……..
.
Anjos & Arcanjos
Espaço dedicado aos Anjos
Catequese do papa João Paulo II – sobre os
Anjos
No ano de 1986 o papa João Paulo II fez
uma série de oito catequeses sobre os anjos. Não pronunciamento mais claro do
Magistério da Igreja sobre este assunto. Vamos conhecer estas Catequeses que
esclarecem a verdade sobre os seres espirituais criados por Deus, pois, como
o próprio papa disse: "É preciso reconhecer que a confusão às vezes é
grande, com conseqüente risco de fazer passar como fé da Igreja a respeito
dos anjos aquilo que não pertence à fé, ou, vice-versa, de omitir algum
aspecto importante da verdade revelada". (Catequese 1)
1. CRIADOR DAS "COISAS VISÍVEIS E
INVISÍVEIS"
Audiência do dia 9 de Julho de 1986
(Publicada
no L´OSSERVATORE ROMANO, ed. port., no dia 13 de julho de 1986)
1. As nossas catequeses sobre Deus, criador do mundo, não podem terminar sem
dedicar adequada atenção a um precioso conteúdo da Revelação divina: a
criação dos seres puramente espirituais, que a Sagrada Escritura chama
"anjos". Esta criação aparece claramente nos símbolos da fé, de
modo particular no símbolo niceno-constantinopolitano: "Creio em um só
Deus, Pai todo-poderoso, Criador do céu e da terra, de todas as coisas (isto
é, entes ou seres) visíveis e invisíveis". Sabemos que o homem goza, no
interior da criação, de uma posição singular: graças ao seu corpo, pertence
ao mundo visível, enquanto pela alma espiritual, que vivifica o corpo, se
encontra quase no confim entre a criação visível e a invisível. A esta
última, segundo o Credo que a Igreja professa a luz da Revelação, pertencem
outros seres, puramente espirituais, portanto não próprios do mundo visível,
embora estejam presentes e operem neles. Estes constituem um mundo
específico.
2. Hoje, como nos tempos passados, discute-se com mais ou menos sabedoria
sobre estes seres espirituais. É preciso reconhecer que a confusão às vezes é
grande, com conseqüente risco de fazer passar como fé da Igreja a respeito
dos anjos aquilo que não pertence à fé, ou, vice versa, de omitir algum
aspecto importante da verdade revelada. A existência dos seres espirituais, a
que de costume a Sagrada Escritura chama "anjos", era já negada,
nos tempos de Cristo, pelos saduceus (cf. At 23,8). Negam-na também os
materialistas e os racionalistas de todos os tempos. Todavia, como perspicazmente
observa um teólogo moderno, "se nos quiséssemos desembaraçar dos anjos,
deveríamos rever radicalmente a Sagrada Escritura mesma, e com ela toda a
história da salvação" (A. Winklhofer, Die Welt der Engel, Ettal, 1961,
p. 144, nota 2; em Mysterium Salutís, II, 2, p. 726). Toda a Tradição é
unânime sobre esta questão. O Credo da Igreja e, no fundo, um eco que Paulo
escreve aos colossenses: N´Ele (Cristo) foram criadas todas as coisas nos
Céus e na terra, as visíveis e as invisíveis, os Tronos e as Dominações, os
Principados e as Potestades: tudo foi criado por Ele e para Ele (Cl. 1,16).
Ou seja, o Cristo, que como Filho "Verbo eterno e consubstancial ao Pai
é "primogênito de toda a criatura" (Cl. 1,15), está no centro do
universo, como razão e fundamento de toda a criação, como já vimos nas
catequeses passadas e como veremos ainda quando falarmos mais diretamente
Ele.
3. A referência ao "primado" de Cristo ajuda-nos a compreender que
a verdade acerca da existência e da obra dos anjos (bons e maus) não constitui
o conteúdo central da palavra de Deus. Na revelação, Deus fala antes de tudo
"aos homens... e conversa com eles, para os convidar e os receber em
comunhão com Ele", como lemos na Constituição Dei Verbum, do Concílio
Vaticano II (DV 2). "Assim a verdade profunda, tanto a respeito de Deus
como da salvação do homem", é o conteúdo central da revelação que
"resplandece" mais plenamente na pessoa de Cristo (cf. DV 2). A
verdade acerca dos anjos é em certo sentido "colateral", mas inseparável
da revelação central, que é a existência, a majestade e a glória do Criador
que refulgem em toda a criação ("visível" e "invisível")
e na ação salvífica de Deus na história do homem. Os anjos não são, portanto,
criaturas de primeiro plano na realidade da Revelação; contudo, pertence-lhe
plenamente, tanto que nalguns momentos os vemos realizar tarefas fundamentais
em nome de Deus mesmo.
4. Tudo o que pertence à criação reentra, segundo a Revelação, no mistério da
divina Providência. Afirma-o de modo exemplarmente conciso o Vaticano I que
já citamos mais de uma vez: "Tudo o que Deus criou, conserva-o e
dirige-o com Sua providência, que estende seu vigor de uma extremidade à
outra e governa todas as coisas com suavidade" (cf. Sb. 8,1).
"Todas as coisas estão a nu e a descoberto aos seus olhos" (cf. Hb
4,13) "mesmo o que se realizou por livre iniciativa das criaturas"
(DS 3003). A Providência abrange, por conseguinte, também o mundo dos puros
espíritos, que ainda mais plenamente do que os homens são seres racionais e
livres. Na Sagrada Escritura encontramos preciosas indicações que lhes dizem
respeito. Há também a revelação de um drama misterioso, embora real, que
tocou estas criaturas angélicas, sem que nada escapasse à eterna Sabedoria, a
qual com força (fortiter) e ao mesmo tempo com suavidade (suaviter) tudo leva
a cumprimento no reino do Pai, do Filho e do Espírito Santo.
5. Reconheçamos antes de tudo que a Providência, como amorosa Sabedoria de
Deus, se manifestou precisamente no criar seres puramente espirituais, para
que melhor se exprimisse a semelhança de Deus neles que superam de multo tudo
o que foi criado no mundo visível, juntamente com o homem, também ele
incancelável imagem de Deus. Deus, que é Espírito absolutamente perfeito,
reflete-se sobretudo nos seres espirituais que por natureza, isto é, devido a
sua espiritualidade, Lhe estão muito mais próximos do que as criaturas
materiais, e que constituem quase o "ambiente" mais próximo ao
Criador. A Sagrada Escritura oferece um testemunho bastante explícito desta
máxima proximidade a Deus, dos anjos, dos quais fala, com linguagem figurada,
como o "trono'' de Deus, das suas "legiões" do seu
"céu". Ela inspirou a poesia e a arte dos séculos cristãos que nos
apresentam os anjos, com a "corte de Deus".
2. CRIADOR DOS ANJOS, SERES LIVRES
Audiência do dia 23 de Julho de 1986
(Publicado
no L´OSSERVATORE ROMANO, ed. port., no dia 27 de julho de 1986.)
1. Continuamos hoje a nossa catequese sobre os anjos, cuja existência,
querida mediante um ato de amor eterno de Deus, professamos com as palavras
do símbolo niceno-constantinopolitano: "Creio em um só Deus, Pai
Todo-poderoso, Criador do céu e da terra, de todas as coisas visíveis e
invisíveis". Na perfeição da sua natureza espiritual, os anjos são
chamados desde o princípio, em virtude da sua inteligência, a conhecer a
verdade e a amar o bem que conhecem na verdade de modo muito mais perfeito do
que é possível ao homem. Este amor é o ato de uma vontade livre, pelo que
também para os anjos a liberdade significa possibilidade de efetuar uma
escolha favorável ou contra o Bem que eles conhecem, isto é, Deus mesmo.
Preciso repetir aqui o que já recordamos a seu tempo a propósito do homem:
criando os seres livres, Deus quis que no mundo se realizasse aquele amor
verdadeiro que só é possível quando tem por base a liberdade. Ele quis,
portanto, que a criatura, formada à imagem e semelhança do seu Criador,
pudesse do modo mais pleno possível tornar-se semelhante a Ele, Deus, que
"é amor" (Jo. 4,16). Criando os espíritos puros como seres livres,
Deus, na sua providência, não podia deixar de prever também a possibilidade
do pecado dos anjos. Mas, precisamente porque a providência é eterna
sabedoria que ama, Deus saberia tirar da história deste pecado,
incomparavelmente mais radical enquanto pecado de um espírito puro, o
definitivo bem de todo o cosmos criado.
