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    BIBLIA

 

A SERPENTE E O MONOTEÍSMO  

Autoria:Haroldo Reimer[1][1]  

In:http://www.haroldoreimer.pro.br/exegese/serpente_mon.htm:

            Esta comunicação pretende fazer uma conexão entre a serpente de Gênesis 3 e a história do desenvolvimento do monoteísmo no antigo Israel. A hipótese básica é de que a serpente, como elemento catalizador da simbólica do mal, é uma construção relativamente tardia dentro da história da religião do Israel antigo, podendo, no meu entender, ser bem alocada no período do pós-exílio, isto é, no decorrer do século V a.C. É neste momento histórico que a fé em Yahveh como o Deus único de Israel recebe a sua formatação mais decisiva e incisiva e qualquer outra expressão de fé em Israel, distoante deste credo monoteísta, passará a ser tabuizada, iniciando-se um processo de diabolização das e outras divindades. É uma hipótese, ou talvez somente uma intuição para a qual ainda não tenho todos os elementos de comprovação, uma vez que se levantam muitos outros problemas.  

            Para dar suporte a essa hipótese busco trabalhar em toda a brevidade com três pontos distintos:

a)      Breves aspectos da história do desenvolvimento do monoteísmo bíblico;

b)      Questionamentos à datação tradicional de Gênesis 3 pela teoria das fontes;

c)      Influências persas na isotopia do negativo da serpente em Gênesis 3.

  1.      ASPECTOS DA HISTÓRIA DO MONOTEÍSMO BÍBLICO  

            Numa leitura sincrônica da Bíblia hebraica tem-se a impressão de que o credo monoteísta está presente desde as primeiras páginas desta obra histórica e teológica. Essa impressão ganha os contornos de que a crença monoteísta pura e verdadeira das origens do povo hebreu passaria por processos de degeneração no decorrer da história de Israel. Há autores renomados que têm escrito os seus trabalhos nesta perspectiva. O próprio Gerhard von Rad situava as origens do monoteísmo nos tempos primaveris do período pres-estatal. Da mesma forma, Norman Gottwald, com outros pressupostos, situava ali o seu monojavismo.

Na última década, a partir de vários acessos e impulsos distintos, tem-se feito, porém, um caminho diferente na pesquisa. Houve uma reviravolta. Passou-se a enfatizar um desenvolvimento da religião israelita a partir de formas plurais politeístas rumo a uma singularidade monoteísta, sendo esta concebida como uma forma tardia no processo histórico de Israel (LANG, 1981; DIETRICH; KLOPFENSTEIN, 1994).

Um ponto que teve o seu perfil alterado foi a imagem dos inícios de Israel. Gradativamente foi-se afirmando a idéia de uma diversidade de grupamentos humanos na constituição do Israel das origens. Consoante à tal diversidade social impunha-se o reconhecimento de uma diversidade religiosa, que foi sendo gradativamente afunilada para dentro de uma fé monoteísta. Desse processo pode-se postular várias fases (REIMER, 2003).

a) Estudos sobre os inícios da religião hebraica mostram que, numa primeira etapa, a divindade Yahveh, que se tornou principal e única no processo final, foi um elemento religioso trazido de fora para dentro do contexto cananeu, no qual o Deus El provavelmente ocupava a primazia no panteão divino bem como na religiosidade popular. Por motivos diversos, este Yahveh do deserto passou por processos de sincretização com o Deus El, sem, contudo, negar a diversidade religiosa reinante. Esse sincretismo há de ter continuado com a incorporação da cidade jebusita de Jerusalém dentro do conjunto das cidades israelitas. O movimento sincrético continua aí. 

