índice
Prefácio VII
Introdução de Jeffrey
Hopkins 1
Nota Técnica 29
1 A Visão Budista de
Mundo 33
2 Vida Impulsionada pela
Ignorância 57
3 Níveis do Caminho 77
4 O Valor do Altruísmo 95
5 Compaixão e Sabedoria
Combinadas 111
Notas 123
Glossário 131
Bibliografia 137
Índice Remissivo 143
Prefácio
A Fundação
Gere tem o prazer de patrocinar a publicação de O Sentido da Vida, de Sua Santidade, o Dalai Lama, pela Wisdom
Publications. Prêmio Nobel da Paz em 1989, o Dalai Lama é universalmente
reconhecido como um dos grandes ativistas espirituais de nossa época. Ele é
produto de uma linhagem ininterrupta que remonta ao Buda histórico. Seus
quarenta anos como mestre espiritual e líder político são incomparáveis. Um
erudito brilhante, cujas palavras e experiência vão muito além do acadêmico.
Seus ensinamentos têm raízes numa vida de provações e testes, vida esta
dedicada à paz, aos direitos humanos, às mudanças sociais e à total
transformação da mente e coração humanos. Isto só pode ser alcançado através da
não-violência destemida, inspirada por uma sabedoria transcendente e um
inabalável altruísmo universal. “Minha religião é a bondade”, disse ele várias
vezes.
Desde a invasão chinesa
do Tibete independente em 1950 e de sua angustiante fuga para a Índia em 1959,
Sua Santidade tem trabalhado incansavelmente para libertar seu povo de um
genocídio brutal e sistemático que matou 1,2 milhão de tibetanos (um quinto da
população local antes da invasão). A paciência resoluta e a compaixão que ele
mostrou por aqueles que continuam a destruir seu país finalmente estão
começando a dar frutos, e a restauração da independência do Tibete está à
vista. A capacidade de seguir, personificar e gerar princípios budistas sob
extrema adversidade é a marca de um verdadeiro bodhisattva.
Este livro é uma
maravilhosa oportunidade para todos nós fazermos contato com este homem e seus
ensinamentos. Os leitores obterão muitos benefícios ao contemplar e meditar
sobre estes ensinamentos. A Fundação Gere tem orgulho de estar associada ao
Dalai Lama e à sua mensagem de responsabilidade e paz universais, e se alegra
por apoiar a Wisdom Publications em seus esforços para promover estes ideais.
Possa este livro trazer felicidade e motivos para a futura felicidade de todos
os seres.
Richard Gere
New York
Introdução
Por que estamos nesta
situação? Para onde estamos indo? Será que nossas vidas têm algum sentido? Como
podemos fazer uso de nossas vidas? Como o budismo vê a condição dos seres no
mundo e os modos pelos quais os humanos podem fazer algo significativo de suas
vidas?
Estas perguntas sobre o
sentido da vida são abordadas num famoso quadro budista, de uma roda com 21
partes que esboçam o processo do renascimento. O diagrama, que dizem ter sido
desenhado pelo próprio Buda, retrata uma cosmologia psicológica interior que
tem grande influência em toda Ásia. É muito parecido com um mapa-múndi ou com a
tabela periódica dos elementos químicos, mas é o mapa de um processo interno e
seus efeitos externos.
No Tibete, este quadro
está na entrada de praticamente todos os templos. Ele descreve vividamente como
ficamos presos num redemoinho contraproducente de sofrimento e como este
processo pode ser revertido, mostrando como os budistas se posicionam em um
universo sempre cambiante de causa e efeito. Ao iluminar as causas por trás de
nossa situação de limitação e dor, a roda da existência cíclica revela como,
através da prática de antídotos para estas causas, podemos superar as situações
dolorosas e limitantes que são seus efeitos. Ela mostra o propósito altruístico
que pode tornar a vida significativa. A perturbadora descrição das etapas de
aprisionamento é um chamado à ação, porque mostra como a prisão do egoísmo pode
ser transformada em uma fonte de ajuda e felicidade tanto para a pessoa em si
quanto para os outros.
No alto do quadro, à
direita de quem o olha, o Buda está de pé, com a mão esquerda no gesto de
ensinamento e com o dedo indicador da mão direita apontando para uma lua do
lado oposto, também ao alto. A lua simboliza a liberação. O Buda está mostrando
que é possível libertar-se da dor. (Observe que há um coelho desenhado na lua.
Enquanto muitos não-asiáticos vêem um “rosto humano na lua”, os asiáticos vêem
o contorno de um coelho; de todo modo, sua presença na lua do quadro é
meramente uma representação da topografia lunar.) O fato do Buda estar
indicando que a liberação é possível no alto da ilustração dá um tom otimista
para o quadro como um todo. A intenção da tela não é comunicar o mero
conhecimento de um processo, mas utilizar este conhecimento no redirecionamento
e melhora de nossas vidas.
A palavra buda em si destaca um importante aspecto
da natureza da aflição e da liberação. O termo buda (ou buddha) é o particípio passado do verbo sânscrito budh, que significa “despertar” ou
“expandir”; deste modo (quando colocado no contexto das doutrinas budistas), o
verbo significa “despertar do sono da ignorância e expandir a inteligência por
tudo que pode ser conhecido” – superar a ignorância e
se tornar onisciente. O modo usual de fazer um particípio passado em sânscrito
é acrescentar “ta”, como o “do” do português em “passar”. Como dizer bud-ta não seria eufônico, o t passou a soar como d. É assim que a palavra buda vem a designar alguém que se tornou iluminado, ou seja, que
superou o sono da ignorância e expandiu sua inteligência por tudo que pode ser
conhecido. A importância do fato da palavra buda
ser um particípio passado – “alguém que se tornou iluminado” – é que os budas
necessariamente são seres que não eram budas anteriormente. São pessoas que
estavam adormecidas e despertaram; em algum momento a inteligência delas não
abrangia tudo o que podia ser conhecido. Elas estavam, como nós, aprisionadas
no estado de existência cíclica, indo de uma vida para outra através dos
sofrimentos do nascimento, envelhecimento, doença e morte.
O Buda do qual ainda
temos os ensinamentos é considerado um entre muitos budas de nossa era. Entre
estes, porém, ele foi o único a fazer uma manifestação pública de doze feitos
notáveis, incluindo seu nascimento milagroso, pelo flanco de sua mãe. Dizem que
na verdade ele havia se iluminado há éons e emanou uma forma chamada supremo
corpo de emanação, parecendo ter nascido numa família real indiana por volta de
563 a.C[LB1].[1] Ele
abandonou a vida principesca e partiu para um retiro em 524, tornou-se
iluminado em 518 e morreu em 483 a.C., aos oitenta anos, tendo ensinado por 48
anos.
Antes da iluminação, o
Buda era um ser comum, exatamente como qualquer um de nós; não há ninguém que
seja iluminado desde o princípio. Cada um de nós está ou esteve no estado de
existência cíclica, passando pelo processo de nascimento, envelhecimento,
doença e morte repetidamente, devido às nossas próprias ações, que são
amplamente motivadas por emoções aflitivas – emoções com as quais afligimos nós
mesmos. Por exemplo: quando ficamos com raiva e nosso rosto fica vermelho e
contorcido, afligimos até mesmo nossa aparência externa.
Estas emoções aflitivas,
influências negativas periféricas à natureza básica e pura da mente, baseiam-se
na compreensão equivocada e ignorante a respeito do status dos fenômenos. Sem
saber como as coisas de fato existem, sobrepomos aos fenômenos um status
superconcreto que eles na verdade não possuem. O objeto não precisa ser importante
na ordem das coisas, pode ser bem insignificante. Pode ser um doce, uma fatia
de pizza, o que quer que seja. Antes de nos tornarmos desejosos ou detestáveis,
nós mesmos e o objeto somos mal-interpretados de tal forma que é gerada uma
verdadeira mixórdia emocional.
A roda no centro do
quadro está nas garras de um monstro aterrador. Isto significa que todo o
processo de existência cíclica está preso dentro da transitoriedade. Em nosso
tipo de vida, tudo se caracteriza pela impermanência. O que quer que seja
construído virá abaixo, o que ou quem quer que seja unido virá a se separar.
A roda em si mostra-nos
como reconhecer nossa própria condição. As 21 partes do diagrama abordam a
questão fundamental sobre como e por que nascemos dentro de situações de
autofracasso. O que motiva as ações virtuosas e não-virtuosas? Quais são os
vários tipos de vida? Qual é a cadeia da causalidade?
O meio da roda retrata o
problema básico. Bem no centro está um porco, simbolizando a ignorância que
dirige todo o processo. O porco representa a ignorância essencial, que não é
apenas uma incapacidade de compreender a verdade, mas uma compreensão
equivocada ativa sobre o status de si mesmo e de todos os outros objetos – a
própria mente ou corpo, outras pessoas e tudo o mais. É a concepção ou
suposição de que os fenômenos existem de um modo muito mais concreto do que
eles na verdade existem.
Baseados nesta
compreensão equivocada sobre o status das pessoas e das coisas, somos
arrastados para o desejo e a aversão aflitivos, simbolizados por um galo e uma
cobra respectivamente. Em muitos desenhos da roda, o galo e a cobra são
retratados saindo da boca do porco, a fim de indicar que desejo e aversão
dependem da ignorância para existir; sem a ignorância é impossível que existam.
Tanto o galo quanto a cobra agarram o rabo do porco em
suas bocas, para indicar que eles, por sua vez, fomentam ainda mais ignorância
– confusão, atordoamento e obscuridade. Não conhecendo a verdadeira natureza
dos fenômenos, somos levados a gerar desejo pelo que gostamos e aversão pelo
que não gostamos e pelo que bloqueia nossos desejos. Este trio – ignorância,
desejo e aversão – é chamado de os três venenos; eles pervertem nossa
perspectiva mental.
FIGURA 1: Os Três Venenos
Desejo
Aversão
Ignorância (a raiz dos
outros dois)
Os semicírculos
claro e escuro logo depois do eixo indicam as ações virtuosas e
não-virtuosas que são motivadas pela tríade da ignorância, desejo e aversão. No
semicírculo escuro há pessoas ocupadas com atividades contraproducentes; elas
estão voltadas para baixo a fim de indicar que ações negativas levam a estados
inferiores. No semicírculo de luz, pessoas ocupadas com ações positivas estão
voltadas para cima, para indicar que ações virtuosas levam a estados mais
elevados, ou mais favoráveis.
Seis Setores Cercando os Semicírculos
Os tipos
de estados aos quais as ações produtivas e contraproducentes conduzem são
representados por seis setores desenhados em volta dos semicírculos das ações.
Todos os seis estão presos dentro da existência cíclica. Desse modo, embora a
roda seja dividida basicamente em duas partes – com os três setores de cima
representando as três transmigrações felizes e os três setores de baixo
representando as três transmigrações ruins –, todos estão igualmente
aprisionados na esfera da existência cíclica.