2. Com efeito, como diz de modo claro a Revelação, o mundo dos espíritos
puros apresenta-se dividido em bons e maus. Pois bem, esta divisão não se
realizou por obra de Deus, mas em conseqüência da liberdade própria da
natureza espiritual de cada um deles. Realizou-se mediante a escolha que para
os seres puramente espirituais possui um caráter incomparavelmente mais
radical do que a do homem, e é irreversível dado o grau do caráter intuitivo e
de penetração do bem de que é dotada a sua inteligência. A este propósito
deve dizer-se também que os espíritos puros foram submetidos a uma prova de
caráter moral. Foi uma escolha decisiva a respeito, antes de tudo, de Deus
mesmo, um Deus conhecido de modo mais essencial e direto do que é possível ao
homem, um Deus que a estes seres espirituais tinha feito o dom, primeiro que
ao homem, de participar da sua natureza divina.
3. No caso dos puros espíritos a escolha decisiva dizia respeito antes de
tudo a Deus mesmo, primeiro e supremo bem, aceito ou rejeitado de modo mais
essencial e direto do que pode acontecer no raio de ação da vontade livre do
homem. Os espíritos puros têm um conhecimento de Deus incomparavelmente mais
perfeito do que o do homem, porque com o poder do seu intelecto, nem
condicionado nem limitado pela mediação do conhecimento sensível, vêem
inteiramente a grandeza do Ser infinito, da primeira Verdade, do sumo bem. A
esta sublime capacidade de conhecimento dos espíritos puros Deus ofereceu
mistério da sua divindade, tornando-os assim partícipes, mediante a graça, da
sua infinita glória. Precisamente porque são seres de natureza espiritual,
havia no seu intelecto a capacidade, o desejo desta elevação sobrenatural a
que Deus os tinha chamado, para fazer deles, muito antes do homem,
"participantes da natureza divina" (cf. 2Pd. 1,4), partícipes da
vida íntima dAquele que é Pai, Filho e Espírito Santo, dAquele que na
comunhão das três Pessoas Divinas "é Amor" (I. Jo. 4,16). Deus
tinha admitido todos os espíritos puros, primeiro e mais do que o homem, na
eterna comunhão do amor.
4. A escolha feita com base na verdade acerca de Deus, conhecida de forma
superior devido à lucidez da inteligência deles, dividiu também o mundo dos
puros espíritos em bons e maus. Os bons escolheram Deus como bem supremo e
definitivo, conhecido à luz do intelecto iluminado pela Revelação. Ter
escolhido Deus significa que se dirigiram a Ele com toda a força interior da
sua liberdade, força que é amor. Deus tornou-se a total e definitiva
finalidade da sua existência espiritual. Os outros, pelo contrário, voltaram
as costas a Deus em oposição à verdade do conhecimento que indicava nEle o
bem total e definitivo. Escolheram em oposição à revelação do mistério de
Deus, em oposição à sua graça que os tornava participantes da Trindade e da
eterna amizade com Deus na comunhão com Ele mediante o amor. Tendo como base
a sua liberdade criada, fizeram uma escolha radical e irreversível, tal como
os anjos bons, mas diametralmente oposta: em vez de uma aceitação de Deus
cheia de amor, opuseram-Lhe uma rejeição inspirada por um falso sentido de
auto-suficiência, de aversão e até de ódio que se transformou em rebelião.
5. Como se hão-de compreender esta oposição e esta rebelião a Deus em seres
dotados de tão viva inteligência e enriquecidos com tanta luz? Qual pode ser
o motivo desta radical e irreversível escolha contra Deus? De um ódio tão
profundo que pode parecer unicamente fruto de loucura? Os padres da Igreja e
os teólogos não hesitam em falar de "cegueira" produzida pela super
valorização da perfeição do próprio ser, levada até o ponto de velar a
supremacia de Deus, que, pelo contrário, exigia um ato dócil e obediente
submissão. Tudo isto parece estar expresso de modo conciso nas palavras:
"Não Vos servirei" (Jr. 2,20), que manifestam a radical e
irreversível recusa a tomar parte na edificação do reino de Deus no mundo
criado. "satanás", o espírito rebelde, quer o próprio reino, não o
de Deus, e erige´se em "primeiro" adversário do Criador, em
opositor da providência, em antagonista da sabedoria amorosa de Deus. Da
rebelião e do pecado do homem, devemos concluir acolhendo a sábia experiência
da Escritura que afirma: "Na soberba está contida muita corrupção"
(Tb. 4,13).
3. CRIADOR DAS COISAS
"INVISIVEIS": OS ANJOS
Audiência do dia 30 de Julho de 1986
(Publicada
no L´OSSERVATORE ROMANO, ed. port., no dia 3 de agosto de 1986.)
1. Na catequese passada detivemo-nos sobre o artigo do credo com o qual
proclamamos e confessamos Deus criador não só de todo o mundo criado, mas
também das "coisas invisíveis", e tratamos o argumento da
existência dos anjos chamados a declarar-se por Deus ou contra Deus com um
ato radical e irreversível de adesão ou de rejeição da sua vontade de salvação.
Ainda segundo a Sagrada Escritura, os anjos, enquanto criaturas puramente
espirituais, apresentam-se à reflexão da nossa mente como uma especial
realização da "imagem de Deus", Espírito perfeitíssimo, como Jesus
mesmo recorda à samaritana com as palavras: "Deus é espírito" (Jo
4,24). Os anjos são, sob este ponto de vista, as criaturas mais próximas do
modelo divino. O nome que a Sagrada Escritura lhes atribui indica que aquilo
que mais conta na Revelação é a verdade acerca das tarefas dos anjos em
relação aos homens: anjo (angelus) quer dizer, com efeito,
"mensageiro". O hebraico "malak", usado no Antigo
Testamento, significa mais propriamente "delegado" ou
"embaixador". Os anjos, criaturas espirituais, têm função de mediação
e de ministério nas relações mantidas entre Deus e os homens. Sob este
aspecto, a carta aos Hebreus dirá que a Cristo foi dado um "nome",
e por conseguinte um ministério de mediação, muito mais excelso que o dos
anjos (cf. Hb. 1,4).
2. O antigo testamento salienta sobretudo a especial participação dos anjos
na celebração da glória que o criador recebe como tributo de louvor da parte
do mundo criado. São de modo especial os Salmos que se fazem intérpretes
desta voz, quando, por exemplo, proclamam: "Louvai o Senhor, do alto dos
céus, louvai-o nas alturas do firmamento, louvai-o, Vós todos os seus anjos
(S1148,1´2). E de modo idêntico o Salmo 102 (103): "Bendizei o Senhor,
Vós todos os Seus anjos, que sois poderosos em força, que cumpris as Suas
ordens, sempre dóceis à Sua palavra" (SI 102/103,20). Este último
versículo do Salmo 102 indica que os anjos tomam parte, do modo que lhes é
próprio, no governo de Deus sobre a criação, como "poderosos"...
que cumprem as suas ordens segundo o plano estabelecido pela Divina
Providência. Em particular estão confiados aos anjos um cuidado especial e
solicitude pelos homens, em nome dos quais apresentam a Deus os seus pedidos
e as suas orações, como nos recorda, por exemplo, o Livro de Tobias (cf.
especialmente Tb. 3,17 e 12,12), enquanto o Salmo 90 proclama: "Mandou
os Seus anjos... Eles te levarão nas suas mãos, para que não tropeces em
pedra alguma" (cf. Sl. 90/91,11´12). Seguindo o livro de Daniel pode-se
afirmar que as tarefas dos anjos, como embaixadores do Deus vivo, abrangem
não só os homens individualmente e aqueles que têm especiais tarefas, mas
também nações inteiras (Dn. 10,13´21).
3. O Novo Testamento põe em realce as tarefas dos anjos em relação à missão
de Cristo como Messias, e primeiro que tudo em relação ao mistério da
encarnação do Filho de Deus, como verificamos na descrição do anúncio do
nascimento de João, o Batista (cf. Lc. 1,11), na do próprio Cristo (cf. Lc
1,26), nas explicações e disposições dadas a Maria e a José (cf. Lc. 1,30´37;
Mt. 1,20´21), nas indicações dadas aos pastores na noite do nascimento do
Senhor (cf. Lc. 2,9´15), na proteção ao recém-nascido perante o perigo da
perseguição de Herodes (cf. Mt. 2,13). Mais adiante os Evangelhos falam da
presença dos anjos durante os 40 dias de jejum de Jesus no deserto (cf. Mt.
4,11) e durante a oração no Getsêmani (I´c 22,43). Depois da ressurreição de
Cristo será ainda um anjo, sob a aparência de um jovem, que dirá às mulheres
que tinham ido ao sepulcro e ficaram surpreendidas por o encontrar vazio:
"Não vos assusteis. Buscais a Jesus de Nazaré, o crucificado.
Ressuscitou, não está aqui... Ide, pois, dizer aos Seus discípulos..."
