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Histórias & Historinhas

 

O melhor Natal do António

 

A mãe chegou a casa atordoada, a queixar-se dos pés e a barafustar contra as lojas cheias de pessoas. O pai do António é que ouviu:

— Chego a casa e é este cheiro a fritos. Não estás farto de saber que me enjoa? Para mais grávida, e no oitavo mês.

— Desculpa — respondeu ele, atrapalhado — era para ser uma surpresa, gostas tanto de sonhos…

— Olha, desculpa-me tu, mas sinto-me tão mal…

Deram um beijo e ela foi deitar-se um pouco, agora a sentir-se mais culpada do que cansada, e foi ele, desconsolado, arrumar a cozinha.

O António levantou-se do sofá, foi encostar a porta da sala e ligar a televisão. Desligou-a logo de seguida: todos os natais o mesmo filme!

Felizmente, chegaram os avós e foram os três jogar à sueca aberta. Entretanto, os pais apareceram, com ar de quem já fizera as pazes e trouxeram figos, amêndoas, nozes, pistáchios e pinhões.

A avó afastou os cabelos dos olhos da mãe do António, como fazia quando ela ainda era a sua filhota esgrouviada, e perguntou-lhe:

— Lembras-te, Leonor, de quando ia buscar-te ao colégio e passávamos pela loja dos pássaros e eu te comprava um colar de pinhões? Só os comias em casa, porque gostavas de ir na rua com o colar, vaidosa…

— Eram ao preço da chuva, não eram? Até custa a crer.

Na televisão estava uma locutora a dizer que já ninguém enfeitava a árvore com fitas, que agora se usavam laços e que havia cada vez mais decorações de Natal: era o fecho das notícias. O António olhou para a árvore lá de casa, igual todos os anos, com bolas de várias cores e fitas prateadas e douradas, largas e muito fininhas, e pensou se seria uma árvore feia. Depois olhou para a locutora e percebeu que feia era ela.

Quando a tia Cristina chegar — pensou o António — com o tio Rui e as gémeas, vai ter tudo de andar encostado às estantes, a encolher a barriga. Na casa da avó sempre há mais espaço; aqui, a árvore de Natal quase ocupa a sala.

Faltava ainda o tio Gastão, mas esse não viria. É o único irmão do pai do António. Sente-se pouco à vontade entre muitas pessoas, de modo que não gosta especialmente do Natal, embora lembre com saudade os natais de quando era pequeno e os pais ainda eram vivos.

Naquele dia, o tio tinha ido buscar o António para o levar a almoçar fora. Preferiram ir a pé, a sentir o frio seco dos dias de Natal que chama as lágrimas aos olhos, põe os narizes vermelhos e faz andar as pessoas mais depressa nas ruas.

Passaram por três pais natais a distribuir publicidade de máquinas de lavar e coisas assim. Lembrou-se o António:

— Se os miúdos mais pequenos vêem estes pais natais todos, ficam a perceber que não há aquele outro.

E o tio Gastão, que há muitos anos deixou de acreditar no Pai Natal, pensou que realmente o que lhe valia era ter aquele sobrinho.

No restaurante chinês, o António pediu duas tigelas de arroz chau-chau e três crepes, que comeu com garfo e faca, orgulhoso do tio, que comia com pauzinhos como se fosse a coisa mais fácil do mundo.

Antes de se despedirem, já em casa, o tio Gastão tirou do bolso um presente para o António: uma enorme caneta preta, antiga e de tinta permanente, que o António se habituara a admirar no escritório do tio.

Para o Zé Manel, o Natal significa ter mais formas de bolos para lamber, uma árvore para tentar deitar ao chão, com muitas bolas e fitas para arrancar, e o colo das gémeas. É difícil compreender a simpatia que ele tem pelas primas do António, mesmo porque elas são muito magricelas, e os gatos, muito naturalmente, preferem colos fofos. Como os bebés, aliás. Nem elas tão-pouco lhe deram alguma vez de comer. E, no entanto, desta vez, como sempre, assim que a Cláudia e a Vera chegaram, o bicho correu para elas e não as deixou mais. Elas sentaram-se muito juntinhas no sofá e o Zé refastelou-se, metade nas pernas de uma, metade nas da outra. Como se as duas tivessem um só colo, muito comprido — uma boa cama, embora dura.