FIGURA 2: As Seis Transmigrações
(Ler de baixo para cima)
6 Deuses
5 Semideuses Felizes
4 Humanos
3 Animais
2 Fantasmas famintos Ruins
1 Seres dos infernos
O setor bem ao alto
abrange os deuses. Estes deuses levam vidas longas e agradáveis, mas, quando a
força das ações virtuosas que ocasionaram o nascimento neste estado está
esgotada, eles sofrem por renascerem em estados inferiores. Eles são
especialmente afligidos pelo conhecimento, perto da época de suas mortes, de
que seu estado elevado está acabando e que um estado inferior e doloroso está
prestes a começar devido ao fato de terem passado a vida em deleite, sem se
empenharem em atividades virtuosas.
À direita dos deuses
está o reino dos semideuses. O nome deles também poderia ser traduzido por
“não-deuses”, não porque não sejam deuses, mas porque são inferiores em
comparação com os deuses.[2] Observe
que uma árvore carregada de frutos cresceu na terra deles, e que um semideus
está tentando apanhar uma fruta com uma faca, mas a parte superior da árvore –
a parte das frutas – está na terra dos deuses, e o semideus não consegue
alcançá-la. Os deuses deleitam-se com as frutas que crescem na terra dos
semideuses, do mesmo modo que países industrializados pegam minério e outras
coisas dos países do terceiro mundo, ou como certas corporações multinacionais
mantêm-se às custas das pessoas pobres que trabalham para elas. Porque sua
própria riqueza beneficia principalmente apenas os outros, os semideuses são
particularmente afligidos pela inveja e pelo conseqüente sofrimento por
atacarem e serem feridos pelos deuses.
O setor dos humanos está
ao alto, à esquerda. Os humanos são submetidos aos sofrimentos da fome, sede,
calor, frio, afastamento dos amigos, perseguição pelos inimigos, busca daquilo
que desejam sem encontrar, e de ter que passar pelo que é indesejado. Além
disso, há o sofrimento geral do nascimento, envelhecimento, doença e morte. O
quadro contém pessoas envolvidas numa série de atividades humanas, desde abater
animais até levar uma vida monástica. Para mim, esta variedade parece indicar
que a educação é possível numa vida humana. Assim, mesmo que os deuses tenham
vidas mais faustosas e afortunadas, não têm a ventura do aperfeiçoamento pelo
qual muitos humanos podem passar. Freqüentemente os humanos têm uma mistura de
prazer e dor, de tal modo que não estão sempre dominados pela dor, mas sofrem o
bastante para ficarem motivados a encontrar uma forma de melhorar sua situação.
Na parte de baixo da
roda, vemos do lado esquerdo o reino dos animais, que são particularmente
afligidos por serem usados para os propósitos dos outros e pela incapacidade
geral de falar. Do lado oposto está o reino dos fantasmas famintos, que são
particularmente perturbados pela fome e pela sede. Os fantasmas famintos estão
em constante busca de comida e bebida, mas são incapazes não só de encontrar
alimento, como até de ouvir a palavra “comida”. Têm estômagos enormes, mas
gargantas muito estreitas, de modo que apenas os bocados mais minúsculos
conseguem passar; mesmo estes tornam-se insuportáveis porque descem queimando a
garganta.
O setor bem embaixo
retrata os infernos – os oito infernos quentes, os oito infernos gelados e os
infernos vizinhos. Os infernos vizinhos estão relacionados aos outros da
seguinte forma: uma pessoa que habita um inferno quente, fervendo em ferro
derretido, eventualmente esgota o carma que causou seu nascimento naquele
lugar. Esta pessoa sai de lá e, ao ver um lago adorável, por exemplo, corre
para dentro dele, apenas para afundar numa massa de corpos putrefatos. A
questão é que para nós é difícil aprender que o processo de atração e repulsa
em si – que, para começar, nos mete em apuros infernais – deve ser inteiramente
evitado. O sábio indiano Kamalashila, que visitou o Tibete no século VIII, diz
que os sofrimentos dos seis reinos da existência devem ser vistos não como
ocorrendo apenas naqueles tipos de renascimento, mas também nas vidas humanas[3]:
Humanos também experimentam os
sofrimentos dos seres dos infernos e dos demais. Aqueles que aqui são afligidos
por terem seus membros arrancados, serem impalados, enforcados e assim por
diante, por ladrões e semelhantes, sofrem como seres dos infernos. Aqueles que
são pobres e excluídos e sentem dor por causa da fome e sede sofrem como
fantasmas famintos. Aqueles em servidão e situações semelhantes, cujos corpos
são controlados por outros e que são oprimidos, sofrem por serem espancados,
presos e coisa parecida, como animais.
Meu primeiro professor
de budismo tibetano foi um praticante erudito mongol kalmyck que sobreviveu à
brutal tomada de poder pelos comunistas na União Soviética, passou 35 anos no
Tibete, previu a escalada comunista por lá e imigrou para os Estados Unidos.
Ele costumava dizer que os americanos eram os deuses e os russos eram os
semideuses. Neste sentido, podemos ver estes reinos de seres como a
representação de tipos de vida dentro da existência cíclica e também de
períodos de nossa vida e da vida dos outros – curtos como cinco minutos, ou
meses, ou mesmo uma vida inteira.
Deste modo, motivados
pela ignorância – simbolizada pelos três animais do centro –, nos ocupamos com
ações virtuosas e não-virtuosas – simbolizadas pelos dois semicírculos –, o que
leva ao renascimento nos seis reinos da existência cíclica. Como se dá este
processo, quais são os estágios de causa e efeito?
As doze partes do quarto
nível da roda, o aro externo, apresentam o processo em detalhe. São chamadas de
doze elos, ou doze ramos, porque abrangem a seqüência causal das vidas na existência
cíclica. Vamos citá-las antes de descrevê-las em detalhes:
O surgimento dependente
da existência cíclica começa com (1) a ignorância, que motiva (2) uma ação. Ao
final da ação, é estabelecida uma predisposição dentro da consciência, chamada
de (3a) consciência causal. Isto leva – depois do que pode ser um longo tempo –
ao renascimento, que é chamado de (3b) consciência resultante. O começo de uma
nova vida é chamado de (4) nome e forma. O estágio seguinte, o desenvolvimento
do embrião, é chamado de (5) esferas dos sentidos. A partir da formação do
corpo, desenvolve-se (6) o contato; do contato, (7) a sensação; da sensação,
(8) o desejo; do desejo, (9) o apego; do apego, desenvolve-se no fim da vida um
estágio chamado de (10) existência, que é de fato o momento imediatamente
anterior a uma nova vida; a nova vida começa com (11) o nascimento e depois
continua com (12) o envelhecimento e a morte.
FIGURA 3: Os Doze Elos do Surgimento Dependente
1 ignorância[4]
2 ação
composicional[5]
3 consciência[6]
a. consciência causal
b. consciência resultante
4 nome
e forma[7]
5 esferas
dos sentidos[8]
6 contato[9]
7 sensação [10]
8 desejo[11]
9 apego[12]
10 existência[13]
11 nascimento[14]
12 envelhecimento
e morte[15]
O primeiro
elo, que simboliza a ignorância, é representado por uma pessoa idosa, cega e
manca, de bengala. Por quê? A pessoa é idosa porque a ignorância que dirige o
processo da existência cíclica não tem princípio; é cega porque a ignorância
está obscurecida a respeito da verdadeira natureza das pessoas e dos demais
fenônemos. A pessoa manca com a bengala porque, não importa quanto sofrimento
crie, a ignorância não tem nenhum fundamento válido, não está baseada na
verdade e, portanto, pode ser abalada pela sabedoria.
Existem
dois tipos de ignorância: uma forma básica e uma secundária, que está envolvida
apenas com ações não-virtuosas, ou negativas. A primeira é a consciência que
concebe de forma equivocada o status das pessoas e dos outros fenômenos. Esta
consciência imagina que as pessoas e demais fenômenos têm uma solidez além da
que eles realmente possuem, ocasionando, deste modo, todas as emoções
aflitivas. É chamada de consciência que concebe a existência inerente.
Assim, a
ignorância básica não é apenas a ausência de conhecimento do status real dos
fenômenos, mas uma ativa concepção do oposto – ou seja, a concepção da
existência inerente, quando na verdade os fenômenos não existem inerentemente.
Percebemos as coisas como se fossem capazes de abranger todas as partes de que
são constituídas, quando não existe nada que abranja todas aquelas partes. Por
exemplo: porque um conjunto de quatro pernas e uma tampa é capaz de sustentar
coisas, somos iludidos pelo pensamento de que existe uma coisa chamada mesa, que compreende estes elementos.
Embora os fenômenos não existam inerentemente, ou a partir de si mesmos, ou por via de suas
próprias características, nós concebemos que existam assim. Isto é ignorância.
Aqui nos
doze elos do surgimento dependente, ignorância refere-se à concepção equivocada
da pessoa, especificamente sobre si mesma, como existindo de forma inerente, e
à concepção equivocada de que os fenônemos que fazem parte de
seu continuum, como mente e corpo, existem inerentemente. Na verdade,
uma pessoa só é designada na dependência do conjunto de corpo e mente; ela é
entendida como existindo meramente de forma nominal. Todavia, esta visão de uma
pessoa nominalmente existente não a deixa como morta, nem a transforma no corpo
operado por um cirurgião. Quando um cirurgião abre o corpo e não encontra
nenhum eu, nenhuma pessoa, pode pensar que existe apenas matéria. Obviamente
esta não é a posição budista, mesmo que os budistas digam que as pessoas
existem apenas nominalmente. Por que desenvolveríamos compaixão pelos outros se
fossem apenas matéria descartável?
A forma
básica de ignorância é a consciência que percebe uma pessoa nominalmente
existente – uma pessoa que na verdade só existe e é designada na dependência do
corpo e da mente – a existir inerentemente, a ocupar um espaço de modo concreto,
e então concebe a mente o corpo como uma possessão pessoal inerentemente
existente – coisas possuídas pelo eu. A outra forma de ignorância – o tipo
ligado apenas às ações não-virtuosas, ou negativas – é uma concepção equivocada
sobre os efeitos das ações. Neste caso, também existe obscurecimento a respeito
até das relações mais grosseiras entre as ações e seus efeitos –, não se
entendendo que, se uma certa ação é praticada, um certo resultado se seguirá, e
se desenvolvendo concepções equivocadas, como achar que um roubo trará apenas
prazer. Isto significa que, se realmente soubéssemos o que seria suportar os
efeitos futuros de uma ação não-virtuosa, não a faríamos. Não cometeríamos
assassinato, furto, nem nos envolveríamos com má conduta sexual, mentira,
discórdia, fala grosseira, tagarelice insensata e assim por diante.
Ação
O segundo
elo, ação, é simbolizado por um oleiro fazendo um vaso. Se pegarmos nossa vida
atual como exemplo, o primeiro elo, “ignorância”, refere-se à ignorância que,
numa vida anterior, motivou aquela ação que serviu de carma principal,
projetando este renascimento. Não se refere à ignorância que ocorre ao longo de
uma vida, mas àquele período – mesmo que de uns poucos momentos – que motivou
uma única ação significativa levando a outra vida.