(Mc. 16,5´7). Dois anjos foram vistos também por Maria Madalena, que é
privilegiada com uma aparição pessoal de Jesus (Jo. 20,12´17; cf. também Lc.
24,4). Os anjos apresentam-se aos apóstolos depois de Cristo desaparecer,
para lhes dizer: "Homens da Galiléia, por que estais assim a olhar para
o céu? Esse Jesus, que vos foi arrebatado para o céu, virá da mesma maneira,
como agora O vistes partir para o céu" (At. 1,10´11). São os anjos da
vida, da paixão e da glória de Cristo. Os anjos dAquele que, como escreve São
Pedro, "subiu ao céu, e está sentado à direita de Deus, depois de ter
recebido a submissão dos anjos, dos principados e das potestades" (l Pd.
3,22).
4. Se passamos à nova vinda de Cristo, isto é, à "Parusia",
encontramos que todos os sinóticos narram que "o Filho do Homem... virá
na glória de Seu Pai, com os santos anjos" (tanto Mc. 8,38; como Mt.
16,27; e Mt. 25,31 na descrição do juízo final; e Lc. 9,26; cf. também São
Paulo, 2Ts. 1,7). Pode-se portanto dizer que os anjos, como puros espíritos,
não só participam, do modo que lhes é próprio, da santidade de Deus mesmo,
mas nos momentos chaves rodeiam Cristo e acompanham-no no cumprimento da sua
missão salvífica em relação aos homens. Igualmente ao longo dos séculos,
também toda a Tradição e o magistério ordinário da Igreja atribuíram aos
anjos este particular caráter e esta função de ministério messiânico.
4. A PARTICIPAÇÃO DOS ANJOS NA HISTÓRIA DA
SALVAÇÃO
Audiência do dia 6 de agosto de 1986
(Publicada
no L´OSSERVATORE ROMANO, ed. port., no dia 10 de agosto de 1986.)
1. Nas recentes catequeses vimos como a Igreja, iluminada pela luz
proveniente da Sagrada Escritura, professou ao longo dos séculos a verdade
sobre a existência dos anjos como seres puramente espirituais, criados por
Deus. Fê-lo desde o principio com o símbolo niceno-constantinopolitano e
confirmou-o no concílio Lateranense IV (1215), cuja formulação é retomada
pelo Concílio Vaticano I no contexto da doutrina sobre a criação: Deus
"criou contemporaneamente do nada, desde o início dos tempos, uma
criatura e a outra, a espiritual e a corpórea, isto é, a angélica e a
terrena, e portanto criou a natureza como comum a ambas, sendo constituída de
espírito e de corpo" (Const. De fide cath. DS 3002). Ou seja: Deus criou
desde o princípio ambas as realidades: a espiritual e a corporal, o mundo
terreno e o mundo angélico. Tudo isto criou Ele ao mesmo tempo (simul) em
ordem à criação do homem, constituído de espírito e de matéria e posto,
segundo a narração bíblica, no quadro de um mundo já estabelecido segundo as
suas leis e já medido pelo tempo (deinde).
2. A fé da Igreja reconhece a existência e ao mesmo tempo os traços
distintivos da natureza dos anjos. O seu ser puramente espiritual implica
antes de tudo a sua não-materialidade e a sua imortalidade. Os anjos não têm
"corpo" (embora em determinadas circunstâncias se manifestem sob
formas visíveis em virtude da sua missão a favor dos homens, e por conseguinte
estão sujeitos à lei da corruptibilidade que é comum a todo o mundo
material). O próprio Jesus, ao referir-se à condição angélica, dirá que na
vida futura os ressuscitados "já não podem morrer; são semelhantes aos
anjos" (Lc. 20,36).
3. Enquanto criaturas de natureza espiritual, os anjos são dotados de
intelecto e de vontade livre, como o homem, mas em grau superior ao dele,
embora sempre finito, pelo limite que é inerente a todas as criaturas. Os
anjos são pois seres pessoais e, como tais, também eles criados à
"imagem e semelhança" de Deus. A Sagrada Escritura refere-se aos
anjos usando também apelativos não só pessoais (como os nomes próprios de
Rafael, Gabriel, Miguel), mas também "coletivos" (como as
classificações de: serafins, querubins, tronos, potestades, dominações,
principados), assim como faz uma distinção entre anjos e arcanjos. Embora
tendo em conta a linguagem analógica e representativa do texto sagrado,
podemos deduzir que estes seres-pessoas, quase agrupados em sociedade, se
subdividem em ordens e graus, correspondentes à medida da sua perfeição e às
tarefas que lhes estão confiadas. Os autores antigos e a própria liturgia
falam também dos coros angélicos (nove, segundo Dionísio, o Areopagita). A
teologia, especialmente a patrística e medieval, não rejeitou estas
representações, procurando, pelo contrario, dar uma explicação doutrinal e
mística das mesmas, mas sem lhes atribuir um valor absoluto. São Tomas
preferiu aprofundar as pesquisas sobre a condição ontológica, sobre a atividade
cognoscitiva e volitiva e sobre a elevação espiritual destas criaturas
puramente espirituais, pela sua dignidade na escala dos seres, porque nelas
poderia aprofundar melhor as capacidades e as atividades próprias ao espírito
no estado puro, haurindo não pouca luz para iluminar os problemas de fundo
que desde sempre agitam e estimulam o pensamento humano: o conhecimento, o
amor, a liberdade, a docilidade de Deus, a obtenção do seu reino.
4. O tema a que nos referimos poderá parecer "distante" ou
"menos vital" à mentalidade do homem moderno. Todavia a Igreja,
propondo com franqueza a totalidade da verdade acerca de Deus Criador também
dos anjos, crê que presta um grande serviço ao homem. O homem nutre a
convicção de que em Cristo, Homem-Deus, é ele (e não os anjos) a encontrar-se
no centro da Divina revelação. Pois bem, o encontro religioso com o mundo dos
seres puramente espirituais torna-se revelação preciosa do seu ser não só
corpo mas também espírito, e da sua pertença a um projeto de salvação
verdadeiramente grande e eficaz, dentro de uma comunidade de seres pessoais
que para o homem e com o homem servem o desígnio providencial de Deus.
5. Notemos que a Sagrada Escritura e a Tradição chamam propriamente anjos
àqueles espíritos puros que na prova fundamental de liberdade escolheram
Deus, a Sua glória e o Seu reino. Eles estão unidos a Deus mediante o amor
consumado que nasce da beatificante visão, face a face, da Santíssima
Trindade. Di-lo Jesus mesmo: "Os anjos nos céus vêem constantemente a
face de Meu Pai que está nos céus" (Mt. 18,10). Aquele " ver
constantemente a face do Pai" é a manifestação mais excelsa da adoração
de Deus. Pode-se dizer que ela constitui aquela "liturgia celeste",
realizada em nome de todo o universo, à qual se associa incessantemente a
liturgia terrena da Igreja, de modo especial nos seus momentos culminantes.
Basta recordar aqui o ato com o qual a Igreja, todos os dias e a todas as
horas, no mundo inteiro, antes de dar inicio à Oração Eucarística no ponto
central da Santa Missa, se refere aos "anjos e aos arcanjos'' para
cantar a glória de Deus três vezes Santo, unindo-se assim àqueles primeiros
adoradores de Deus, no culto e no amoroso conhecimento do inefável mistério
da sua santidade.
6. Ainda segundo a revelação, os anjos, que participam da vida da Trindade na
luz da glória, são também chamados a ter a sua parte na história da salvação
dos homens, nos momentos estabelecidos pelo desígnio da Divina providência.
"Não são eles todos espíritos ao serviço de Deus, enviados a fim de
exercerem um ministério a favor daqueles que hão de herdar a salvação?",
pergunta o autor da carta aos Hebreus (1,14). E nisto crê e isto ensina a
Igreja, com base na Sagrada Escritura da qual sabemos que é tarefa dos anjos
bons a proteção dos homens e a solicitude pela sua salvação. Encontramos
certas expressões em diversas passagens da Sagrada Escritura como por exemplo
no Salmo 90/91, já citado mais de uma vez: "Mandou aos Seus anjos que te
guardem em todos os teus caminhos. Eles te levarão nas suas mãos, para que
não tropeces em alguma pedra" (Sl. 90/91,11´12). O próprio Jesus,
falando das crianças e recomendando que não se lhes desse escândalo faz
referência aos "seus anjos" (Mt. 18,10). Ele atribui também aos
anjos a função de testemunhas no supremo juízo divino sobre a sorte de quem
reconheceu ou negou Cristo: "Todo aquele que se declarar por Mim diante
dos homens, também o Filho do Homem se declarara por ele diante dos anjos de
Deus. Aquele, porém, que Me tiver negado diante dos homens será negado diante
dos anjos de Deus" (Lc. 12,8´9; cf. Ap 3,5). Estas palavras são
significativas porque, se os anjos tomam parte no juízo de Deus, estão
interessados pela vida do homem. Interesse e participação que parecem receber
uma acentuação no discurso escatológico, em que Jesus faz intervir os anjos
na Parusia, ou seja, na vinda definitiva de Cristo no fim da história (cf. Mt
24,31; 25,31´41).