Qualquer par de gémeos é sempre um pouco cómico. Estas, então, imaginem: sempre juntas, sempre de auscultadores e a trocá-los — uma quer a toda a hora que a outra oiça uma música qualquer. O António farta-se de rir, mas elas não se sentem gozadas. Nunca amuam, riem-se simplesmente também. São muito boas pessoas.

A mãe do António foi mostrar à irmã as prendas de Natal que já tinha recebido de amigos: tudo roupinhas para o bebé. A tia Cristina até pensou: coitada da Leonor, também há-de gostar de receber coisas para ela! Ainda bem que lhe comprei um perfume.

De facto, não são só as crianças que precisam de mimo e, se a mãe do António tivesse lido os pensamentos da irmã, não teria depois dado tanta importância ao que ela disse.

— Ainda todas amarelas, vá que não vá. Mas as outras… Jesus, que foleiras! — disse a tia Cristina.

— Que mal é que têm?! — perguntou a mãe do António, a rir-se do entusiasmo com que a irmã protestava sempre, contra tudo e todos.

— Mas tu não vês que as cores não dizem?

— Olha, eu gosto… — arriscou a mãe do António.

— Também, tu gostas de tudo.

Foi só uma pequena falta de jeito, mas o certo é que a mãe do António ficou instantaneamente com um nó na garganta. Pôs-se a pensar no seu dia-a-dia, no que fazia e no que não fazia, no pequeno círculo de pessoas com quem se dava. Seria pouco?

A tia Cristina não tinha querido magoar ninguém, até porque ela não achava realmente que a vida da irmã fosse pobre. E quando a mãe do António se escapou discretamente para a casa de banho, só houve uma pessoa que percebeu que alguma coisa não estava bem: foi o tio Rui. A sensibilidade dele deve ser das mais inteligentes de Portugal — até faz impressão. E como a cunhada é das maiores amigas que ele tem, foi-lhe fácil passar o serão a conversar com ela e a pedir-lhe opiniões e conselhos. Aos poucos, a mãe do António foi voltando a gostar de si própria.

À meia-noite abriram-se as prendas. O António ficou um bocado decepcionado, porque queria um par de chuteiras e teve um par de sapatos. O que vale é que, com este par de inutilidades, os pais deram-lhe cinco volumes da colecção Langelot — agente secreto. Os avós desta vez não lhe deram peúgas, mas deram-lhe um pijama! Os tios é que lhe ofereceram uns binóculos fantásticos e as gémeas gravaram-lhe, da rádio, uma série de músicas da moda que não suportam, mas que sabem que ele adora. Foram impecáveis.

Ainda não eram oito da manhã quando o pai acordou bruscamente o António: a mãe tinha começado com dores, tinha de a levar à maternidade. Não sabia se ela ia ter o bebé já ou se voltava para casa. Talvez por não se terem completado ainda os normais nove meses de gravidez, o pai do António estava incrivelmente nervoso. Pegava em coisas e largava-as, esquecia-se do que estava à procura, mexia-se demasiado e nunca mais saía de casa. Por fim encostou-se a um móvel e pousou a testa na mão, com um ar desesperado. A mãe do António também já estava prestes a perder a calma, menos pelas dores do que pelo marido. E suplicava:

— Por favor, agora é a minha vez de estar nervosa e a tua de estares forte. Vamos embora!

O António estava apavorado, mas percebeu que tinha de arranjar forças para se conter. E então, dando umas palmadinhas no braço do pai, começou a falar-lhe com voz firme:

— Pai, quando fui eu, a mãe também teve dores, não foi? E depois passaram. A mãe não ficou com nenhuma raiva de mim, esqueceu tudo e ficámos os dois bem de saúde. Agora há-de ser a mesma coisa. E a mãe até faz ginástica para aprender a respirar bem e a ajudar o bebé a sair… não vai custar muito, pois não, mãe?

— Vai ser canja — respondeu a mãe.