Por
exemplo: se estivéssemos em uma transmigração ruim (ou seja, se não
estivéssemos numa vida humana, que é considerada uma transmigração feliz), a
principal ação a tê-la gerado poderia ter sido um assassinato. Neste caso, o
período de ignorância seria a época em que o crime foi planejado, praticado e
concluído. Este período de concepção equivocada e obscurecimento seria a
ignorância motivando aquela ação específica. As concepções de alguém como sendo
um eu inerentemente existente
e de sua própria mente e corpo como o eu inerentemente existente são um
agrupamento, um continuum de consciência ignorante envolvida em uma ação. Essa
ação pode durar apenas alguns minutos; se alguém está planejando um
assassinato, pode durar mais. Além disso, haveria ignorância adicional pela
ausência de conhecimento e compreensão equivocada sobre os efeitos do
assassinato.
A ação
principal para projetar o renascimento como ser humano deve ser uma ação
virtuosa – abster-se de má conduta. Visto que esta ação estabelece uma vida
inteira numa transmigração feliz – ou seja, como deus, semideus ou humano –, a
ação deve ser meritória, porque, como diz Chandrakirti: “Uma causa para status
elevado / Não é outra senão a ética correta”[16].
Embora
também haja outras causas além da ética, a fim de se obter uma vida em uma das
três transmigrações felizes, chamadas de “status elevado”[17], é
necessário que a causa impulsora daquela vida seja uma ação ética. Dzong-ka-ba,
iogue erudito tibetano do final do século XIV e começo do século XV, explica da
seguinte forma: “Isto significa que... uma relação explícita com a ética é
necessária. Se a ética é abandonada, não há meio pelo qual isto possa ser
obtido.”[18]
Contudo, a ignorância está presente naquele que tem as concepções equivocadas
de que:
¨ o indíviduo, aquele que abandona a má conduta,
existe inerentemente
¨ o abandono existe inerentemente
¨ o ser senciente em relação ao qual aquela má conduta
está ligada existe inerentemente.
Embora a
ação seja virtuosa, está envolvida com a ignorância que sobrepõe àqueles
fatores o sentido de que eles existem por si mesmos.
Para ser
um “caminho de ação” completo, capaz de impelir alguém rumo a uma transmigração
feliz ou ruim, uma ação deve ter cinco fatores:
¨ intenção
¨ pensamento que identifica corretamente o objeto
¨ preparação para a atuação
¨ conclusão bem-sucedida
¨ irreversibilidade da intenção antes da ação ser completada.
Se você
planejasse matar uma pessoa, mas matasse outra, essa ação seria não-virtuosa, e
seus efeitos seriam negativos, mas não seria um caminho de ação completo
levando a uma nova vida. O que fica faltando é a real execução da ação contra a
pessoa que você pretendia matar. Além disso, a ação deve ser completada sem
reversão da intenção original. Por exemplo: se a pessoa não morresse
imediatamente, e você pensasse: “Isto é terrível; eu não devia ter feito isto”,
não seria um caminho de ação completo mesmo que a pessoa morresse mais tarde.
Ainda assim, o ato teria
conseqüências terríveis.
Consciência
O terceiro
elo, a consciência, é simbolizado por um macaco. Nos doze elos do surgimento
dependente, a consciência é de dois tipos – causa e efeito.
Consciência causal. Quando a
ação foi completada, sua potência[19]
infunde-se na consciência que existe naquela hora. Este breve período da mente,
a consciência causal, ocorre imediatamente após a conclusão da ação. Esta
consciência é uma entidade neutra, capaz de ser infundida com predisposições
virtuosas ou não-virtuosas; por ser neutra, pode ser maculada por qualquer tipo
de predisposição. Se alguém mistura duas substâncias de cheiro forte, tais como
alho e sândalo, os odores afetarão um ao outro, produzindo uma mistura de alho
e sândalo. Entretanto, se alguém coloca uma coisa com cheiro forte perto de
algo neutro – sementes de gergelim, por exemplo –, a substância neutra pega o
odor forte. É desta forma que a ação deixa sua própria impressão na
consciência.
A
predisposição é uma potência, um poder que foi impresso de certa maneira
(virtuosa ou não-virtuosa, meritória ou não-meritória) e levará a uma vida
futura. De acordo com a intensidade desta potência, as pessoas morrem em idades
variadas – algumas têm vida longa, e outras não. A potência principal para
levar a esta vida pode ter sido estabelecida em qualquer vida passada – qualquer vida, mesmo há um milhão de
vidas ou um milhão de éons. Então, ao final da vida imediatamente anterior, a
potência para esta vida foi nutrida por certos fatores (a serem discutidos mais
adiante), tais como nossos desejos pelo tipo de vida que gostaríamos de ter.
Como um sinal de que nutrimos tais potências, considere o fato de que, quando
alguém pergunta: “Se houvesse outra vida, o que você gostaria de ser?”,
imediatamente dizemos: “Gostaria de ser...” Isto mostra que já estamos nutrindo
certos tipos de potência.
Consciência resultante. A
potência nutrida desta forma é inteiramente ativada no final da vida anterior.
Entre duas vidas há um estado intermediário, que pode ser curto como um breve
instante ou longo como 49 dias. Entretanto, cada vida no estado intermediário
dura apenas sete dias; assim, se você permanece 49 dias no estado
intermediário, passa por sete nascimentos diferentes neste período.
É dito que
durante o período intermediário você fica buscando um lugar para vir a
renascer, vagueando por locais onde os seres estão copulando, mas, se você não
tem um ímpeto determinado, uma potência para um certo tipo de renascimento, não
há como poder entrar num útero feminino específico. Por exemplo: você pode
estar numa área onde há cachorros copulando, mas, se não tiver uma potência
ativada para nascer como cachorro, você não pode entrar no útero da cadela; se
a potência que foi ativada é daquele tipo, você é forçado a entrar, querendo ou
não. Se você vai renascer como macho, é fortemente atraído pela fêmea, a mãe, e
sente aversão pelo pai. Entretanto, diz-se que quem vai renascer como macho
entra pela boca ou pela cabeça do pai e sai pelo falo dele dentro do útero.[20] Se você
vai renascer como fêmea, é atraída pelo pai e funde-se à mãe.
Deixando o
estado intermediário, você entra no útero de sua nova mãe (se está obtendo um
nascimento em útero). Esse é o primeiro momento da nova vida. É chamado de
“consciência resultante”; o termo refere-se àquele momento de consciência – o
começo da nova vida.
Nesta
apresentação dos doze elos do surgimento dependente (ver Figura 4), os dois
elos iniciais e a primeira metade do terceiro – ignorância, ação e consciência
causal – podem ocorrer em qualquer vida passada e são chamados de “causas
projetoras” porque fornecem o ímpeto principal para uma vida inteira.
FIGURA 4: Como os doze elos são ensinados no Rice
Seedling Sutra[21]
(Sutra do Broto de Arroz)
1 ignorância
Vida A 2 ação composicional causas projetoras
3 consciência
a. consciência causal
b. consciência resultante
4 nome e forma
5 esferas dos sentidos
6 contato
Vida B 7 sensação efeitos
projetados
8
desejo
9
apego causas
de concretização
10
existência
Vida C 11
nascimento efeitos
concretizados
12 envelhecimento e morte
Vida A prece Vida B em qualquer época, e Vida
B precede Vida C sem nenhum intervalo.
A
consciência resultante e os elos de quatro a dez – de nome e forma até
existência – ocorrem nesta vida; são chamados de “efeitos projetados”[22] porque
constituem a vida estabelecida pelas causas projetoras. A criação de uma vida
específica decorre do carma, e a ignorância sustenta todo o processo. Sendo
este o caso, o caminho para melhorar as vidas na existência cíclica é aprender
sobre as relações entre as ações e seus efeitos, de modo que possamos criar
situações mais produtivas. O caminho para conquistar a liberação é desenvolver
a sabedoria que percebe o real status dos fenômenos, de modo que as emoções
aflitivas que dirigem a existência cíclica não possam ser desencadeadas.
Os doze
elos, considerados em ordem, produzem três vidas. Na vida A, uma ocasião
específica de ignorância motiva uma ação que estabelece uma predisposição na
consciência; essa consciência é a consciência causal. Isto produz a nova vida,
a vida B, que consiste da consciência resultante, nome e forma (ou seja, mente
e corpo), esferas dos sentidos (o desenvolvimento dos órgãos dos sentidos),
contato, sensação, desejo, apego e existência. A existência é o momento final
da vida B, quando uma predisposição estabelecida anteriormente na consciência
atingiu a maturidade e é inteiramente capaz de produzir um próximo nascimento,
a vida C, que compreende nascimento, envelhecimento e morte. Os dois primeiros
elos e a metade inicial do terceiro são chamados de causas projetoras. Eles impulsionam uma vida; a predisposição
estabelecida pela ação original motivada pela ignorância dá o impulso. O que é
projetado são os quatro elos e meio seguintes, chamados de efeitos projetados. Os três elos seguintes são chamados de causas de concretização. Eles alimentam
outra predisposição até o ponto em que outra vida, indicada pelos dois últimos
elos – chamados de efeitos concretizados
–, surgirá.
Nome e Forma
A figura seguinte
é de uma pessoa num barco, o que simboliza “nome e forma”. Nome refere-se à consciência mental e aos fatores mentais que a
acompanham, e forma refere-se ao
corpo – ambos estão localizados no ponto do renascimento, a concepção. No
instante da concepção, a forma é o óvulo da mãe e o esperma do pai, descritos
nos textos budistas como o sangue da mãe e o sêmen do pai. A esta altura o
corpo é extremamente pequeno, como um pedacinho de gelatina pouco consistente.
Depois começa a se expandir e transformar numa substância parecida com iogurte;
continua a se expandir, forma os rudimentos de uma cabeça e desenvolve
protuberâncias que se transformam nos membros. Estamos acostumados com nosso
corpo atual e parece que seremos sempre como somos, mas em pouco tempo teremos
outra vez esse tipo de corpo mole e aquoso. Além disso, tivemos um corpo desses não faz muito tempo, mas somos incapazes de lembrar.
Seis Esferas dos Sentidos
A figura
seguinte, uma casa vazia com seis janelas, simboliza as seis esferas internas
dos sentidos – olho, ouvido, nariz, língua, corpo e “faculdades sensoriais”
mentais, que abrem o caminho para a produção de seis consciências, dando a elas
poder sobre seus respectivos objetos. Aqui, o termo refere-se basicamente aos
diferentes momentos da conclusão inicial das esferas internas dos sentidos no
útero; elas não atingem o pleno desenvolvimento ao mesmo tempo. Os sentidos
desenvolvem-se ao longo do crescimento do corpo no útero da mãe. Em determinado
momento, desenvolve-se o tato; em outros momentos desenvolvem-se o paladar,
olfato, audição e visão.