7. Entre os livros do Novo Testamento, são especialmente os Atos dos
Apóstolos que nos dão a conhecer alguns fatos que atestam a solicitude dos
anjos pelo homem e pela sua salvação. Assim é quando o Anjo de Deus liberta
os Apóstolos da prisão (cf. At. 5,18´20) e antes de tudo Pedro, que estava
ameaçado de morte por parte de Herodes (cf. At. 12, 15´10). Ou quando guia a
atividade de Pedro a respeito do centurião Cornélio, o primeiro pagão
convertido (At. 10,3´8. 12´13), e de modo análogo a atividade do diácono
Filipe no caminho de Jerusalém para Gaza (At. 8,26´29). Destes poucos fatos
citados a título de exemplo, compreende-se como na consciência da Igreja se
tenha podido formar a persuasão acerca do ministério confiado aos anjos a
favor dos homens. Portanto, a Igreja, confessa a sua fé nos anjos da guarda,
venerando-os na liturgia com uma festa própria e recomendando o recurso à sua
proteção com uma oração freqüente, como na invocação do ´Anjo de Deus´. Esta
oração parece fazer tesouro das lindas palavras de São Basílio: ´Cada fiel
tem ao seu lado um anjo como tutor e pastor, para o levar à vida´ (cf. 5.
Basilius, Adv. Funonium, III, 1; veja-se também Sto. Tomas, Summa Theol. 1,
q. II, a.3).
8. É por fim oportuno notar que a Igreja honra com culto litúrgico três
figuras de anjos, que na Sagrada Escritura são chamados por nome. O primeiro
é Miguel Arcanjo (cl. Dn. 10,13´20; Ap 12,7; Jd. 9). O seu nome exprime
sinteticamente a atitude essencial dos espíritos bons. ´Mica´El´ significa,
de fato: ´Quem como Deus?´. Neste nome encontra-se, pois, expressa a escolha
salvífica graças à qual os anjos vêem a face do Pai´ que está nos céus. O
segundo é Gabriel: figura ligada sobretudo ao mistério da encarnação do Filho
de Deus (cf. Lc. 1,19´26). O seu nome significa: "O meu poder é
Deus" ou "poder de Deus", quase como que a dizer que, no auge
da criação, a encarnação é o sinal supremo do Pai onipotente. Finalmente o
terceiro arcanjo chama-se Rafael. "Rafa`El" significa: "Deus
cura". Ele nos é dado a conhecer pela história de Tobias no Antigo
Testamento (cf. Tb. 12,15´20), etc., tão significativa quanto ao fato de serem
confiados aos anjos os pequeninos filhos de Deus, sempre necessitados de
guarda, de cuidados e de proteção. Se pensarmos bem, vê-se que cada uma
destas três figuras: Mica´El, Gabri´EI e Rafa´El reflete de modo particular a
verdade contida na pergunta formulada pelo autor da Carta aos Hebreus: ´Não
são eles todos espíritos ao serviço de Deus enviados a fim de exercerem um
ministério a favor daqueles que hão de herdar a salvação?´ (Hb. 1,14).
5. A QUEDA DOS ANJOS REBELDES
Audiência do dia 13 de Agosto de 1986
(Publicada
no L´OSSERVATORE ROMANO, ed. port., no dia 17 de agosto de 1986.)
1. Continuando o argumento das catequeses passadas dedicadas aos Anjos,
criaturas de Deus, concentramo-nos hoje a explorar o mistério da liberdade
que alguns deles orientaram contra Deus, e o seu plano de salvação em relação
aos homens. Como testemunha o evangelista Lucas, no momento em que os
discípulos voltavam ao Mestre cheios de alegria, pelos frutos recolhidos no
seu tirocínio missionário, Jesus pronuncia uma palavra que faz pensar:
"Eu via satanás cair do céu como um raio" (cf. Lc. 10,18). Com
estas palavras o Senhor afirma que o anúncio do reino de Deus é sempre uma
vitória sobre o diabo, mas ao mesmo tempo revela também que a edificação do
reino está continuamente exposta às insídias do espírito mau. Interessar-se
por isso, como pretendemos fazer com a catequese de hoje, quer dizer
preparar-se para a condição de luta que é própria da vida da Igreja neste
tempo derradeiro da história, da salvação (como afirma o livro do Apocalipse,
cf. 12,7). Por outro lado, isto permite esclarecer a reta fé da Igreja
perante quem a altera exagerando a importância do diabo, ou quem nega ou
minimiza o seu poder maléfico. As catequeses passadas, acerca dos anjos,
preparam-nos para compreender a verdade que a Sagrada Escritura revelou e que
a tradição da Igreja transmitiu sobre satanás, isto é, sobre o anjo caído, o
espírito maligno, chamado também diabo ou demônio.
2. Esta queda, que apresenta o caráter da rejeição de Deus, com o conseqüente
estado de danação, consiste na livre escolha daqueles espíritos criados, que
radical e irrevogavelmente rejeitaram Deus e o seu reino, usurpando os seus
direitos soberanos e tentando subverter a economia da salvação e a própria
ordem da criação inteira. Um reflexo desta atitude encontra-se nas palavras
do tentador aos progenitores: "sereis como Deus" ou "como
deuses" (cf. Gn 3,5). Assim o espírito maligno tenta insuflar no homem a
atitude de rivalidade, de insubordinação e de oposição a Deus, que se tornou
quase a motivação de toda a sua existência.
3. No Antigo Testamento, a narração da queda do homem, apresentada no livro
do Gênesis, contém uma referência à atitude de antagonismo que satanás quer
comunicar ao homem para o levar à transgressão (Gn 3,5). Também no livro de Jó
(of. Jó 1,11; 2,24), satanás é apresentado como o artífice da morte que
entrou na história do homem juntamente com o pecado.
4. A Igreja, no Concílio Lateranense IV (1215), ensina que o diabo, ou
(satanás) e os outros demônios "foram criados bons por Deus mas
tornaram-se maus por sua própria vontade". De fato, lemos na carta de
São Judas: "Os anjos que não souberam conservar a sua dignidade, mas
abandonaram a própria morada, Ele os guardou para o julgamento do grande dia,
em prisões eternas e no fundo das trevas" (Jd. 6). De modo idêntico na
Segunda Carta de São Pedro fala-se de "anjos que pecaram e que Deus não
poupou... e os precipitou nos abismos tenebrosos do inferno, para serem
reservados para o Juízo" (2Pd. 2,4). É claro que se Deus "não
perdoa" o pecado dos anjos fa-lo porque eles permanecem no seu pecado,
porque estão eternamente "nas prisões" daquela escolha que fizeram
no início, rejeitando Deus, sendo contra a verdade do Bem supremo e
definitivo que é Deus mesmo. Neste sentido São João escreve que "o
demônio peca desde o principio" (I Jo 3,8). E foi assassino "desde
o principio" (I. Jo. 8,44), e "não se manteve na verdade, porque
nele não há verdade" (Jo. 8,44).
5. Estes textos ajudam-nos a compreender a natureza e a dimensão do pecado de
satanás, consciente na rejeição da verdade acerca de Deus, conhecido à luz da
inteligência e da revelação como Bem infinito, Amor e Santidade subsistente.
O pecado foi tanto maior quanto maior era a perfeição espiritual e a
perspicácia cognoscitiva do intelecto angélico, quanto maior era a sua
liberdade e a proximidade de Deus. Rejeitando a verdade conhecida acerca de
Deus com um ato da própria vontade livre, satanás torna-se
"mentiroso", cósmico e "pai da mentira" (Jo. 8,44). Por
isso ele vive na radical e irreversível negação de Deus e procura impor a
criação aos outros seres criados à imagem de Deus, que satanás (sob forma de
serpente) tenta transmitir aos primeiros representantes do gênero humano:
Deus seria cioso das suas prerrogativas e imporia, portanto, limitações ao
homem (cf. Gn. 3,5). Satanás convida o homem a libertar-se da imposição deste
jugo, tornando-se como ´Deus´.
