto, mas não fui capaz de bebê-la assim, completamente só, num quarto de
criada num sexto andar duma velha rua do Quartier Latin. Peguei na garrafa e
fui até aos Halles. Procurei o bistrô onde costumava comer uma omelete de
fiambre. Felizmente estava aberto. Pedi a omelete e abri a garrafa. Havia
mais três solitários no bistrô, um velho de grandes barbas, um tipo com cara
de eslavo, um africano. Convidei-os para partilharem comigo a garrafa de
Porto, que não resistiu muito tempo. Encomendámos outras bebidas. —
Conta uma história de Natal do teu país — pediu o velho. — Só
se for a do presépio da minha avó. —
Então conta. Eu
contei. Era já muito tarde e o patrão disse-nos que queria fechar. Chegados à
rua, o africano apontou para o céu e disse-me: —
Olha. E eu
vi. Uma estrela que brilhava mais que as outras estrelas. Era uma estrela de
prata. A estrela da avó. Brilhava no céu, brilhava outra vez dentro de mim,
quase posso jurar que brilhava dentro dos outros três. Então
eu perguntei ao africano como se chamava. Ele respondeu: —
Baltazar. Perguntei
ao velho e ele disse: —
Melchior. E
sem que sequer eu lhe perguntasse, o eslavo disse: — O
meu nome é Gaspar. Era
noite de Natal e talvez ainda por magia da avó eu estava na rua, em Les
Halles, com os três reis do Oriente, Magos, diria o meu pai. — E
agora? — perguntei a Baltazar. —
Agora — respondeu o africano apontando a estrela — agora vamos para Belém. Lisboa,
3.10.2000 Manuel Alegre, Uma Estrela, Lisboa, Publicações Dom Quixote, 2005. Para: - Continuar a leitura em: Histórias - Voltar
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