Em geral
existem doze esferas de sentidos – seis internas e seis externas, que são as
seis faculdades sensoriais e os seis tipos de objetos.
FIGURA 5: As Doze Esferas dos Sentidos
Seis
Faculdades Sensoriais Seis
Objetos
1 faculdade sensorial do olho formas
visíveis (cores e formatos)
2 faculdade sensorial do ouvido sons
3 faculdade sensorial do nariz odores
4 faculdade sensorial da língua sabores
5 faculdade sensorial do corpo toques
6 faculdade sensorial mental outros
fenômenos
Aqui nos
doze elos, é feita referência apenas às seis esferas internas e seu
desenvolvimento em seqüência no útero, visto que os seis objetos estão sempre
presentes. As esferas internas dos sentidos não são os órgãos grosseiros em si,
mas a matéria sutil dentro deles. Por exemplo: o paladar não é apenas a língua,
mas a matéria sutil na língua que permite sentir gostos, visto que existem
pessoas com língua que não têm paladar, e outras com olhos que não podem ver.
Assim, existe matéria sutil no olho e nos outros órgãos dos sentidos, o que,
após a maturação, nos permite ver, ouvir, cheirar, ter paladar e tato. Ao longo
do desenvolvimento de cada um deles existem sensações no útero. A criança se
movimenta e dá chutes, e, se ela está experimentando
dor, a mãe freqüentemente sabe.
Contato
O elo
seguinte, “contato”, é representado por um homem e uma mulher se tocando ou
beijando. A grosso modo, a figura simboliza a junção de um objeto, um órgão
sensorial e um momento de consciência. Por conseguinte, nos doze elos, contato
refere-se ao contato com um objeto dos sentidos e a subseqüente discriminação
do objeto como atrativo, não-atrativo ou neutro. Objetos dos sentidos estão
sempre presentes, e desse modo, quando um órgão sensorial – a matéria sutil que
permite ver, ouvir, e assim por diante – se desenvolve, será produzida uma
consciência de olho, consciência de ouvido, consciência de nariz, consciência
de língua ou consciência de corpo.
Existem
três fatores que causam consciência:
1 Um momento anterior de consciência converte
uma consciência sensorial – do olho, por exemplo – em uma entidade empírica.
Isto é chamado de “condição imediatamente precedente”[23].
2 A faculdade sensorial dos olhos permite à consciência
de olho experimentar e conhecer cor e formato. Uma pessoa pode ter consciência,
mas, sem o funcionamento do olho, não consegue ver cor e formato. A faculdade
sensorial é chamada de “condição dominante”[24].
3 O objeto não produz por si mesmo a entidade
empírica, mas afeta a consciência e, neste sentido, é causa de consciência. Sem
um fragmento de azul apresentado à sua consciência de olho, ele não veria o
azul. Assim, uma consciência de olho percebe um objeto particular através da
função do objeto como uma causa de consciência do olho; o objeto é chamado de
“condição de objeto observado”[25].
Nem mesmo
o órgão do sentido pode atuar como causa substancial[26] da
mente. Ele afeta a mente em muito, mas a entidade
empírica depende de uma entidade empírica anterior. Quanto um meditante olha
para dentro de sua mente e sente seu continuum, desenvolve uma forte percepção
de que a mente vem da mente, não da matéria.
A mente
também não vem de um ser eterno; o eterno é permanente e não pode agir. Além do
mais, a mente não vem do nada, porque o nada não pode fazer coisa nenhuma. A
mente vem da mente. A mente atual vem de um continuum anterior da mente; mesmo
quando estamos em sono profundo ou desmaiados, ainda existe uma consciência
sutil operando.
Embora a
mente venha da mente, há um longo período no útero em que não existe
consciência de olho porque a faculdade sensorial do olho ainda não se
desenvolveu. O primeiro momento de consciência do olho nesta vida não pode vir
do último momento de consciência da última vida visto que, antes mesmo da pessoa morrer, a consciência de olho havia cessado. Além
do mais, a consciência de ouvido, a consciência de nariz, a consciência de
língua e a consciência de corpo haviam desaparecido, mas a pessoa ainda estava
viva. A respiração externa havia cessado, mas a respiração interna ainda não.
Um certo
iogue que faleceu durante uma de minhas viagens à Índia teria sido declarado
morto se tivesse morrido nos Estados Unidos; contudo, ele permaneceu na mente
de clara luz por treze dias, continuando quente no centro do coração – o centro
da consciência – naqueles treze dias. Depois, um pouco de sangue ou muco saiu
de seu nariz e ouvidos, e a posição de seu corpo mudou. Para pessoas comuns que
morrem sem doenças devastadoras, diz-se que o período de clara luz é de três
dias. Entretanto, nos Estados Unidos as pessoas são removidas para a casa
funerária antes de terem morrido inteiramente (segundo a visão budista). Diz-se
que ser movido neste período é nocivo para um iogue, que pode permanecer mais
tempo na clara luz, mas diz-se que para pessoas comuns não faz muita diferença
porque suas mentes estão descontroladas.
Após o fim
da vida anterior de uma pessoa, a consciência mental viaja no estado
intermediário; então alcança renascimento no útero materno, e, depois que o
órgão sensorial da visão se desenvolve, age como o momento anterior da primeira
consciência de olho. Assim, a entidade empírica de qualquer consciência vem de
um momento de consciência anterior.
De onde
vem o primeiro momento da consciência mental desta vida? Vem da consciência
mental do estado intermediário. De onde vem isso? Vem da mente da morte. Com
aquela mente da morte viajam todas as potências que foram acumuladas em vidas
passadas. Esta mente profunda é um repositório de tudo que fizemos. Ela carrega
aquelas potências até que sejam ativadas; é a base de todas as predisposições
depositadas por nossas ações – nada se perde.
Sensação
O sétimo
elo, sensação, é representado como uma flecha ou vara no olho, uma dramática
ilustração da centralidade das sensações em nosso cotidiano. A intensidade
indica como o prazer e a dor controlam nossas atividades. Enquanto eu estava
num monastério tibetano e mongol em New Jersey, em meados dos anos 60, um
professor de filosofia fez uma visita com um pequeno grupo de alunos. Ele
perguntou ao abade: “No que você acha que os estudantes estão mais
interessados, sexo ou filosofia?” O lama pensou por um momento e respondeu:
“Sexo.”
Conforme
foi dito acima, durante o desenvolvimento do feto, desenvolvemos gradualmente a
impressão, através do contato, de que os objetos são atrativos, não-atrativos
ou neutros. A partir destas discriminações, surgem sensações de prazer, dor ou
neutralidade à medida que as esferas internas e individuais de sentidos se
desenvolvem. Aqui nos doze elos do surgimento dependente, “sensação” vai dos
primeiros momentos de sensações prazerosas, dolorosas e neutras no útero até o
desenvolvimento da capacidade para o orgasmo, mas refere-se também aos períodos
de sensação ao longo da vida que servem como objetos do elo seguinte.
Desejo
O desejo é
simbolizado por um grupo de pessoas se divertindo. Esta imagem refere-se ao
nosso desejo de nos agarrarmos ao prazer e nos afastarmos da dor, e nosso
desejo de que a sensação neutra não diminua. Embora tenhamos desejos mesmo
dentro do útero, a ênfase nos doze elos é sobre os atos de desejo específicos
que alimentam a potência cármica que irá produzir a próxima vida. Por exemplo:
talvez você pense freqüentemente que gostaria de ser um certo tipo de cachorro,
gato ou pássaro; este desejo ativa predisposições para
este tipo de renascimento. (Também fico pensando se uma antipatia especialmente
forte por uma pessoa ou grupo pode fazer alguém renascer semelhante àquela
pessoa ou naquele grupo; pode-se por exemplo imaginar uma situação em que
alguém renasce no país de seus inimigos de uma vida passada e até mesmo
desenvolve aversão pelos antigos compatriotas por causa do desejo envolvido na
discriminação excessiva.)
Apego
A imagem
representando o nono elo, o apego, mostra um macaco tentando agarrar uma fruta
numa árvore. Apego é um aumento do desejo e inclui tenaz ligação a formas,
sons, odores, sabores e toques prazerosos, bem como a pontos
de vista incorretos e formas de comportamento ligadas a esses pontos de vista.
É
possível, em qualquer momento da vida de alguém, ter desejo e apego que sirva
para potencializar um carma do passado, mas perto do fim da vida estes dois
elos são especialmente influentes na configuração da próxima vida. Por este
motivo é dito que nossa atitude perto da hora da morte é muito importante. Se
você está deitado na cama, e todos à sua volta estão se lamentando e chorando,
ou se, quando vêm para lhe cumprimentar, inclinam-se para lhe beijar com
lágrimas nos olhos, você pode desenvolver um forte desejo, querendo agarrar-se
a uma situação à qual não pode ficar agarrado. Como seria melhor se as pessoas
fossem honestas e dissessem: “Você vai morrer. Queríamos vir aqui e lhe dizer
adeus. Não importa quão próximos tenhamos sido, as vidas se passam como em
pontos de ônibus; encontramos as pessoas por um tempo, mas não podemos ficar
com elas para sempre, e agora vamos nos separar. Eu queria dizer adeus. Tudo de
bom para você.” Se uma pessoa pudesse aceitar isso, que maravilha! Do
contrário, o moribundo desenvolve um tremendo desejo de ficar onde não pode, e
isto pode resultar num renascimento como fantasma faminto.
Enquanto
estamos morrendo, podemos pensar: “Gostaria de nascer como um grande general”;
“Gostaria de nascer como cantor de ópera”; “Gostaria de nascer como um monge”;
“Gostaria de nascer como alguém capaz de ajudar os outros seres sencientes.” Os
dois últimos são magníficos!
Existência
“Existência”
refere-se a uma potência cármica inteiramente ativada, pronta para dar origem à
próxima vida. Isto ocorre no último momento da vida atual. É representada por
um casal mantendo relação sexual ou por uma mulher grávida, simbolizando que o
carma nutrido pelo desejo e pelo apego está inteiramente potencializado e
pronto para produzir a próxima vida.
Existência,
o décimo elo, é a potência cármica inteiramente potencializada no último
momento de uma pessoa e que irá produzir mais uma vida. A causa, a potência,
recebe o nome do efeito – a existência da nova vida; o efeito é a existência da
nova vida; e a potência inteiramente nutrida – a causa – recebe o nome de
“existência”.
Nascimento
A nova
vida é chamada de “nascimento”, o décimo-primeiro elo. A ilustração mostra uma
mulher dando à luz, embora o décimo-primeiro elo refira-se ao momento da
concepção, e não ao da saída do útero.
Envelhecimento e Morte
O último
elo, envelhecimento e morte, é simbolizado por adultos carregando fardos. Um
tipo de envelhecimento começa no momento da concepção, e o outro começa com a
deterioração física.