6. Nesta condição de mentira existencial, satanás torna-se segundo São João
também "assassino", isto é, destruidor da vida sobrenatural que
Deus desde o princípio tinha introduzido nele e nas criaturas, feitas "à
imagem de Deus": os outros puros espíritos e os homens; satanás quer
destruir a vida segundo a verdade, a vida na plenitude do bem, a sobrenatural
vida de graça e de amor. O autor do Livro da Sabedoria escreve: "Por
inveja do demônio é que a morte entrou no mundo, e prová-la-ão os que
pertencem ao demônio" (Sb. 2,24). E no evangelho Jesus Cristo adverte:
"Temei antes aquele que pode fazer perecer na Geena o corpo e a
alma" (Mt. 10,28).
7. Como efeito do pecado dos progenitores, este anjo caído conquistou em
certa medida o domínio sobre o homem. Esta é a doutrina constantemente
confessada e anunciada pela Igreja, e que o Concílio de Trento confirmou no
tratado sobre o pecado original (cf. DS. 1511): ela encontra dramática
expressão na liturgia do batismo, quando ao catecúmeno se pede para renunciar
ao demônio e a suas tentações. Deste influxo sobre o homem e sobre as
disposições do seu espírito (e do corpo), encontramos várias indicações na
Sagrada Escritura, na qual satanás é chamado "o príncipe deste
mundo" (2Cor. 4,4). Encontramos muitos outros nomes que descrevem as
suas nefastas relações como o homem: "Belzebu" ou
"Belial", "espírito maligno", e por fim
"anticristo" (1 Jo. 4, 3). É comparado com um "leão" (1
Pe. 5, 9), com um "dragão" (Apocalipse) e com uma serpente (Gen.
3). Com muita freqüência, para o designar, é usado o nome "diabo",
do grego "diabellein" (daqui diábolos), que significa: causar a
destruição, dividir, caluniar, enganar. E, para dizer a verdade, tudo isto
acontece desde o princípio, por obra do espírito malígno, que é apresentado
pela Sagrada Escritura, como uma pessoa, embora tenha afirmado que não está
só: "somos muitos", respondem os diabos a Jesus, na região dos
Geracenos (Mc. 5, 9); "o diabo e seus anjos", diz Jesus, na
descrição do juízo final (cf. Mt 25, 41).
8. Segundo a Sagrada Escritura, e de modo especial, no Novo Testamento, o
domínio e o influxo de satanás e dos outros espíritos malignos abrange todo o
mundo. Pensemos na parábola de Cristo sobre o campo (que é o mundo), sobre a
boa semente e sobre a que não é boa, que o diabo semeia no meio do trigo
procurando arrancar dos corações aquele bem que neles foi "semeado"
(cf. Mc. 13, 38´39). Pensemos nas numerosas exortações à vigilância (cf. Mt.
26, 41; 1 Pe. 5, 8), à oração e ao jejum (cf. Mt. 17, 21). Pensemos naquela
forte afirmação do Senhor: "Esta casta de demônios só pode ser expulsa
com oração" (Mc. 9, 29). A ação de Satanás consiste, antes de tudo, em
tentar os homens ao mal influindo na sua imaginação e nas suas faculdades
superiores para as orientar em direção contrária à lei de Deus. Satanás põe à
prova até Jesus (cf. Lc. 4, 3´13), na tentativa extrema de contrariar as
exigências da economia da salvação como Deus a estabeleceu. Não é para
excluir que em certos casos o espírito maligno chegue até o ponto de exercer
o seu influxo não só nas coisas materiais, mas também sobre o corpo do homem,
pelo que se fala de "possessos de espíritos impuros" (Mc. 5, 2´9).
Nem sempre é fácil discernir o que de preternatural acontece nesses casos,
nem a Igreja condescende ou secunda facilmente a atribuir muitos fatos a
intervenções diretas do demônio, mas em linha de princípio não se pode negar
que, na sua vontade de prejudicar e de levar para o mal, satanás possa chegar
a esta extrema manifestação da sua superioridade.
9. Devemos por fim acrescentar que as impressionantes palavras do Apóstolo
João: "O mundo inteiro está sob o jugo do maligno" (I. Jo. 5,19), aludem
também à presença de satanás na história da humanidade, uma presença que se
acentua à medida que o homem e a sociedade se afastam de Deus. O influxo do
espírito maligno pode ocultar-se de modo mais profundo e eficaz: fazer-se
ignorar corresponde aos seus "interesses". A habilidade de satanás
no mundo está em induzir os homens a negarem a sua existência, em nome do
racionalismo e de cada um dos outros sistemas de pensamento que procuram
todas as escapatórias para não admitir a obra dele. Isto não significa,
porém, a eliminação da vontade livre e da responsabilidade do homem e nem se
quer a frustração da ação salvífica de Cristo. Trata-se antes de um conflito
entre as forças obscuras, do mal e as forças da redenção. São eloqüentes a
este propósito as palavras que Jesus dirigiu a Pedro no início da Paixão:
"Simão, olha que satanás vos reclamou para vos joeirar como o trigo. Mas
Eu roguei por ti, a fim de que tua fé não desfaleça" (Lc 22,31). Por
isso compreendemos o motivo por que Jesus, na oração que nos ensinou, o
"Pai nosso", que é a oração do reino de Deus, termina bruscamente,
ao contrário de multas outras orações do seu tempo, recordando-nos a nossa
condição de expostos às insídias do Mal Maligno. O cristão, fazendo apelo ao
Pai com o espírito de Jesus e invocando o seu Reino, brada com a força da fé:
não nos deixeis cair em tentação, mas livrai-nos do mal, do Maligno. Não nos
deixeis, ó Senhor, cair, na infidelidade a que nos tenta aquele que foi
infiel desde o princípio.
6. A VITÓRIA DE CRISTO SOBRE O ESPÍRITO DO
MAL
Audiência do dia 20 de Agosto de 1986
(Publicada
no L´OSSERVATORE ROMANO, ed. port., no dia 24 de agosto de 1986.)
1. As nossas catequeses sobre Deus, Criador das coisas
"invisíveis", levaram-nos a iluminar e a retemperar a nossa fé no
que se refere à verdade acerca do maligno ou satanás, não certamente querido
por Deus, sumo amor e santidade, cuja providência sapiente e forte sabe
conduzir a nossa existência à vitória sobre o príncipe das trevas. A fé da
Igreja, de fato, ensina-nos que o poder de satanás não é infinito. Ele é só
uma criatura poderosa enquanto espírito puro, sendo sempre uma criatura, com
os limites da criatura, subordinada ao querer e ao domínio de Deus. Se
satanás opera no mundo mediante o seu ódio contra Deus e o seu reino, isto é
permitido pela Divina providência que, com poder e bondade (fortiter et
suaviter), dirige a história do homem e do mundo. Se a ação de satanás sem
dúvida causa muitos danos de natureza espiritual e indiretamente também de
natureza física ´ aos indivíduos e à sociedade, ele não está, contudo, em
condições de anular a definitiva finalidade para que tendem o homem e toda a
criação, o bem. Ele não pode impedir a edificação do Reino de Deus, no qual
se terá, no fim, a plena realização da justiça e do amor do Pai para com as
criaturas eternamente ´predestinadas´ no Filho-Verbo, Jesus Cristo. Podemos
mesmo dizer com São Paulo que a obra do maligno concorre para o bem (cf. Rm.
8,28) e que serve para edificar a glória dos "eleitos" (cf. 2Tm.
2,10).
2. Assim toda a história da humanidade se pode considerar em função da
salvação total, na qual está inscrita a vitória de Cristo sobre o
"príncipe deste mundo" (Jo. 12,13; 14,30; 16,11). "Ao Senhor,
teu Deus, adorarás, e só a Ele prestaras culto" (Lc. 4,8), diz
peremptoriamente Cristo a satanás. Num momento dramático do seu ministério a
quem o acusava de modo imprudente de expulsar os demônios por serem aliados
de Belzebu, chefe dos demônios, Jesus responde com aquelas palavras severas e
confortantes ao mesmo tempo: "Todo o reino dividido contra si mesmo
ficara devastado; e toda a cidade ou casa dividida contra si mesma não poderá
subsistir. Ora, se Satanás expulsa Satanás, está dividido contra si mesmo.
Como há de subsistir o seu reino?... Mas se é pelo Espírito de Deus que Eu
expulso os demônios, quer dizer, então, que chegou até vós o reino de
Deus" (Mt. 12, 25.26.28). "Quando um homem forte e bem armado
guarda o seu palácio, os seus bens estão em segurança; mas se aparece um mais
forte e o vence, tira-lhe as armas em que confiava e distribui os seus
despojos" (Lc. 11,21´22). As palavras pronunciadas por Cristo a
propósito do tentador encontram o seu cumprimento histórico na cruz e na
ressurreição do Redentor. Como lemos na Carta aos Hebreus, Cristo tornou-se
participante da humanidade até a cruz "a fim de destruir, pela Sua
morte, aquele que tinha o império da morte, isto é, o Demônio, e libertar
aqueles que... estavam toda a vida sujeitos à escravidão" (Hb. 2,14´15).