b) Num segundo momento, pode-se postular conflitos religiosos com determinadas expressões religiosas. Emblemático para isso é o conflito com o Deus Baal, o que no reino do Norte no período do século IX a VIII  aC, tendo-se as narrativas pertinentes registradas em torno de figuras proféticas como Elias e Oséias. Por trás destas polêmicas pode-se postular conflitos entre grupos sacerdotais distintos, sendo que a perspectiva do que seja certo ou oficial é tomada a partir de reconhecimentos posteriores nos momentos de coleção e canonização dos referidos textos. Nas polêmicas contra Baal trata-se sobretudo de transferir para o Deus Yahveh atribuições de fertilidade, que no imaginário religioso cananeu-israelita popular são celebradas como próprias de Baal. Assim, através de polêmicas e de textos quase-catequéticos próprios do textos do ciclo de Elias, aliado a ações bélicas como a revolução de Jeú, o Deus Yahveh, originalmente um deus do deserto e da batalha, passa a ser também o deus da fertilidade (CRÜSEMANN, 2001). Textos do livro de Oséias indicam um aprofundamento destas polêmicas (RIBEIRO, 2003).

c) Um outro momento importante na história da afirmação do monoteísmo israelita situa-se no reino do sul no período do final do século VIII até o final do século VII aC. Aqui deve-se registrar a consolidação dos corpos de leis mais incisivos de Israel, o Código da Aliança (Ex 20,22-23,19) e o Código Deuteronômico (Dt 12-26). Ambos os códigos operam com a tese básica da centralidade da fé em Yahveh e da daí decorrente necessidade de tabuização da fé em outras divindades (CRÜSEMANN, 2002). Aqui já se está em um patamar mais desenvolvido. A fé monoteísta javista é afirmada em um contexto nacionalista, na medida em que se pode retroprojetar a idéia de nação para aqueles tempos antigos. A diversidade religiosa passa a ser objeto de ações perseguidoras oficiais, buscando-se sempre a cumplicidade dos homens de Israel que devem denunciar quem se desvia do credo oficial afirmado desde Jerusalém. Neste contexto, duas expressões religiosas são desqualificadas: por um lado é destruída a Neustã, uma divindade mágico-terapêutica do deserto instalada no templo e simbolizada na serpente de bronze (RIBEIRO, 2002); por outro lado, a deusa feminina Asherah passa por tabuização gradativa. Textos proféticos são funcionalizados para este processo de desqualificação da diversidade rumo à singularidade monoteísta. 

Cabe aqui registrar que ao longo deste processo verifica-se também um desenvolvimento de concepções de divindades telúricas para deuses celestes. Uma panorâmica da iconografia o revela (KEEL, 1992).

d) O período do exílio há de ter sido um período marcado por duplicidade ou multiplicidade de perspectivas. É muito provável que durante este período na terra em Israel tenham prevalecido formas plurais e mais sincréticas da fé em Yahveh, enquanto que entre os exilados no contexto babilônico o javismo tenha ganhado contornos mais exclusivistas, embora também sincréticos.

e) A perspectiva da golá, que gradualmente retorna para Judá, certamente foi a mais incisiva na formatação do que seja a fé monoteísta típica e normativa do povo judeu. No retorno da golá e no processo de reconstrução do ‘verdadeiro Israel’ no século V aC, tratava-se de afirmar ou reafirmar a exclusividade de Yahveh, seu sacerdócio masculino, sua residência oficial no templo de Jerusalém e a incompatibilidade com a fé em qualquer outra divindade.

É nesse contexto que buscamos situar a narrativa de Gênesis 3 que trata do conflito entre Yahveh e a serpente. Com isso vamos chegando ao segundo argumento: a datação do texto de Gênesis 3.

  A DATAÇÃO DE GÊNESIS 3

Tradicionalmente, Gênesis 3 tinha a sua origem situada no século X a.C. no assim chamado iluminismo salomônico. Isso era uma concepção fortemente assentada pela clássica teoria das fontes. Gênesis 3, junto com o capítulo 2, seria um texto saído da escrita do autor Javista.

Essa datação começou a cair em descrédito com a descrença acadêmica em relação à teoria das fontes, sobretudo a partir de meados de 1970. Assim se impunha a necessidade de buscar outras alocações para este texto.