A Implicação
Estes são
os doze elos de causa e efeito numa representação pictórica. Com o galo, a
cobra e o porco no centro, o quadro indica graficamente que desejo, aversão e ignorância
estão no âmago do processo – sendo a ignorância a raiz do problema. Este trio
leva a ações favoráveis e desfavoráveis. Estas ações favoráveis e
desfavoráveis, por sua vez, levam ao nascimento nos seis reinos da existência
cíclica. O processo pelo qual isso acontece é os doze elos do surgimento
dependente, que, de acordo com este sistema de explicação, ocorre em três
vidas: os dois elos e meio iniciais, numa vida passada; a segunda metade do
terceiro elo mais os sete elos seguintes, na vida atual; e os dois últimos na
vida imediatamente seguinte.
O processo
torna-se mais complexo à medida que se entra em detalhes. Como nesta vida o
desejo e o apego (oitavo e nono elos) nutrem uma potência cármica para produzir
a vida seguinte, então na vida imediatamente anterior a esta um outro conjunto
de desejo e apego – não indicado explicitamente nos doze elos – nutriu uma
potência estabelecida por uma ação (segundo elo) que foi motivada pela
ignorância (primeiro elo) e depositada na consciência causal (a primeira metade
do terceiro elo). Esta potência foi realizada na vida atual, e, durante a vida
atual, outra potência estabelecida por uma ação motivada pela ignorância está
sendo realizada, para mais tarde se transformar na próxima vida.
No
presente nos enredamos na ignorância; com base nesta ignorância praticamos
ações; com base nestas ações estabelecemos potências em nossa consciência –
consciência causal. Começamos muitas ações completas, que formarão caminhos
para outras transmigrações boas e ruins. Assim, enquanto uma volta dos doze
elos está terminando, outras estão começando. Uma potência estabelecida nesta
vida de agora pode levar à vida seguinte ou a uma vida daqui a quatrocentos
éons, ao passo que a potência que levou a esta vida pode ter vindo de uma ação
de trinta mil anos atrás. Em nossa próxima vida, nos enredaremos em ainda mais
ignorância.
Esta
seqüência de doze elos é definida para uma vida específica, mas diferentes
voltas do surgimento dependente ocorrem simultaneamente. Se você fragmenta as
séries em três grupos e faz a pergunta geral: “Qual destes grupos veio
primeiro?”, é certo que, em relação a uma determinada vida, a ignorância veio
primeiro, a ação em segundo e a consciência causal em terceiro lugar. Mas, a
respeito destes três grupos, quando você está na vida que começa explicitamente
em nome e forma, também está se envolvendo em ignorância e também está
experimentando nascimento, envelhecimento e morte. Durante a vida anterior,
enquanto você se envolvia na ignorância que motivou a ação que conduziu à vida
atual, você também estava experimentando o nascimento, envelhecimento e morte –
bem como nome e forma, e assim por diante – de outra volta dos doze elos.
A
motivação para a presente vida veio de um ato impulsionado pela ignorância em
uma vida passada; esta ação é chamada de causa “projetora” ou “impulsora”.
Ignorância, ação e consciência causal – ação, especificamente – dirigem a vida.
Elas estabeleceram as linhas gerais da presente vida – quer
tenhamos nascido como um ser humano, ou em outra
transmigração. Então muitas outras ações, chamadas de ações de preenchimento, completaram o quadro – quer sejamos homem ou mulher,
atraentes ou não-atraentes, nascidos numa família pobre ou rica,
independentemente de quanto viveremos e assim por diante. Não se pode dizer que
tudo é predeterminado, mas somos atraídos para uma situação específica.
Quando
vemos que, basicamente, uma ação conduz a esta vida e que, durante esta vida,
nos envolvemos em uma grande variedade de ações baseadas na ignorância, percebemos
que estamos estabelecendo potências para um grande número de vidas. Se queremos
pôr fim a este processo, o ponto fraco é o desejo, visto que, mesmo que
tenhamos bilhões de potências para termos bilhões de renascimentos, se estas
potências permanecerem desnutridas e desativadas, não teremos renascimento.
Seria como ter uma sala cheia de sementes de arroz e não plantá-las. Se
conseguimos parar o desejo e o apego, podemos parar o processo de renascimento.
Não importa quantas potências tenhamos, não nasceremos mais na existência
cíclica, estaremos libertos.
Para
tornar o desejo impossível, temos que superar a ignorância que é sua raiz. É
através de nosso desconhecimento sobre o verdadeiro status dos fenômenos e
através da concepção de seu oposto que o desejo é possível. Budistas não apenas
suprimem o desejo (embora isto seja necessário muitas vezes, e existam práticas
criadas para isto), mas entendem uma coisa que enfraquece o desejo. Em vez de
serem suprimidos, desejo e aversão tornam-se impossíveis. Existe algo que
podemos saber que tornará o desejo inoperante. A base do desejo e da aversão é
infundada; repousa na vacilante fundação da ignorância.
De onde
vem a ignorância? Vem da ignorância anterior. Não podemos determinar um começo
no tempo, mas podemos selecionar uma vida, determinar suas causas principais e
falar de seu começo em ignorância. Nagarjuna esclarece isto em sua Precious Garland (Guirlanda Preciosa),
onde apresenta os doze elos do surgimento dependente em três grupos –
ignorância, ação e produção de sofrimento –, que são chamados de três aflições
completas:
Enquanto
os agregados são concebidos,
Existe a
concepção do eu.
Quando
existe a concepção do eu,
Existe
ação, e, a partir disso, existe também nascimento.[27]
Enquanto
os agregados mentais e físicos são erroneamente concebidos como existindo de
forma inerente, o eu também é erroneamente concebido como tendo o mesmo status,
em conseqüência do que existe o carma; do carma ocorre o nascimento.
Reafirmando: a concepção de que os agregados mentais e físicos existem
inerentemente serve de base para a concepção equivocada de que o eu existe inerentemente; esta
última conduz a ações virtuosas e não-virtuosas contaminadas, as quais induzem
o nascimento.
FIGURA
SEIS: As Três Aflições Completas
1 Ignorância
2 Ação
3 Produção
de sofrimento
Entre os
doze elos do surgimento dependente, ignorância, desejo e apego são agrupados
como a primeira das três aflições – ignorância. Uma ação estabelece uma
predisposição dentro da consciência, e, quando esta predisposição fica pronta
para produzir uma vida, é chamada de existência. Assim, estes dois elos – ação
e existência – são chamados pelo nome da segunda das três aflições completas –
ação. Nagarjuna chama os sete elos – de consciência resultante (neste sistema a
consciência causal é omitida) até envelhecimento e morte – de produção de
sofrimento.
Nagarjuna
diz que os três grupos causam uns aos outros, manifestando-se como o rodopiar
de um tição.
Com estas
três sendas causando umas as outras,
Sem um
começo, um meio, ou um fim,
Esta roda
da existência cíclica
Rodopia
como o girar de um tição.[28]
Se você
põe fogo na ponta de um pedaço de pau e o gira rapidamente à noite, quem olhar
à distância verá uma roda de fogo. O movimento dos três fatores é visto de
forma similar como existência cíclica. Numa seqüência, a ignorância dá origem à
ação, e a ação dá origem ao sofrimento, mas eles dão origem uns aos outros. Por
exemplo: o sofrimento também causa ignorância; respondemos ao sofrimento de
modo ignorante; assim, neste sentido, sofrimento é causa de ignorância, que
causa uma ação. A ação causa ignorância porque, através das ações, tende-se a
acumular mais percepções equivocadas, o que produzirá ainda mais ignorância no
futuro.
Quando
consideramos o processo da existência cíclica, vemos que somos arrastados para
situações boas e ruins, arrastados repetidamente para o sofrimento, que somos
maltratados e machucados. Quanto choramos numa vida? Se as lágrimas de uma vida
fossem acumuladas em um local, de que tamanho seria o recipiente de que
necessitaríamos? Ao longo de muitas vidas choramos um oceano de lágrimas. Se
amontoássemos os esqueletos usados por uma pessoa, teríamos uma montanha tão
grande quanto o Monte Everest. Esta é a condição dos seres sencientes.
Para um
budista, o tempo não é definido por datas e locais de nascimento e morte. Como
budista, você não pode dizer que haja qualquer lugar no mundo em que não tenha
nascido. Você não pode dizer: “Estas são pessoas que nunca
conheci.” Você não pode dizer: “Não vivi naquela época.” Embora possa
não lembrar, você sente que esteve presente por todo o tempo e espaço.
A condição
da vida não é de que tenhamos apenas uma vida confinada por este período de
tempo, confinada por este espaço. Nos encontramos muitas vezes; passamos por
muitos relacionamentos diferentes. Não se dá valor apenas à existência
temporária. Através de meditação sobre o surgimento dependente, geramos
entendimento a respeito de nosso próprio lugar na existência cíclica. Uma vez
que tenhamos entendido nosso lugar, podemos ampliar este entendimento para os
outros e, desse modo, vir a sentir compaixão profunda.
AS
PALESTRAS DO DALAI LAMA
Na
primavera de 1984, Sua Santidade, o Dalai Lama, prêmio Nobel da Paz de 1989,
falou sobre o surgimento dependente numa série de palestras no Camden Hall, em
Londres. Em cinco sessões ao longo de três dias, ele apresentou a essência da
visão budista de mundo: como o budismo vê a posição dos seres no mundo e como
isto pode tornar suas vidas significativas. A mente inata e fundamental, a
mente de clara luz, foi o tema subjacente das cinco palestras e foco da última.
O Dalai Lama descreve o obscurecimento desta mente basicamente pura e mais
profunda, e sua manifestação na sabedoria que percebe a vacuidade da existência
inerente através da implementação de técnicas tântricas. Com efeito, a mente de
clara luz se irradia por toda sua apresentação do penoso processo da existência
cíclica e também compõe a tela de fundo na qual o processo é abordado em grande
detalhe.
O modo
como o surgimento dependente se desenrola no âmago de nossa vida cotidiana é
mostrado nas respostas do Dalai Lama a uma miríade de perguntas da platéia. Ele
entra em pormenores de temas técnicos abordados durante as palestras e pondera
sobre muitos dos difíceis problemas que enfrentamos em nossas vidas: como lidar
com a agressão interna e externa; como conciliar responsabilidade pessoal com a
doutrina da ausência de eu; como tratar a perda de
confiança em um guru ou lama; como enfrentar uma doença terminal; como ajudar
alguém que está morrendo; como conciliar o amor pela família com o amor por
todos os seres; e como integrar a prática à vida diária. O Dalai Lama discorre
sobre estes e outros temas com integridade inspiradora.
Sua
inteligência, sagacidade e bondade permeiam as palestras. Sua ênfase em
soluções pacíficas para problemas pessoais, familiares, nacionais e
internacionais constitui um argumento gentil mas enérgico contra eleger como
meta de vida o devotamento a um sistema específico. Ele deixa claro que sistemas
teóricos devem ser usados para servir aos seres, e não o contrário. Ele exorta
seus ouvintes a usarem a ideologia em favor do aperfeiçoamento.