Esta é a grande certeza da fé cristã: "O príncipe deste mundo está
condenado" (Jo. 16,11); ´Para Isto é que o Filho de Deus se manifestou:
Para destruir as obras do Demônio´ (I Jo. 3,8), como nos afirma São João. Por
conseguinte, o Cristo crucificado e ressuscitado revelou-se como o "mais
forte" que venceu "o homem forte", o diabo, e o destronou. Na
vitória de Cristo sobre o diabo participa a Igreja: Cristo, com efeito, deu
aos seus discípulos o poder de expulsar os demônios (cf. Mt. 10,1; Mc.
16,17). A Igreja exerce este poder vitorioso mediante a fé em Cristo e a
oração (cf. Mc. 9,29; Mt. 19s.), que em casos específicos pode assumir a
forma do exorcismo.
3. Nesta fase histórica da vitória de Cristo inscreve-se o anúncio e o início
da vitória final, a Parusia, a segunda e definitiva vinda de Cristo no termo
da história, em direção do qual está projetada a vida do cristão. Embora seja
verdade que a história terrena continua a desenrolar-se sob o influxo daquele
espírito que como diz São Paulo atua nos rebeldes (Ef. 2,2), os crentes sabem
que são chamados a lutar pelo definitivo triunfo do Bem: ´Porque nós não
temos de lutar contra a carne e o sangue, mas contra os principados e
potestades, contra os dominadores deste mundo tenebroso, contra os Espíritos
malignos espalhados pelos ares (Ef. 6,12). A luta, à medida que se aproxima
do seu termo, torna-se, em certo sentido, cada vez mais violenta, como põe em
relevo de modo especial o Apocalipse, o último livro do Novo Testamento (cf.
Ap. 12,7´9). Mas precisamente este livro acentua a certeza que nos é dada por
toda a Revelação divina: isto é, que a luta se concluíra com a definitiva
vitória do bem. Naquela vitória, pré-contida no mistério pascal de Cristo,
cumprir-se´á definitivamente o primeiro anúncio do Livro do Gênesis, que é
chamado, com termo significativo, proto-evangelho, quando Deus adverte a
serpente: ´Farei reinar a inimizade entre ti e a mulher´ (Gn. 3,15). Naquela
fase definitiva, Deus, completando o mistério da sua paterna Providência,
"livrara do poder das trevas" aqueles que eternamente "predestinou
em Cristo" e "transferi-los" á para o Reino de Seu Filho muito
amado (cf. Cl. 1,13´14). Então o Filho sujeitara ao Pai também o universo
inteiro, a fim de que "Deus seja tudo em todos" (I Cor. 15,28).
4. Aqui concluem-se as catequeses sobre Deus Criador das "coisas
visíveis e invisíveis", unidas na nossa exposição com a verdade acerca
da Divina Providência. Torna-se evidente aos olhos do crente que o mistério
do principio do mundo e da história se liga indissoluvelmente ao mistério do
termo, no qual a finalidade de toda a criação chega ao seu cumprimento. O
Credo, que une tão organicamente tantas verdades, é deveras a catedral
harmoniosa da fé. De maneira progressiva e orgânica podemos admirar
estupefatos o grande mistério do intelecto e do amor de Deus, na sua ação
criadora, para com o cosmos, para com o homem, para com o mundo dos espíritos
puros. Desta ação consideramos a matriz trinitária, a sapiente finalização
para a vida do homem, verdadeira "imagem de Deus", por sua vez
chamado a reencontrar plenamente a sua dignidade na contemplação da glória de
Deus. Fomos iluminados acerca de um dos maiores problemas que inquietam o
homem e penetram a sua busca de verdade: o problema do sofrimento e do mal.
Na raiz não está uma decisão de Deus errada ou má, mas a sua escolha e, de
certo modo, o seu risco, de nos criar livres para nos ter como amigos. Da
liberdade nasceu também o mal. Mas Deus não se rende, e com a sua sabedoria
transcendente, predestinando-nos para sermos filhos em Cristo, tudo dirige com
fortaleza e suavidade, para que o bem não seja vencido pelo mal. Devemos
agora deixar-nos guiar pela Divina Revelação na exploração de outros
mistérios da nossa salvação. Entretanto recebemos uma verdade que deve estar
a peito a todo o cristão: a de que existem espíritos puros, criaturas de
Deus, inicialmente todas boas, e depois, por uma escolha de pecado, separadas
irredutivelmente em anjos de luz e anjos de trevas. E enquanto a existência
dos anjos maus requer de nós o sentido da vigilância para não cair nas suas
tentações, estamos certos de que o vitorioso poder de Cristo Redentor
circunda a nossa vida, a fim de que nós próprios sejamos vencedores. Nisto
somos validamente ajudados pelos anjos bons, mensageiros do amor de Deus, aos
quais nós, ensinados pela tradição da Igreja, dirigimos a nossa oração:
"Santo Anjo do Senhor, meu zeloso guardador, pois a ti me confiou a
piedade divina, hoje, sempre, governa-me, rege-me, guarda-me, e ilumina-me.
Amém"
7. SÃO MIGUEL NOS PROTEJA CONTRA AS INSIDIAS
DO MALIGNO
Alocução do dia 24 de maio de 1987 no Santuário de São Miguel Arcanjo
(Publicada no L´OSSERVATORE
ROMANO, ed. port., no dia 31 de maio de 1987.)
Caríssimos irmãos e irmãs:
1. Estou feliz de me encontrar no meio de vós à sombra deste santuário de São
Miguel Arcanjo, que há quinze séculos é meta de peregrinações e ponto de
referência para quantos procuram a Deus e desejam pôr-se no seguimento de
Cristo, por meio de Quem "foram criadas todas as coisas nos céus e na
terra, as visíveis e as invisíveis, os tronos, as dominações, os principados
e as potestades" (Cl 1,16). Saúdo cordialmente todos vós, peregrinos,
aqui vindos das cidades que circundam este magnífico promontório do Gargano,
que oferece ao olhar do visitante enlevos deliciosos com a sua paisagem suave,
florida, e com característicos grupos de oliveiras que se debruçam sobre a
rocha. Saúdo em particular as Autoridades civis e religiosas, que
contribuíram para tornar possível este encontro pastoral; saúdo o Arcebispo
de Manfredônia, Mons. Valentino Vailati, a quem se dirige o meu
agradecimento, pelas palavras com que se dignou introduzir esta manifestação
de fé. Saúdo também e sobretudo os padres Beneditinos da Abadia de
Montevergine, que têm o cuidado espiritual deste Santuário. A eles, e de modo
especial ao seu Abade, Dom Tommaso Agostino Gubitosa, exprimo a minha
gratidão pela animação cristã e pelo clima espiritual que por eles são
assegurados a quantos aqui vêm para retemperar o seu espírito nas fontes da
fé.
2. A este lugar, como já fizeram no passado tantos Predecessores meus na
Cátedra de São Pedro, vim também eu gozar um instante da atmosfera própria
deste santuário, feita de silêncio, de oração e de penitência; vim para
venerar e invocar o Arcanjo São Miguel, para que proteja e defenda a Santa
Igreja, num autêntico testemunho cristão, sem compromissos e sem
acomodamentos. Desde quando o Papa Gelásio I concedeu, em 493, o seu
assentimento à dedicação da gruta das aparições do Arcanjo são Miguel a lugar
de culto e aqui realizou a sua primeira visita, concedendo a indulgência do
"Perdão angélico", uma série de Romanos Pontífices seguiu os seus
passos para venerar este lugar sagrado. Entre eles recordam-se Agapito I,
Leão IX, Urbano II, Inocêncio II, Celestino III, Urbano VI, Gregório IX, São
Pedro Celestino e Bento XV. Também numerosos Santos aqui vieram para haurir
força e conforto. Recordo São Bernardo, São Guilherme de Vercelli, fundador
da Abadia de Montevergine, São Tomás de Aquino, Santa Catarina de Sena; entre
estas visitas, permaneceu justamente célebre e ainda hoje continua viva a que
foi realizada por São Francisco de Assis, que veio aqui para preparar a
quaresma de 1221. A tradição diz que ele, considerando-se indigno de entrar
na gruta sagrada, se teria detido na entrada, gravando um sinal da cruz numa
pedra. Esta viva e jamais interrompida freqüência de peregrinos ilustres e
humildes, que desde a alta Idade Média até os nossos dias fez deste santuário
um lugar de encontro, de oração e de reafirmação da fé cristã, diz quanto a
figura do Arcanjo Miguel, que é protagonista em tantas páginas do Antigo e do
Novo Testamento, é sentida e invocada pelo povo, e quanto a Igreja tem
necessidade da sua proteção celeste: dele, que é apresentado na Bíblia como o
grande lutador contra o Dragão, o chefe dos demônios. Lemos no Apocalipse:
"Travou-se, então, uma batalha no Céu: Miguel e os seus Anjos pelejavam
contra o Dragão e este pelejava também juntamente com seus anjos. Mas não
prevaleceram e não houve mais lugar no Céu para eles. O grande Dragão foi precipitado,
a antiga serpente, o Diabo, ou Satanás, como lhe chamou, sedutor do mundo
inteiro, foi precipitado na terra, juntamente com os seus anjos" (Ap.