Milton Schwantes, no seu livro “Projetos de Esperança”, escrito na década de 1980 e recentemente republicado (2002), descrente da datação tradicional, tenta situar a origem do texto no século VIII a.C. no contexto das polêmicas proféticas contra a idolatria. A serpente seria símbolo do estado opressor, catalizando diversas experiências opressores, inclusive o Egito. O Deus Yahveh, através de seus porta-vozes, os profetas, seria a expressão da verdadeira fé.

Aqui poderiam ser alistados outros autores e tentativas de situar o texto, chegando alguns deles a pensar em datações tardias. Fica a percepção de que com o descrédito do argumento tradicional da teoria das fontes, abre-se o caminho para a busca de novas alocações do texto. A minha intuição vai no sentido de propor uma datação, senão de todo o texto de Gênesis 3, mas sobretudo do elemento da serpente como simbólica do mal.  

  A SERPENTE COMO SIMBÓLICA DO MAL

Gênesis 3 não opera na faixa de conflitos ou polêmica contra outras divindades específicas, como era o caso de Baal, Neustã, Ashera, Rainha dos céus, etc. A linguagem de Gênesis 3 é uma linguagem em estrutura mítica. Um evento imaginário é retroprojetado para um momento das origens, o in illo tempore , típico da linguagem que opera em código mítico. Em Gênesis 3 estamos diante de um mito hebraico, como bem o afirmava o saudoso Severino Croatto (2000).  

Com essa determinação do gênero de literário, o texto obviamente não opera no nível da historicidade. Histórico é o texto em si enquanto produto cultural/religioso e histórica é a situação dos produtores desta narrativa mítica, mas não o conteúdo imaginário narrado.  

A narrativa da serpente, ligada com tantas problemáticas dogmáticas, opera com um esquema dual. A opção é entre Yahveh e a serpente. Os produtores da narrativa querem levar os ouvintes ou leitores a optar por Yahveh contra a serpente. A partir da análise da história da religião de Israel, ganha-se informações de que um dualismo incipiente passa a ser incorporado na religião judaica a partir do período persa, com influencias do zoroastrismo. Penso ser este o caso aqui.  

Mas por que a serpente como símbolo do mal? No mundo natural, que é o primeiro nível do elemento simbolizado, a serpente tem várias facetas. Isso se traduz para o nível simbólico-religioso, com o dado de que o elemento serpente pode comportar várias simbolizações, evidenciando uma polissemia simbólica. No relato de Gênesis 3, a serpente, enquanto símbolo, perdeu a sua polissemia e opera na isotopia do negativo. Croatto afirma que um símbolo introduzido num relato tende a perder a sua polissemia original, passando a indicar uma expressão simbólica.  

O aproveitamento da serpente como simbólica do mal pode ser uma influência do zoroastrismo persa do período, no qual a serpente é entendida como um elemento telúrico, ligado à terra, e, como tal, tão abaixo dos astros celestiais, remete para dimensões obscuras da existência.  

O dualismo incipiente proposto pela narrativa de Gênesis 3 corresponde a outras simbólicas do mal produzidas no mesmo período. Penso na representação de Satã, Leviatã e Beemot no livro de . Estas figuras igualmente indicam para dimensões do mal fora de Yahveh e fora do ser humano. Estamos aqui no mesmo nível de simbolizações do negativo, porém, não no código de linguagem tão incisivo de uma narrativa mítica. A partir de Gênesis 3, a serpente passa a ser o elemento catalisador de toda expressão religiosa concorrente a Yahveh, representando um ponto culminante da história do monoteísmo hebraico/judaico.  

A intuição básica, pois, é esta: a serpente como simbolização do mal está relacionada com a história do monoteísmo judaico, representando, no meu entender, um estágio avançado da história do monoteísmo. Com o recurso da linguagem mítica, o elemento simbólico polissêmico da serpente é construído como a simbólica por excelência do mal, abrindo caminho para se ler para dentro deste símbolo toda e qualquer outra experiência de fé destoante e alternativa a Yahveh como expressão sendo expressão do mal.  