Eu servi
de intérprete nestas palestras e as retraduzi para este livro numa tentativa de
capturar os detalhes e nuances muitas vezes perdidos sob a pressão da tradução
simultânea. Quero agradecer a Geshe Yeshi Thabkhe, do Central
Institute of Higher Tibetan Studies, em Sarnath, Índia, e a Joshua
Cutler, do Tibetan Buddhist Learning Center, em Washington, New Jersey, pelo
auxílio com as estrofes citadas na primeira palestra. Também quero expressar
minha gratidão a Steven Weinberger e David Need por terem lido todo o
manuscrito e feito muitas sugestões úteis.
Jeffrey Hopkins
Universidade da Virgínia
Nota técnica
Os nomes
de autores e ordens tibetanos são apresentados num “ensaio fonético”, para
facilitar a pronunciação; para uma discussão sobre o sistema usado, ver a nota
técnica na abertura de Meditation on
Emptiness, de minha autoria (Londres: Wisdom Publications, 1983), pags.
19-22. A transliteração de tibetano nas notas e no glossário foi feita de
acordo com o sistema planejado por Turrell V. Wylie; ver “A Standard System of
Tibetan Transcription”, Harvard Journal
of Asiatic Studies 22 (1959): 261-67. Para os nomes de eruditos e sistemas
indianos usados no corpo do texto, ch,
sh e sh são usados em vez dos mais comuns c, s e s, para facilitar a pronunciação por
não-especialistas.
Uma lista
de termos técnicos em português, sânscrito e tibetano é apresentada no glossário,
no fim do livro.
1 – A Visão Budista de Mundo
Primeiro, deixem-me
falar aos praticantes budistas na platéia sobre a motivação correta para ouvir
palestras sobre religião. Uma boa motivação é importante. A razão pela qual
estamos discutindo estes assuntos certamente não é dinheiro, fama ou qualquer
outro aspecto de nosso sustento nesta vida. Existem muitas atividades que podem
proporcionar isto. A principal razão para virmos aqui provém de uma preocupação
a longo prazo.
É fato que todo mundo
quer felicidade e não quer sofrimento; isso não se discute. Mas há discordância
sobre como alcançar a felicidade e superar os problemas. Existem muitos tipos
de felicidade, e muitas formas de alcançá-las, e também existem muitos tipos de
sofrimento, e muitas formas de superá-los. Como budistas, entretanto, almejamos
não apenas alívio e benefício temporários, mas resultados de longo prazo. Os
budistas estão interessados não apenas nesta vida, mas em vida após vida,
repetidamente. Não contamos semanas, meses ou mesmo anos, mas vidas e éons.
O dinheiro tem sua
utilidade, mas é limitada. Entre os poderes e posses mundanos, sem dúvida
existem coisas boas, mas elas são limitadas. Entretanto, de um ponto de vista
budista, o desenvolvimento mental continuará de vida para vida, porque a
natureza da mente é tal que, se certas qualidades mentais são desenvolvidas em
uma base sólida, elas sempre permanecem – e não apenas isso: elas podem
crescer. De fato, uma vez desenvolvidas de modo correto, as boas qualidades da
mente crescem posteriormente de forma infinita. Portanto, a prática espiritual
traz tanto felicidade a longo prazo como mais força
interior dia após dia.
Assim, mantenham sua
mente nos tópicos em discussão; escutem com uma motivação pura – sem dormir!
Minha motivação principal é uma ternura sincera pelos outros e o interesse pelo
bem-estar de todos.
COMPORTAMENTO E VISÃO
A meditação é necessária
no desenvolvimento de qualidades mentais. A mente é algo que indiscutivelmente
pode ser transformado, e a meditação é um meio para transformá-la. Meditação é
a atividade de familiarizar sua mente com algo novo. Basicamente, significa
acostumar-se com o objeto sobre o qual você está meditando.
Existem dois tipos de
meditação – analítica e estabilizadora. Primeiro um objeto é analisado; depois
disso, durante a meditação estabilizadora, a mente é mantida unidirecionalmente
no mesmo objeto. Existem duas categorias dentro da meditação analítica:
1 alguma coisa,
como a impermanência, é tomada como objeto da mente e medita-se sobre ela;
2 uma
atitude mental, como o amor, é cultivada ao longo da meditação; neste caso, a
mente converte-se à natureza daquela atitude mental.
Para entender o
propósito da meditação, é útil dividir as práticas espirituais em visão e
comportamento. O fator principal é o comportamento, porque é isto que decide a
própria felicidade e a dos outros no futuro. A fim de que o comportamento seja
puro e completo, é necessário ter uma visão correta. O comportamento deve ser
bem fundamentado na razão; por conseguinte, é necessária uma correta visão
filosófica.
Qual é a
principal meta do budismo a respeito de comportamento? É domar o seu próprio
continuum mental – tornar-se não-violento. No budismo, os veículos, ou modos de
prática, são geralmente divididos em Grande Veículo e Veículo do Ouvinte. O
Grande Veículo está interessado basicamente na compaixão altruística de ajudar
os outros, e o Veículo do Ouvinte está interessado basicamente em não
prejudicar os outros. Deste modo, a raiz de todo o ensinamento budista é a
compaixão. A excelente doutrina do Buda tem sua raiz na compaixão, e dizem até
que o Buda que ensina estas doutrinas nasceu da compaixão. A maior qualidade de
um buda é a grande compaixão; esta atitude de sustentar e ajudar os outros é a
razão pela qual é conveniente tomar refúgio num buda.
A Sangha, ou comunidade virtuosa, consiste daqueles que, praticando a
doutrina corretamente, ajudam os outros a obter refúgio. As pessoas da Sangha
têm quatro qualidades especiais: se alguém lhes faz mal, elas não respondem com
mal; se alguém demonstra raiva contra elas, elas não reagem com raiva; se
alguém as insulta, elas não respondem com insulto; e se alguém as acusa, elas
não revidam. Este é o comportamento de um monge ou freira, e a raiz é a
compaixão; assim, as principais qualidades da comunidade espiritual também
originam-se da compaixão. Neste sentido, os três refúgios de um budista – o
Buda, a doutrina e a comunidade espiritual – têm suas raízes na compaixão.
Todas as religiões são iguais ao terem poderosos sistemas de bons conselhos a
respeito da prática de compaixão. O comportamento básico de não-violência,
motivado pela compaixão, é necessário não somente em nosso dia-a-dia, mas
também de nação para nação, ao redor de todo o mundo.
O surgimento dependente
é a filosofia geral de todos os sistemas budistas, muito embora sejam
encontradas várias interpretações diferentes entre esses sistemas. Em
sânscrito, a palavra para surgimento dependente é pratityasamutpada. A palavra pratitya
tem três significados diferentes – reunir-se, contar com algo e depender –, mas
todos os três, em termos de significado básico, expressam dependência. Samutpada significa surgimento.
Portanto, o significado de pratityasamutpada
é surgir na dependência de condições, contando com as condições, pela força das
condições. Num nível sutil, isto é explicado como a principal razão pela qual
os fenômenos são vazios de existência inerente.
A fim de refletir sobre
o fato de que as coisas – os temas sobre os quais um
meditante reflete – são vazios de existência inerente porque surgem de
forma dependente, é necessário identificar os sujeitos desta reflexão: os
fenômenos que produzem prazer e dor, ajuda e dano, e assim por diante. Se não
se entende direito a causa e o efeito, é extremamente difícil perceber que
estes fenômenos são vazios de existência inerente por surgirem de modo
dependente. Deve-se desenvolver um entendimento de causa e efeito – de que
certas causas ajudam ou prejudicam de determinadas maneiras. Por isso o Buda
descreveu o surgimento dependente em conexão com a causa e o efeito das ações
no processo da vida na existência cíclica, de modo que o entendimento
penetrante do processo de causa e efeito pudesse ser alcançado.
Assim, existe um nível
do surgimento dependente preocupado com a causalidade, neste caso os doze
ramos, ou elos, do surgimento dependente da vida na existência cíclica:
ignorância, consciência de ação, nome e forma, as seis esferas dos sentidos,
contato, sensação, desejo, apego, existência, nascimento, e envelhecimento e
morte. Depois existe um segundo nível mais profundo do surgimento dependente
que se aplica a todos os objetos: é o estabelecimento dos fenômenos na
dependência de suas partes. Não existe fenômeno que não tenha partes, e, assim,
a cada fenômeno é atribuída dependência em relação a suas partes.
Existe um
terceiro nível ainda mais profundo, que é o fato de os fenômenos serem
meramente designados por termos e conceitualidade na dependência de suas bases
de designação. Quando os objetos são procurados entre suas bases de designação,
não se acha nada que possa ser designado como o objeto em si, e, desta forma,
os fenômenos são meramente surgidos em dependência – meramente designados na
dependência de suas bases de designação. Enquanto o primeiro nível do
surgimento dependente refere-se ao surgimento de fenômenos compostos na
dependência de causas e condições e, portanto, aplica-se apenas a fenômenos
impermanentes, causados, os outros dois níveis aplicam-se tanto a fenômenos
permanentes quanto impermanentes.
Quando o Buda descreveu
os doze elos do surgimento dependente, falou a partir de uma perspectiva ampla
e de grande importância. Ele ensinou os doze elos em detalhe no Rice Seedling Sutra[29]
(Sutra do Broto de Arroz). Como em outros discursos, o Buda ensina através
de respostas a perguntas. Neste sutra, o Buda fala do surgimento dependente de
três maneiras:
1 Devido à existência disto, surge aquilo.
2 Devido à produção disto, é produzido aquilo.
3 É assim: devido à ignorância, existe ação composicional;
devido à ação composicional, existe consciência; devido à consciência, existe
nome e forma; devido a nome e forma, existem as seis esferas dos sentidos;
devido às seis esferas dos sentidos, existe contato; devido ao contato, existe
sensação; devido à sensação, existe desejo; devido ao desejo, existe apego;
devido ao apego, existe o nível potencializado de carma chamado de
“existência”; devido à existência existe o nascimento; devido ao nascimento,
existe envelhecimento e morte.
Quando o Buda diz:
“Devido à existência disto, surge aquilo”, ele indica que o fenômeno da existência
cíclica surge não pela influência ou supervisão de uma deidade permanente, mas
devido a condições específicas. Meramente devido à presença de certas causas e
condições, surgem efeitos específicos.
Quando o Buda diz:
“Devido à produção disto, é produzido aquilo”, ele indica que fenômenos
não-produzidos, permanentes, como a natureza geral[30]
proposta pelo sistema Samkhya[31] não
pode criar efeitos. Pelo contrário, os fenômenos surgem de condições que são
impermanentes por natureza.
Então surge a pergunta:
se os fenômenos da existência cíclica são produzidos a partir de condições
impermanentes, poderiam ser produzidos de quaisquer condições impermanentes?