12,7´9). O autor sagrado apresenta-nos nesta dramática descrição o fato da
queda do primeiro Anjo, que foi seduzido pela ambição de se tornar "como
Deus". Daqui a reação do Arcanjo Miguel, cujo nome hebraico "Quem
como Deus?" reivindica a unicidade de Deus e a sua inviolabilidade.
3. Por mais fragmentarias que sejam, as notícias da Revolução sobre a personalidade
e o papel de são Miguel são muito eloqüentes. Ele é o Arcanjo (cf. Jd 1,9)
que reivindica os direitos inalienáveis de Deus. É um dos príncipes do Céu
posto como guarda do povo eleito (cf. Dn. 12,1), de onde virá o Salvador.
Ora, o novo povo de Deus é a Igreja. Eis a razão pela qual ela o considera
como próprio protetor e defensor em todas as suas lutas pela defesa e a
difusão do reino de Deus na terra. É verdade que ´as portas do inferno nada
poderão contra ela´, segundo a afirmação do Senhor (Mt. 16,18), mas isto não
significa que estamos isentos das provas e das batalhas contra as insídias do
maligno. Nesta luta o Arcanjo Miguel está ao lado da Igreja para a defender
contra as iniqüidade do século, para ajudar os crentes a resistir ao Demônio
que ´anda ao redor, como um leão que ruge, buscando a quem devorar´ (l Pd.
5,8). Esta luta contra o Demônio, a qual caracteriza a figura do arcanjo
Miguel, é atual também hoje, porque o demônio está vivo e operante no mundo.
Com efeito, o mal que nele existe, a desordem que se verifica na sociedade, a
incoerência do homem, a ruptura interior da qual é vítima não são apenas
conseqüências do pecado original, mas também efeito da ação nefanda e obscura
de Satanás, deste insidiador do equilíbrio moral do homem, ao qual São Paulo
não hesita em chamar "o deus deste mundo" (2Cor. 4,4), enquanto se
manifesta como encantador astuto, que sabe insinuar-se no jogo do nosso agir,
para aí introduzir desvios tão nocivos, quanto às aparências conformes às
nossas aspirações instintivas. Por isto o apóstolo das gentes põe os cristãos
de sobreaviso, quanto às insídias do Demônio e dos seus inúmeros sectários,
quando exorta os habitantes de Éfeso a revestirem-se da armadura de Deus para
que possam resistir às ciladas do Demônio. Porque nós não temos de lutar
contra a carne e o sangue, mas contra os principados e potestades, contra os
Dominadores deste mundo tenebroso, contra os Espíritos malignos espalhados
pelos ares" (Ef. 6,11´12). A esta luta nos chama a figura do Arcanjo são
Miguel, a quem a Igreja, tanto no Oriente como no Ocidente, jamais cessou de
tributar um culto especial. Como se sabe, o primeiro Santuário a ele dedicado
surgiu em Constantinopla por obra de Constantino: é o célebre Michaelion, ao
qual se seguiram naquela nova Capital do Império outras numerosas igrejas
dedicadas ao Arcanjo. No Ocidente o culto de São Miguel, desde o século V,
difundiu-se em muitas cidades como Roma, Milão, Piacença, Gênova, Veneza; e
entre tantos lugares de culto, certamente o mais famoso é este do monte
Gargano. O Arcanjo está representado sobre a porta de bronze, fundada em
Constantinopla em 1076, no ato de abater o Dragão infernal. É este o símbolo,
com o qual a arte no-lo representa e a liturgia faz que o invoquemos. Todos
recordam a oração que há anos se recitava no final da Santa Missa:
"Sancte Michael Archangele, defende nos in proelio"; dentro em
pouco, repeti-la-ei em nome da Igreja toda. E antes de elevar tal oração, a
todos vós aqui presentes, aos vossos familiares e a todas as pessoas que vos
são queridas concedo a minha Bênção, que faço extensiva também a quantos
sofrem no corpo e no espírito.
8. A Existência do Diabo
Audiência do Papa Paulo VI do dia 15 de Novembro de 1972
Alocução
Livrai-nos do mal´ Publicado no L´Osservatore Romano, ed. port. em
24/11/1972.
Atualmente, quais são as maiores
necessidades da Igreja? Não deveis considerar a nossa resposta simplista, ou
até supersticiosa e irreal: uma das maiores necessidades é a defesa daquele
mal, a que chamamos demônio. Antes de esclarecermos o nosso pensamento,
convidamos o vosso a abrir-se à luz da fé sobre a visão da vida humana, visão
que, deste observatório, se alarga imensamente e penetra em singulares
profundidades. E, para dizer a verdade, o quadro que somos convidados a contemplar
com realismo global é muito lindo. É o quadro da criação, a obra de Deus, que
o próprio Deus, como espelho exterior da sua sabedoria e do Seu poder,
admirou na sua beleza substancial (cf. Gn. 1,10 ss.). Além disso, é muito
interessante o quadro da história dramática da humanidade, da qual emerge a
da redenção, a de Cristo, da nossa salvação, com os seus magníficos tesouros
de revelação, de profecia, de santidade, de vida elevada a nível
sobrenatural, de promessas eternas (cf. Ef. 1,10). Se soubermos contemplar
este quadro, não poderemos deixar de ficar encantados; tudo tem um sentido,
tudo tem um fim, tudo tem uma ordem e tudo deixa entrever uma
Presença-Transcendência, um Pensamento, uma Vida e, finalmente, um Amor, de
tal modo que o universo, por aquilo que é e por aquilo que não é, se
apresenta como uma preparação entusiasmante e inebriante para alguma coisa
ainda mais bela e mais perfeita (cf. ICor. 2,9; Rm. 8,19´23). A visão cristã
do cosmo e da vida é, portanto, triunfalmente otimista; e esta visão
justifica a nossa alegria e o nosso reconhecimento pela vida, motivo por que,
celebrando a glória de Deus, cantamos a nossa felicidade.
O Ensinamento Bíblico
Esta visão, porém, é completa, é exata? Não nos importamos, porventura com as
deficiências que se encontram no mundo, com o comportamento anormal das
coisas em relação à nossa existência, com a dor, com a morte, com a maldade,
com a crueldade, com o pecado, numa palavra, com o mal? E não vemos quanto
mal existe no mundo especialmente quanto à moral, ou seja, contra o homem e,
simultaneamente, embora de modo diverso, contra Deus? Não constitui isto um
triste espetáculo, um mistério inexplicável? E não somos nós, exatamente nós,
cultores do Verbo, os cantores do bem, nós crentes, os mais sensíveis, os
mais perturbados, perante a observação e a prática do mal? Encontramo-lo no
reino da natureza, onde muitas das suas manifestações, segundo nos parece,
denunciam a desordem. Depois, encontramo-lo no âmbito humano, onde se
manifestam a fraqueza, a fragilidade, a dor, a morte, e ainda coisas piores;
observa-se uma dupla lei contrastante, que, por um lado, quereria o bem, e,
por outro, se inclina para o mal, tormento este que São Paulo põe em humilde
evidência para demonstrar a necessidade e a felicidade de uma graça
salvadora, ou seja, da salvação trazida por Cristo (Rm. 7); já o poeta pagão
Ovidio tinha denunciado este conflito interior no próprio coração do homem:
"Video meliora proboque, deteriora sequor". Encontramos o pecado,
perversão da liberdade humana e causa profunda da morte, porque é um
afastamento de Deus, fonte da vida (cf. Rm. 5,12) e, também, a ocasião e o
efeito de uma intervenção, em nós e no nosso mundo, de um agente obscuro e
inimigo, o Demônio. O mal já não é apenas uma deficiência, mas uma
eficiência, um ser vivo, espiritual, pervertido e perversor. Trata-se de uma
realidade terrível, misteriosa e medonha. Sai do âmbito dos ensinamentos
bíblicos e eclesiásticos quem se recusa a reconhecer a existência desta
realidade; ou melhor, quem faz dela um princípio em si mesmo, como se não
tivesse, como todas as criaturas, origem em Deus, ou a explica como uma
pseudo-realidade, como uma personificação conceitual e fantástica das causas
desconhecidas das nossas desgraças. O problema do mal, visto na sua
complexidade em relação à nossa racionalidade, torna-se obsessionante.
