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…….. . Histórias & Historinhas O melhor presente de Natal do mundo A todos quantos, de ambos os lados do conflito, Vi-a
numa loja de velharias em Bridport. Era uma escrivaninha de tampo corrediço,
e o vendedor afirmava tratar-se de uma peça de carvalho do início do século
XIX. Havia anos que procurava uma escrivaninha deste estilo, mas nunca tinha
encontrado uma que pudesse comprar. Esta não estava em bom estado: a tampa
mostrava várias rachadelas, uma das pernas estava mal consertada, e tinha
partes queimadas. Não
era cara, e pensei que eu próprio poderia tentar restaurá-la. Seria um risco,
um desafio, mas era a minha única oportunidade de possuir uma escrivaninha de
tampo corrediço. Paguei o que o homem pediu, e levei-a para a minha oficina,
na parte de trás da garagem. Comecei a restaurá-la na véspera de Natal,
sobretudo devido à quantidade de visitas que tinha em casa. Faziam muito
barulho e eu queria encontrar algum sossego. Abri
o tampo e puxei as gavetas. Cada uma delas anunciava um desafio maior do que
eu tinha imaginado. O verniz estava a descascar um pouco por todo o lado:
parecia que a peça tinha sido salva de um naufrágio. Era evidente que esta
escrivaninha tinha atravessado fogo e água. A última gaveta estava empenada e
tentei abri-la com cuidado. Mas os meus esforços não resultaram e tive de
usar toda a força que pude. Bati-lhe com o punho e logo ela se abriu,
revelando um compartimento secreto. Este continha uma pequena caixa de folha,
com uma folha de papel pautada, na qual a mão trémula de alguém tinha
escrito: “A última carta de Jim, recebida a 25 de Janeiro de 1915. Para ser
enterrada comigo, quando eu morrer.” Soube,
logo que o fiz, que não deveria abrir a caixa, mas a curiosidade levou a
melhor sobre os meus escrúpulos. Como sempre. Dentro
da caixa estava um envelope, endereçado a Mrs Jim Macpherson, 12 Copper
Beeches, Bridport, Dorset. Peguei na carta e abri-a. Estava escrita a lápis e
datava de 26 de Dezembro de 1914. Querida Connie Escrevo-te, feliz, porque acaba de acontecer algo de
maravilhoso que quero contar-te desde já. Ontem de manhã, encontrávamo-nos
todos nas trincheiras. Era Dia de Natal e estava uma das manhãs mais bonitas
que vira até então, tranquila e gelada como uma manhã de Natal deve ser. Gostava de poder dizer-te que fomos nós a ter a
iniciativa. Mas a verdade, envergonho-me de to dizer, foi que os Alemães é
que tomaram a iniciativa. Primeiro, alguém viu uma bandeira branca a ondular
nas trincheiras do inimigo. Depois, alguém gritou: — Feliz Natal! Feliz Natal! Quando nos tínhamos recomposto da surpresa, alguns de
nós retribuíram: — Feliz Natal para vocês também! Pensei que tudo ficaria por ali. Todos pensámos,
aliás. Mas, de repente, vimos um deles, no seu sobretudo cinzento, a agitar
uma bandeira branca. — Não atirem, rapazes! — alguém gritou. E logo vimos mais Alemães, uns a seguir aos outros, a
aproximar-se da nossa trincheira. — Mantenham-se em baixo — ordenei aos meus homens. —
É uma armadilha. Mas não era tal. Um dos Alemães agitava uma garrafa no ar. — É Dia de Natal. Temos cerveja e salsichas. Querem
juntar-se a nós? Por esta altura, já dezenas deles se dirigiam até
nós, atravessando a terra de ninguém que nos separava. Nenhum deles
transportava armas. O soldado Morris foi o primeiro a mexer-se. — Vamos lá, rapazes! De que estamos à espera? Ninguém conseguiu impedi-los. Eu era o oficial e
devia ter travado tudo aquilo imediatamente. Mas nem sequer me ocorreu.
Homens de ambos os lados, vestidos com sobretudos cinzentos ou com uniformes
caqui, caminhavam em direcção uns aos outros, e eu era um deles. Fazia parte
daquilo. No meio da guerra, celebrávamos a paz. Não podes imaginar, querida Connie, o que senti,
quando olhei, nos olhos, o oficial alemão que se aproximava de mim, com a mão
estendida. — Sou o Capitão Jim Macpherson — respondi. — Sou
professor em Dorset, no leste de Inglaterra. Feliz Natal para si, também! — Dorset — repetiu. — Conheço muito bem esse lugar. Partilhámos a minha ração de aguardente e a excelente
salsicha dele. E falámos, falámos sem parar. O inglês dele era excelente, mas
acontece que nunca tinha posto os pés em Dorset. Tudo o que sabia sobre
Inglaterra tinha-o aprendido na escola e nos livros que lia em inglês. O seu
escritor favorito era Thomas Hardy,e o seu livro preferido Far from the Madding Crowd. Naquela terra
de ninguém, conversámos sobre Bathsheba, Gabriel Oak, Sergeant Troy e Dorset.
Tinha mulher e um filho, com seis meses de idade. Enquanto olhava à minha
volta, só via manchas de cor cinzenta e caqui a fumar, a rir, a comer e a
beber. Hans Wolf e eu partilhámos o que restava do teu óptimo bolo de Natal.
Segundo ele, o teu maçapão era o melhor que alguma vez provara. Concordei.