Não. Assim, na terceira fase, o Buda indica que os fenômenos da existência
cíclica não são produzidos a partir de quaisquer causas e condições
impermanentes, mas mais exatamente de coisas específicas, que têm o potencial
para dar surgimento a fenômenos específicos.
Descrevendo o surgimento
dependente do sofrimento, o Buda mostra que o sofrimento tem a ignorância –
obscurecimento – como causa raiz. Esta semente impura e defeituosa produz uma
atividade que deposita na mente uma potência que irá gerar sofrimento ao
produzir uma nova vida na existência cíclica. Como fruto, ela tem ao final o
último elo do surgimento dependente, o sofrimento do envelhecimento e morte.
A respeito dos doze elos
do surgimento dependente, existem basicamente dois modos de explicação, um em
termos de fenômenos inteiramente aflitivos e outro em termos de fenômenos
puros. No ensinamento básico do Buda sobre as quatro nobres verdades[32],
existem dois conjuntos de causa e efeito: um conjunto para a categoria aflitiva
de fenômenos e outro para a categoria pura. Desta maneira, aqui nos doze elos
do surgimento dependente existem procedimentos tanto em termos de fenômenos
aflitivos quanto de fenômenos puros. Entre as quatro nobres verdades, os
sofrimentos verdadeiros – a primeira verdade – são os efeitos na categoria
aflitiva de fenômenos, e as fontes verdadeiras – a segunda verdade – são suas
causas. Na categoria de fenômenos puros, as cessações verdadeiras – a terceira
verdade – são efeitos na classe pura, e os caminhos verdadeiros – a quarta
verdade – são suas causas. Similarmente, quando se explica nos doze elos do
surgimento dependente que a ação e tudo o mais são produzidos devido à condição de ignorância, a explicação é em
termos de procedimento aflitivo; quando se explica que a ação e todo o resto cessam devido ao cessar da ignorância, é em termos de procedimento da classe
pura. O primeiro é o procedimento da produção de sofrimento, e o segundo é o
procedimento da cessação do sofrimento.
Os doze elos do
surgimento dependente são, portanto, expostos em termos de um processo de
aflição e em termos de um processo de purificação, e cada um destes é
apresentado em ordem direta e inversa. Assim, no processo direto é explicado que:
devido à condição de ignorância, surge a ação;
devido à condição de ação, surge a consciência;
devido à condição de consciência, surgem nome e forma;
devido à condição de nome e forma, surgem as seis esferas dos
sentidos;
devido à condição das seis esferas dos sentidos, surge o
contato;
devido à condição de contato, surge a sensação;
devido à condição de sensação, surge o desejo;
devido à condição de desejo, surge o apego;
devido à condição de apego, surge o nível potencializado de
carma chamado de existência;
devido à condição de existência, surge o nascimento;
devido à condição de nascimento, surgem o envelhecimento e a
morte.
Porque este modo descreve
como o sofrimento é produzido, é uma explicação das fontes[33] que
produzem sofrimento. Na ordem inversa explica-se que:
os sofrimentos indesejados do envelhecimento e morte são
produzidos na dependência do nascimento;
o nascimento é produzido na dependência do nível
potencializado de ação chamado de “existência”;
a existência é produzida na dependência do apego;
o apego é produzido na dependência do desejo;
o desejo é produzido na dependência da sensação;
a sensação é produzida na dependência do contato;
o contato é produzido na dependência das seis esferas dos
sentidos;
as seis esferas dos sentidos são produzidas na dependência
de nome e forma;
nome e forma são produzidos na dependência da consciência;
a consciência é produzida na dependência da ação;
a ação é produzida na dependência da ignorância.
Aqui a ênfase é na
primeira das quatro nobres verdades, os verdadeiros sofrimentos em si, que são
os efeitos. Então, em termos do processo de purificação, explica-se que:
quando a ignorância cessa, a ação cessa;
quando a ação cessa, a consciência cessa;
quando a consciência cessa, nome e forma cessam;
quando nome e forma cessam, as seis esferas dos sentidos
cessam;
quando as seis esferas dos sentidos cessam, o contato cessa;
quando o contato cessa, a sensação cessa;
quando a sensação cessa, o desejo cessa;
quando o desejo cessa, o apego cessa;
quando o apego cessa, o nível potencializado de carma chamado
de “existência” cessa;
quando o nível potencializado de carma chamado de “existência”
cessa, o nascimento cessa;
quando o nascimento cessa, o envelhecimento e a morte cessam.
Esta explicação é dada
em termos da classe purificada de fenômenos, com ênfase nas causas, nos
caminhos verdadeiros, a segunda entre as quatro nobres verdades. Na ordem
inversa explica-se que:
a cessação do envelhecimento e da morte surge na
dependência da cessação do nascimento;
a cessação do nascimento surge na dependência da cessação
do nível potencializado de carma chamado de “existência”;
a cessação do nível potencializado de carma chamado de
“existência” surge na dependência da cessação do apego;
a cessação do apego surge na dependência da cessação do
desejo;
a cessação do desejo surge na dependência da cessação da
sensação;
a cessação da sensação surge na dependência da cessação do
contato;
a cessação do contato surge na dependência da cessação das
seis esferas dos sentidos;
a cessação das seis esferas dos sentidos surge na
dependência da cessação de nome e forma;
a cessação de nome e forma surge na dependência da
cessação da consciência;
a cessação da consciência surge na dependência da cessação
da ação;
a cessação da ação surge na dependência da cessação da
ignorância.
Aqui no
processo de purificação a ênfase está nos efeitos – as verdadeiras cessações, a
terceira das quatro nobres verdades.
Estes
processos são representados num quadro chamado de roda da existência cíclica
com cinco setores[34]
(ver ilustrações 1 – 7). Deuses e semideuses estão reunidos em um setor da existência
cíclica; a seguir há o setor dos humanos; estas são conhecidas como
transmigrações felizes, representadas na metade de cima da roda. Os três
setores da metade de baixo são as transmigrações ruins ou inferiores – aquelas
dos animais, fantasmas famintos e seres dos infernos. Todos estes setores
representam níveis de sofrimento em termos de tipos de nascimento.
Devido a
quais condições surgem estas formas de sofrimento? O círculo dentro dos cinco
setores de seres indica que estes níveis de sofrimento são produzidos pelo
carma – pelas ações. Existem duas metades. A metade direita, que tem um fundo
branco, com pessoas olhando e se movendo para cima, simboliza as ações
virtuosas, sendo estas de dois tipos, meritórias e não-flutuantes; tais ações
são os meios para se obter vidas como humanos, semideuses e deuses. A metade
esquerda, que tem um fundo escuro, com pessoas viradas para baixo, simboliza as
ações não-virtuosas, que impelem os seres rumo a vidas nos reinos inferiores.
A partir
do que surgem estes carmas que são as fontes de sofrimento? Eles provêm de uma
fonte de sofrimento adicional – as emoções aflitivas de desejo, aversão e
ignorância –, indicada pelo círculo mais interno, onde estão representados um
porco, uma cobra e um galo. O porco simboliza a ignorância; a cobra, a aversão;
e o galo, o desejo. Em algumas versões da pintura, o porco agarra os rabos do
galo e da cobra em sua boca, indicando desse modo que desejo e aversão têm suas
raízes na ignorância. O galo e a cobra também agarram o rabo do porco em suas
bocas para indicar que cada um deles age para apoiar e incrementar o outro.
Movendo-se
do centro para fora, estes três círculos mostram simbolicamente que as três
emoções aflitivas de desejo, aversão e ignorância dão origem a ações virtuosas
e não-virtuosas, as quais, por sua vez, dão origem aos vários níveis de
sofrimento na existência cíclica. O aro externo, simbolizando os doze elos do
surgimento dependente, indica como as
fontes de sofrimento – ações e emoções aflitivas – produzem vidas dentro da
existência cíclica. O ser feroz que segura a roda simboliza a impermanência,
motivo pelo qual este ser é um monstro irado, embora não haja nenhuma
necessidade de ele ser retratado com ornamentos e tudo o mais, como está aqui.
Certa vez tive este quadro com um esqueleto em vez de um monstro, a fim de
simbolizar a impermanência mais claramente.
A lua na
extremidade direita indica a liberação. O Buda à esquerda está apontando para a
lua, indicando que a liberação que permite cruzar o oceano de sofrimento da
existência cíclica pode ser realizada.
A respeito
da história deste quadro, conta-se que no tempo do Buda Shakyamuni um rei
distante, Udayana, presenteou com um manto cravejado de pedras preciosas o rei
de Magadha, Bimbisara, que não tinha nada de valor equivalente para dar em
troca. Bimbisara ficou preocupado com aquilo e perguntou ao Buda o que deveria
dar. O Buda comentou que ele deveria ter um desenho da roda da existência
cíclica com os cinco setores, acompanhado do seguinte:
Ocupando-se
disto e abandonando aquilo,
Entra-se
no ensinamento do Buda.
Como um
elefante numa casa de sapê,
Destróem-se
as forças do Senhor da Morte.
Aqueles
que com consciência perfeita
Praticarem
esta doutrina disciplinar
Deixarão a
roda do nascimento,
Pondo um
fim ao sofrimento.
O Buda
disse a Bimbisara para mandar isto ao rei Udayana. Conta-se que, quando o rei
recebeu a ilustração e a estudou, atingiu a realização[35].
Os doze
elos do surgimento dependente são simbolizados pelas doze ilustrações do
círculo externo. A primeira ao alto – uma pessoa idosa, cega e manca de bengala
– simboliza a ignorância, o primeiro elo. Neste contexto, ignorância é o
obscurecimento a respeito do verdadeiro modo de ser dos fenômenos. Visto que
dentro das escolas filosóficas budistas existem quatro sistemas principais de
doutrina e dentro destas escolas existem muitas divisões diferentes, existem
várias interpretações do que é ignorância. Não só não temos tempo para discutir
todas elas, como eu nem mesmo lembro de todas!
Um tipo de
ignorância é o simples desconhecimento sobre como as coisas realmente existem,
um fator de mero obscurecimento. Entretanto, aqui nos doze elos do surgimento
dependente, a ignorância é explicada como uma consciência errada que concebe o
oposto de como as coisas realmente existem.
A
ignorância lidera as emoções aflitivas que estamos procurando abandonar. Cada
emoção aflitiva é de dois tipos: inata e adquirida intelectualmente. Emoções
aflitivas adquiridas intelectualmente baseiam-se em sistemas inadequados de
doutrina, de modo que a mente designa ou adota novas emoções aflitivas
conceitualmente. Estas não são emoções aflitivas que todos os serem possuem e não podem ser aquelas que estão na raiz da ruína
dos seres. Conforme diz Nagarjuna em suas Seventy
Stanzas on Emptiness (Setenta Estrofes sobre a Vacuidade):
Aquela
consciência que concebe coisas
Que são
produzidas na dependência de
Causas e
condições
Como
existindo
Foi
chamada de ignorância pelo Mestre.