Constituí a maior dificuldade para a nossa compreensão religiosa do cosmo.
Foi por isso que Santo Agostinho penou durante vários anos: "Quaerebam
unde malum, et non erat exitus", procurava de onde vinha o mal e não
encontrava a explicação. (Confissões, VII,5 ss) Vejamos, então, a importância
que adquire a advertência do mal para a nossa justa concepção; é o próprio
Cristo quem nos faz sentir esta importância. Primeiro, no desenvolvimento da
história, haverá quem não recorde a página, tão densa de significado, da
tríplice tentação? E ainda, em muitos episódios evangélicos, nos quais o
demônio se encontra com o Senhor e aparece nos seus ensinamentos (cf. Mt.
1,43)? E como não haveríamos de recordar que Jesus Cristo, referindo-se três
vezes ao Demônio como seu adversário, o qualifica como "príncipe deste
mundo" (Jo. 12,31; 14,30; 16,11)? E a ameaça desta nociva presença é
indicada em muitas passagens do Novo Testamento. São Paulo chama-lhe
"deus deste mundo'' (2Cor. 4,4) e previne-nos contra as lutas ocultas,
que nós cristãos devemos travar não só com o Demônio, mas com a sua tremenda
pluralidade: "Revesti-vos da armadura de Deus para que possais resistir
às ciladas do Demônio. Porque nós não temos de lutar (só) contra a carne e o
sangue, mas contra os Principados, contra os Dominadores deste mundo
tenebroso, contra os Espíritos malignos espalhados pelos ares" (Ef.
6,11´12). Diversas passagens do Evangelho dizem-nos que não se trata de um só
demônio, mas de muitos (cf. Lc. 11,21; Mc. 5,9), um dos quais é o principal:
satanás, que significa o adversário, o inimigo; e, ao lado dele, estão muitos
outros, todos criaturas de Deus, mas decaídas, porque rebeldes e condenadas;
constituem um mundo misterioso transformado por um drama muito infeliz, do
qual conhecemos pouco.
O Inimigo Oculto
Conhecemos, todavia, muitas coisas deste mundo diabólico, que dizem respeito
à nossa vida e a toda a história humana. O demônio é a origem da primeira
desgraça da humanidade; foi o tentador pérfido e fatal do primeiro pecado, o
pecado original (cf. Gn. 3; Sb 1,24). Com aquela falta de Adão, o demônio
adquiriu um certo poder sobre o homem, do qual só a redenção de Cristo nos
pode libertar. Trata-se de uma história que ainda hoje existe: recordemos os
exorcismo do batismo e as freqüentes referências da Sagrada Escritura e da
Liturgia ao agressivo e opressivo "domínio das trevas" (Lc. 22,53).
Ele é o inimigo número um, o tentador por excelência. Sabemos, portanto, que
este ser mesquinho, perturbador, existe realmente e que ainda atua com
astúcia traiçoeira; é o inimigo oculto que semeia erros e desgraças na
história humana. Deve-se recordar a significativa parábola evangélica do
trigo e da cizânia, síntese e explicação do ilogismo que parece presidir às
nossas contrastantes vicissitudes: "Inimicus homo hoc fecit" (Mt.
13,2). É o assassino desde o princípio... e "pai da mentira", como
o define Cristo (cf. Jo. 44´45); é o insidiador sofista do equilíbrio moral
do homem. Ele é o pérfido e astuto encantador, que sabe insinuar-se em nós
através dos sentidos, da fantasia, da concupiscência, da lógica utópica, ou
de desordenados contatos sociais na realização de nossa obra, para introduzir
neles desvios, tão nocivos quanto, na aparência, conformes às nossas
estruturas físicas ou psíquicas, ou às nossas profundas aspirações
instintivas. Este capítulo, relativo ao demônio e ao influxo que ele pode
exercer sobre cada pessoa, assim como sobre comunidades, sobre inteiras
sociedades, ou sobre acontecimentos, é um capitulo muito importante da
doutrina católica, que deve ser estudado novamente, dado que hoje o é pouco.
Algumas pessoas julgam encontrar nos estudos da psicanálise ou da
psiquiatria, ou em práticas evangélicas, no principio da sua vida pública, de
espiritismo, hoje tão difundidas em alguns países, uma compensação
suficiente. Receia-se cair em velhas teorias maniqueístas, ou em divagações
fantásticas e supersticiosas. Hoje, algumas pessoas preferem mostrar-se
fortes, livres de preconceitos, assumir ares de positivistas, mas depois dão
crédito a muitas superstições de magia ou populares, ou pior, abrem a própria
alma " a própria alma batizada, visitada tantas vezes pela presença
eucarística e habitada pelo Espírito Santo" às experiências licenciosas
dos sentidos, às experiências deletérias dos estupefacientes, assim como às
seduções ideológicas dos erros na moda, fendas estas por onde o maligno pode
facilmente penetrar e alterar a mentalidade humana. Não quer dizer que todo o
pecado seja devido diretamente à ação diabólica; mas também é verdade que
aquele que não vigia, com certo rigor moral, a si mesmo (cf. Mt. 12,45; Ef.
6,11), se expõe ao influxo do "mysterium iniquitatis", ao qual São
Paulo se refere (2Ts. 2,3´12) e que torna problemática a alternativa da nossa
salvação. A nossa doutrina torna-se incerta, obscurecida como está pelas
próprias trevas que circundam o Demônio. Mas a nossa curiosidade, excitada
pela certeza da sua doutrina múltipla, torna-se legitima com duas perguntas:
Há sinais da presença da ação diabólica e quais são eles? Quais são os meios
de defesa contra um perigo tão traiçoeiro?
A Ação do Demônio
A resposta à primeira pergunta, requer muito cuidado embora os sinais do
Maligno às vezes pareçam tornar-se evidentes. Podemos admitir a sua atuação
sinistra onde a negação de Deus se torna radical, sutil ou absurda; onde o
engano se revela hipócrita, contra a evidência da verdade; onde o amor é
anulado por um egoísmo frio e cruel; onde o nome de Cristo é empregado com
ódio consciente e rebelde (cf. ICor. 16,22; 12,3); onde o espírito do
Evangelho é falsificado e desmentido; onde o desespero se manifesta como a
última palavra, etc. Mas é um diagnóstico demasiado amplo e difícil, que
agora não ousamos aprofundar nem autenticar; que não é desprovido de
dramático interesse para todos, e ao qual até a literatura moderna dedicou
páginas famosas. O problema do mal continua a ser um dos maiores e
permanentes problemas para o espírito humano, até depois da resposta vitoriosa
que Jesus Cristo dá a respeito dele.
"Sabemos" escreve o evangelista São João que todo aquele que foi
gerado por Deus guarda-o, e o Maligno não o toca (IJo. 5,19).
A Defesa do Cristão
A outra pergunta, que defesa, que remédio, há para combater a ação do
Demônio, a resposta é mais fácil de ser formulada, embora seja difícil pô-la
em prática. Poderemos dizer que tudo aquilo que nos defende do pecado nos
protege, por isso mesmo, contra o inimigo invisível. A graça é a defesa
decisiva. A inocência assume um aspecto de fortaleza. E, depois, todos devem
recordar o que a pedagogia apostólica simbolizou na armadura de um soldado,
ou seja, as virtudes que podem tornar o cristão invulnerável (cf. Rm. 13,13;
Ef. 6,11´14´17; lTs. 5,8). O cristão deve ser militante; deve ser vigilante e
forte (lPd. 5,8); e algumas vezes, deve recorrer a algum exército ascético
especial, para afastar determinadas invasões diabólicas; Jesus ensina-o,
indicando o remédio "na oração e no jejum" (Mc 9,29). E o apóstolo
indica a linha mestra que se deve seguir: "Não te deixes vencer pelo
mal; vence o mal com o bem" (Rm. 12,21; Mt. 13,29)
Conscientes, portanto, das presentes adversidade em que hoje se encontram as
almas, a Igreja e o mundo, procuraremos dar sentido e eficácia à usual invocação
da nossa oração principal: "Pai nosso... livrai-nos do mal".
Contribua para isso a nossa Bênção apostólica.
DO LIVRO ´OS ANJOS´ do Prof. Felipe de Aquino
VOLTAR: Anjos & Arcanjos
HOME: Portal
a&e
Veja também:
Não perca: mais temas relacionados
|
....…..
Links Patrocinados:
|