Com a aproximação do elemento feminino na proximidade deste símbolo do mal opera-se uma dupla tabuização: de qualquer divindade representada pela serpente e da própria mulher. Algumas pinceladas na história da arte pictórica sobre Gênesis 3 revela isso muito bem. Com isso, o universo feminino, com a aproximação à simbólica do mal, operada pelos autores de Gênesis 3, fica interditada para o livre exercício de atividades sacerdotais junto a Yahveh, deixando o espaço livre para a exclusividade do sacerdócio masculino.

 REFERÊNCIAS

  ALBERTZ, Rainer. Religionsgeschichte Israels in alttestamentlicher Zeit. Gottingen: Vandenhoeck & Ruprecht, 1992.

  CROATTO, José Severino. Quem pecou primeiro? Estudo de Gênesis 3 em perspectiva utópica. Revista de Interpretação Bíblica Latino-americana, Petrópolis; São Leopoldo, n. 37, p. 15-27, 2000.

  CROATTO, José Severino. As linguagens da experiência religiosa. Uma introdução à fenomenologia da religião. Tradução de Carlos Maria Vásquez Gutiérrez. São Paulo: Paulinas, 2001, p. 81-266.

  CRUSEMANN, Frank. Elias e o Surgimento do Monoteísmo no Antigo Israel. Fragmentos de Cultura, Goiânia, v. 11, n. 5, p. 779-790, 2001.

  CRUSEMANN, Frank. A Torá. As leis do Antigo Testamento em perspectiva histórico-social. Tradução Haroldo Reimer. Petrópolis: Vozes, 2002.

  DIETRICH, Walter; KLOPFENSTEIN, Martin (eds.). Ein Gott allein? JHWH-Verehrung und biblischer Monotheismus im Kontext der israelitischen und altorientalischen Religiongeschichte, Freiburg: Universitaetsverlag;  Gottingen : Vandenhoeck & Ruprecht, 1994.

  KEEL, Othmar; UEHLINGER, Christoph. Gottinen, Gotter und Gottessymbole. Neue Erkenntnisse zur Religionsgeschichte Kanaans und Israels aufgrund bislang unerschlossener ikonographischen Quellen. Freiburg; Basel; Viena: Herder, 1992.

  LANG, B. Die Jahwe-allein-Bewegung. In: LANG, B. (ed.). Der einzige Gott. Die Geburt des biblischen Monotheismus. Munique: Kosel Verlag, 1981, p. 47-48.

  REIMER, Haroldo. Sobre o início do monoteísmo no antigo Israel. Fragmentos de Cultura, Goiânia, v. 13, n. 5, p. 967-988, 2003.

  RIBEIRO, Osvaldo Luiz. Nehushtan. Pesquisa exegética, fenomenológica e histórico-social sobre a origem, a supressão e o suporte social do culto à serpente de bronze em Israel com base em Nm 21,4-9; Is 6,1-7 e 2 Rs 18,4. Dissertação (Mestrado) – Seminário Teológico Batista do Sul do Brasil, Rio de Janeiro, 2002.

  RIBEIRO, Osvaldo Luiz. Ela não é minha mulher. O programa religioso da gollah em Os 2,4-15. Fragmentos de Cultura, Goiânia, v. 13, n. 5, p. 1017-1046, 2003.

  SCHWANTES, Milton. Projetos em conflito (Gênesis 2-3). In: IDEM, Projetos de esperança. Meditações sobre Gênesis 1-11. São Paulo: Paulinas, 2002, p. 103-121.

[Texto apresentado como “comunicação” no I Congresso Brasileiro de Pesquisa Bíblica, realizado em Goiânia nos dias 08 a 10 de setembro de 2004; publicado em REIMER, Haroldo; SILVA, Valmor da (orgs.). Hermenêuticas bíblicas. São Leopoldo: Oikos; Goiânia: UCG; ABIB, 2006, p. 115-120]

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[1][1] Doutor em Teologia pela Kirchliche Hochschule Bethel, Alemanha, Professor no Departamento de Filosofia e Teologia e no Mestrado em Ciências da Religião da Universidade Católica de Goiás, Teólogo Luterano. E-mail: h.reimer@terra.com.br