Só quando se viu sozinho em casa é que o António pôde sentir medo à vontade. Sabia que não era canja. Mesmo tendo aprendido que as mulheres alargam durante a gravidez para o bebé poder passar, aquilo parecia-lhe uma grande violência.

A tia chegou para lhe fazer companhia e disse-lhe que o mais provável era terem feito mal as contas e o bebé estar já prontinho. Explicou-lhe também que o segundo filho custa sempre menos, principalmente quando a mãe é novinha, e que na família dele todas as mulheres eram boas parideiras, pelo que dali a uma hora já teriam com certeza notícias. E começaram a pensar em nomes.

— E se fosse Sebastião? — sugeriu o António.

— Não, que esse come tudo, tudo, tudo.

— E João?

— Não, que lá morreu o João Ratão, cozido e assado no caldeirão.

— E Rodrigo?

— Rodrigo é a paixão da Júlia. Não conheces? Eu conto.

E contou: o tio Rui e a irmã, a Júlia, cresceram numa quintarola, no Alentejo, onde havia um porquinho, muito gordinho e asseado, e mais meia dúzia de bichos: a porca, o porco, umas galinhas e um burro.

A Júlia era levada da breca. Gostava de correr e assustar as galinhas, de cavalgar e de enfeitar o burro com colares, chapéus e écharpes da mãe. E adorava o porquinho, a quem dera o nome de Rodrigo. Aqui é que começaram os problemas com os pais. Ora ia buscá-lo às escondidas, à noite, e o aconchegava entre as melhores camisolas ou as melhores mantas, numa gaveta aberta da cómoda do quarto; ora lhe punha uma babete e lhe dava às colheres dos melhores doces de ovos que havia na cozinha; ora tentava levá-lo às cavalitas, muito curvada e vermelha com aquele peso, quase a deixá-lo cair. Os pais tentaram tudo para a «curar» daquele amor. Primeiro tentaram convencê-la de que tudo aquilo era mal empregue num porco. Resposta da Júlia: «Devemos tratar bem os nossos amigos e ele é o meu maior amigo». Depois argumentaram que era bom ela fazer novos amigos, desta vez pessoas. Resposta da Júlia: «Mas quando fazemos novos amigos devemos esquecer os outros?». A seguir explicaram-lhe que as pessoas só brincam com animais de estimação, como cães, gatos, etc… e que os porcos eram animais úteis, bons no prato. Aí a Júlia desatou a berrar que o amigo dela não era só um porco, era o Rodrigo, que ela estimava muito; e que se alguém voltasse a falar em cozinhar o Rodrigo, ela deixava de comer o que quer que fosse. O pior é que os pais tinham a certeza absoluta de que ela faria tudo o que estava a dizer.

A Júlia cresceu e o Rodrigo também. O tio Rui casou e mudou-se para Lisboa, onde conhecera a tia, e a Júlia só não casava porque não queria. Finalmente, houve um namorado que concordou que os ares de Lisboa não eram bons para o Rodrigo e que era melhor ficarem todos na terra deles. Casaram, lá estão, e não hão-de deixar nunca que alguém coma carne de Rodrigo à alentejana. Há-de morrer de velho, este porco.

Acabada a história, tocou o telefone. Foi a tia Cristina que atendeu e, pela cara dela, o António percebeu logo que estava tudo bem. O parto tinha sido fácil, a mãe estava bem e já podia receber visitas, o bebé era pequenino e tinha de ficar ali uns dias sob vigilância, mas também parecia estar muito bem. E era uma menina! O António percebeu então que tinha sido um disparate preferir um irmão, pensar em nomes de rapazes e planear jogos de bola: agora estava tão contente com a irmã! Como era dia de Natal, o António decidiu que tinha de dar um presente à irmã e pediu por isso à tia Cristina que o levasse a uma loja de brinquedos, de caminho para a maternidade. Ela lembrou-lhe que todas as lojas estavam fechadas, mas que seria muito engraçado se o António desse à irmã o urso de que ele mais gostava quando era pequeno. Ele achou uma boa ideia e foram os dois fazer um grande embrulho, com uma fita cor-de-rosa, porque era para uma menina.

Mónica Leal da Silva, O melhor Natal do António, Lisboa, Edições Cotovia, 1993

 

 

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