Concordávamos em tudo, Connie, e ele era meu inimigo. Nunca houvera uma festa
de Natal assim. Alguém trouxe uma bola de futebol. Os sobretudos
foram despidos e transformados em postes de balizas. O jogo começou. Hans
Wolf e eu assistimos e encorajámos os jogadores, aplaudindo e batendo com os
pés no chão, para afastarmos o frio. Houve um momento em que vi a nossa
respiração misturar-se. Ele viu o mesmo e sorriu. — Jim Macpherson — disse, passado um bocado — penso
que é assim que esta guerra devia ser resolvida. Como um jogo de futebol.
Ninguém morre num jogo de futebol. Ninguém fica órfão. Nenhuma mulher fica
viúva. Quando o jogo acabou, já há muito tinham desaparecido
a cerveja, o bolo, a aguardente e as salsichas. Desejei felicidades a Hans e
fiz votos de que voltasse a ver a família em breve, de que a guerra acabasse
depressa, e de que todos regressássemos a casa sãos e salvos. Respondeu-me: — Penso que é o que todos os soldados querem, sejam
Alemães ou Ingleses. Tome cuidado consigo, Jim Macpherson. Nunca o
esquecerei, nem esquecerei este momento. Fez-me continência e afastou-se, devagar, como que
involuntariamente. Virou-se para acenar, uma vez mais, e logo se transformou
num elemento mais, entre as centenas de homens vestidos de cinzento, que
regressavam às suas trincheiras. Nessa noite, ouvimo-los entoar um belo cântico de Natal, Noite Feliz. Os nossos rapazes responderam com Enquanto os pastores observavam. Trocámos cânticos durante mais algum tempo e depois calámo-nos. Foi um momento de paz e boa vontade, que recordarei com carinho enquanto viver. Querida Connie, no Natal do ano que vem, esta guerra
não será mais do que uma recordação vaga e terrível. Sei, por tudo o que
aconteceu hoje aqui, o quanto ambos os exércitos desejam a paz. Em breve
estaremos de novo juntos, tenho a certeza. O teu querido Jim Dobrei
a carta e coloquei-a de novo no envelope. Não contei a ninguém o meu achado:
guardei para mim mesmo a vergonha da minha intrusão. Penso que foi este
sentimento de culpa que me manteve toda a noite acordado. Na manhã seguinte,
já sabia o que devia fazer. Apresentei uma desculpa qualquer e não fui à
igreja com o resto da família. Guiei até Bridport, que ficava apenas a uns
quilómetros dali. Perguntei a um rapaz, que passeava o cão, onde ficava a
casa. O
número 12 não passava de uma concha vazia, com um telhado em ruínas e as
janelas entaipadas. Toquei na casa ao lado e perguntei se sabiam o paradeiro
de Mrs Macpherson. Um homem de idade, em pantufas, respondeu afirmativamente.
Disse que era uma senhora amorosa, um pouco confusa, o que era normal, dado
que tinha 101 anos. Estava
em casa quando esta se incendiou. Ninguém sabia como o incêndio começara, mas
pensavam que deveriam ter sido as velas. A senhora usava velas em vez de
electricidade, porque achava que a electricidade era demasiado cara. O
bombeiro tinha-a salvo a tempo. Agora vivia num lar chamado Burlington House,
na estrada de Dorchester, do outro lado da cidade. Encontrei
Burlington House com facilidade. Havia serpentinas de papel no corredor e uma
árvore de Natal iluminada estava montada num canto, com um anjinho no topo.
Disse que era um amigo de Mrs Macpherson e que viera trazer--lhe um presente
de Natal. Podia ver, através da porta envidraçada da sala que estavam todos
com chapéus de papel e a cantar Good King Wenceslas. A Directora também usava
um chapéu e ficou contente por me ver. Até me ofereceu uma empada de carne
picada. Depois conduziu-me ao quarto de Mrs Macpherson. —
Mrs Macpherson não está na sala com os outros, porque hoje sente-se bastante
confusa. Não tem família e ninguém a visita. Tenho a certeza de que vai
gostar muito de o ver. Conduziu-me
até uma estufa, cheia de cadeiras de palhinha e vasos com plantas, e
deixou-me a sós com Mrs Macpherson. Esta encontrava-se sentada numa cadeira
de rodas, com as mãos no regaço. O seu cabelo fino, branco e prateado, estava
apanhado num rolo. Contemplava o jardim, absorta. —
Olá! — saudei. Virou
a cabeça e olhou-me com um olhar vago. —
Feliz Natal, Connie! — continuei. — Encontrei isto. Penso que é seu. Enquanto
eu falava, os olhos dela nunca se desviaram da minha cara. Abri a caixinha de
folha e dei-lha. Os olhos dela iluminaram-se num reconhecimento do objecto e
a sua face irradiou uma felicidade súbita. Falei-lhe da escrivaninha, de como
a encontrara. Creio que não me ouviu. Ficou calada durante algum tempo,
enquanto acariciava docemente a carta com os dedos. De
repente, pegou na minha mão. Tinha os olhos marejados de lágrimas. —
Bem me disseste que vinhas pelo Natal, querido. E eis-te aqui, o melhor
presente de Natal do mundo. Vem para perto de mim e senta-te, meu querido
Jim. Sentei-me
ao lado dela e beijou-me a face. —
Lia constantemente a tua carta. Era como se ouvisse a tua voz dentro da minha
cabeça. Era uma maneira de sentir-te comigo. E agora estás mesmo. Agora que
voltaste, podes ler a carta tu próprio. Queres lê-la? Só quero ouvir a tua
voz de novo, Jim. Depois podemos tomar chá. Fiz-te um belo bolo de Natal em
maçapão. Sei o quanto adoras maçapão. Michael Morpurgo, The best Christmas present in the
world, London, Egmont Books, 2004. Tradução e adaptação. Para: - Continuar a leitura em: Histórias - Voltar
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