Dela
surgem os doze elos.[36]
Esta é uma
consciência que de forma inata
compreende ou concebe equivocadamente os fenômenos como existindo por sua
própria vontade, como não-dependentes.
Porque
esta consciência tem diferentes tipos de objetos, a ignorância é dividida em
dois tipos: uma que concebe existência inerente ao observar pessoas, e outra
que concebe existência inerente ao observar outros fenômenos. Estas são
chamadas de consciências que concebem, respectivamente, a individualidade das
pessoas e a individualidade dos fenômenos.
A
concepção da individualidade das pessoas é de dois tipos: o primeiro é tomar
conhecimento de si mesmo, do próprio eu, e considerar a si mesmo como existindo inerentemente. O
segundo tipo de concepção da individualidade das pessoas, mais grosseiro, é
quando alguém percebe equivocadamente as outras pessoas como sendo
substancialmente existentes, no sentido de serem auto-suficientes. Isto é
chamado de “a falsa visão do conjunto transitório”[37]. Na
estrofe citada acima, Nagarjuna indica que a falsa visão inata do conjunto
transitório, que é a raiz da existência cíclica, é a concepção de si mesmo como
inerentemente existente, e que isto surge na dependência da concepção daqueles
agregados mentais e físicos que são as bases de designação da pessoa em si –
sua mente, corpo etc – como inerentemente existentes. Desta maneira, a
concepção da individualidade dos fenômenos age como uma base para a falsa visão
inata do conjunto transitório, que é a concepção da pessoa como inerentemente
existente, ainda que ambos os tipos sejam consciências ignorantes que concebem
existência inerente.
Quando
refletimos sobre nosso próprio desejo e aversão, vemos que são gerados dentro
da concepção do indivíduo como sendo muito sólido, devido ao que surge aí uma
forte distinção entre a própria pessoa e os outros e, conseqüentemente, apego
por si mesmo e aversão pelos outros. Atitudes de desejo e aversão estão todas
baseadas num senso exagerado de eu, não estão?
De fato
existe um eu convencionalmente postulado, válido – uma
individualidade que é a autora das ações, que é a acumuladora do carma e que é
a pessoa que passa pelo prazer e dor que são frutos daquelas ações. Entretanto,
quando examinanos o modo de percepção da mente no momento em que o eu se torna
um causador de problemas, descobrimos que estamos concebendo um eu auto-instituído
que é um exagero para além do que de fato existe. Quando este
eu aparece para a mente, não aparece designado na
dependência dos agregados de mente e corpo; em vez disso, é quase como se fosse
uma entidade autônoma. Se este eu
existisse de modo tão sólido e independente, quando alguém o investigasse com a
argumentação do Caminho do Meio[38], ele se
tornaria cada vez mais claro, mas de fato acontece o oposto, de tal modo que
ele se torna cada vez menos claro, até não poder mais ser encontrado. Se este eu fosse tão concreto e
independente, seria encontrado sob análise. O fato de não poder ser encontrado
indica que, exceto por sua mera designação na dependência da junção de certas
circunstâncias, este eu não
existe. Mesmo assim, ele aparece para nossa mente como algo que pode ser
indicado concretamente, mas, quando concordamos com esta falsa aparência, nos
metemos em apuros.
O conflito
entre a aparência concreta do eu e o fato de que, quando analisado, ele não
pode ser encontrado, indica uma discrepância entre a aparência e o que
realmente existe. Os físicos fazem uma distinção semelhante entre o que aparece
e o que realmente existe.
Em nossa
própria experiência, podemos identificar tipos ou níveis de desejo. Quando
vemos um certo artigo numa loja e o desejamos, isto constitui um tipo inicial
de desejo, mas depois que o compramos e sentimos: “Isto é meu”, é um nível
diferente. São semelhantes por serem ambos atitudes de desejo, mas diferem em
intensidade.
É
importante distinguir três níveis de aparência e percepção. No primeiro nível,
quando ocorrem o mero aparecimento e mero reconhecimento do objeto, o objeto
simplesmente aparece, sem gerar desejo. Então, quando sentimos: “Oh, isto é
realmente bom”, o desejo foi gerado, e este é um outro nível de aparência e
percepção do objeto. Ao decidir comprar o objeto e torná-lo nosso,
acalentando-o como nossa propriedade, há um terceiro nível de aparência e
percepção.
No
primeiro nível, que consiste do mero aparecimento do objeto, este parece
existir inerentemente; entretanto, a mente não está fortemente envolvida com
ele. No segundo nível, o desejo pelo objeto é induzido pela ignorância que o
percebe como existindo inerentemente. Há um nível sutil de desejo que pode
existir ao mesmo tempo que esta consciência que concebe o objeto como
inerentemente existente, mas, quando o desejo se torna mais forte, a concepção
de existência inerente age como causa, induzindo a mais desejo ainda, mas não
existe exatamente ao mesmo tempo que o desejo. É crucial perceber a partir de
nossa própria experiência que:
–
no primeiro
nível o objeto parece inerentemente existente;
–
no segundo
nível há uma consciência que concorda com esta aparência, percebendo o objeto
como inerentemente existente e, deste modo, dando surgimento ao desejo;
–
no terceiro
nível, quando compramos tal objeto inerentemente agradável e o tornamos nosso,
o objeto fica envolvido por uma forte concepção de posse na qual o consideramos
extremamente valioso.
Ao final
deste processo, juntaram-se duas poderosas correntes de aderência – desejo pelo
objeto inerentemente agradável e apego por si mesmo –, deixando o desejo ainda
maior que antes. Reflitam se isto é ou não é assim.
O mesmo é
verdade para a aversão. Há uma experiência inicial envolvendo uma percepção
convencionalmente válida das qualidades de um objeto – ver uma coisa ruim e
identificá-la como ruim, por exemplo. Então a pessoa produz aversão ao pensar:
“Oh, isto é realmente ruim”; este é o segundo nível. Quando a aversão está relacionada
à pessoa em si, é mais forte, e quando é vista como uma potencial portadora de
dano à pessoa, desenvolve-se uma aversão ainda maior.
Assim, a
ignorância que é a concepção da existência inerente atua para ajudar tanto o
desejo quanto a aversão. Neste sentido, a causa de toda esta dificuldade é o
porco! E pelo calendário tibetano o ano de meu nascimento é o Ano do Porco!
Este é o
modo pelo qual o obscurecimento – ignorância – serve de raiz para todas as
outras emoções aflitivas. Esta consciência ignorante está obscurecida no que
diz respeito ao modo de ser dos fenômenos, e por isto é simbolizada no quadro
por uma pessoa cega. Além disso, como a ignorância é fraca, no sentido de que
não está fundamentada em conhecimento válido, a pessoa manca, usando uma
bengala. Mais apropriadamente, a ignorância deve ser representada na parte de
baixo do quadro, mas com freqüência está colocada no alto.
Na
dependência deste tipo de ignorância ocorre o segundo dos doze elos do
surgimento dependente, a ação. É chamada de ação composicional porque as ações
servem para compor ou ocasionar efeitos prazerosos e dolorosos. É simbolizada
por um oleiro. O oleiro pega argila e a transforma num novo artigo; de modo
similar, uma ação dá início a uma seqüência que leva a novas
conseqüências. Além disso, uma vez que o oleiro ponha a roda a girar[39], ela
continua rodando pelo tempo que for necessário sem empenho e esforço
adicionais; de modo similar, quando uma ação foi praticada por um ser
senciente, estabelece uma predisposição na mente –
ou, como se diz na Escola da Conseqüência, produz um estado de destrutividade
daquela ação –, e esta predisposição ou estado destrutivo tem o potencial de
seguir livre e desimpedida até produzir seu efeito.
Considerando-se
os efeitos das ações em termos de conseqüentes renascimentos nos reinos do
desejo, da forma e da não-forma, existem ações virtuosas e não-virtuosas, e
dentro das ações virtuosas existem ações meritórias e ações não-flutuantes. Em
termos do modo pelo qual são praticadas, existem ações de corpo, fala e mente.
Em termos de suas próprias entidades, existem ações da intenção[40] e ações
propositadas[41].
Também existem ações definidas e indefinidas, indicando se o efeito é para ser
definitivamente experimentado ou não. A respeito destas últimas, os efeitos
podem ser experimentados nesta vida, na próxima ou em outra mais adiante.
Além
disso, tomando uma vida humana como exemplo, existem ações que impelem ou
projetam uma vida física em um rumo geral, e outros tipos de ações que, por
assim dizer, preenchem o quadro e são chamadas de ações complementares. Elas
preenchem os detalhes específicos – fazendo, por exemplo, um corpo ser bonito,
feio e assim por diante. Considere-se um humano que passa por muitas doenças;
como no caso de todos os outros humanos, o carma projetor ou impulsor foi uma
ação virtuosa, como pode ser determinado pelo simples fato de ter nascido como
humano. As ações complementares que preenchem o
quadro, criando uma propensão à doença, são ações não-virtuosas. Ocorre o
oposto quando o carma impulsor é não-virtuoso e as ações complementares
que preenchem o quadro são virtuosas, como no caso de um animal com um corpo
bom e saudável. Também existem casos em que tanto as ações impulsoras quanto as
complementares são virtuosas, bem como o caso oposto, em que ambas são
não-virtuosas.
Outra
divisão das ações distingue aquelas feitas deliberadamente; as deliberadas mas
não praticadas; as praticadas mas não deliberadas; e as nem deliberadas, nem
praticadas[42].
Também existem ações nas quais (1) o pensamento é benéfico, mas a execução da
ação é prejudicial, (2) o pensamento é prejudicial, mas a execução é benéfica,
(3) tanto o pensamento e quanto a execução são prejudiciais, ou (4) tanto o
pensamento quanto a execução são benéficos. Também existem ações cujos efeitos
são experimentados em comum por um grupo de seres, e ações cujos efeitos são
experimentados por apenas um indivíduo.
Como os
carmas são acumulados? Por exemplo, uma motivação específica pode levar a certas ações físicas e verbais. Boa motivação leva a
palavras agradáveis e ações físicas gentis, por meio das quais é acumulado bom
carma. Um resultado imediato é sentido na criação de uma atmosfera pacífica e
amigável. Entretanto, a raiva motiva palavras rudes e ações físicas e verbais
ríspidas, criando imediatamente uma atmosfera desagradável. Em ambos os casos
uma ação é produzida tendo
por alicerce a ignorância sobre a natureza última dos fenômenos; este é o
primeiro estágio do carma. Quando a ação cessa, imprime uma potência, uma
predisposição dentro da consciência, e o continuum da consciência carrega esta
potência até a hora da fruição do carma. Neste sentido, uma ação cria tanto um
resultado imediato quanto um potencial que eventualmente ocasiona uma
experiência prazerosa ou dolorosa no futuro.
É assim
que o primeiro elo, a ignorância, motiva o segundo elo, a ação, que estabelece
uma potência para experiência futura no terceiro elo, consciência. A
consciência é simbolizada pela figura de um macaco. Dentro do budismo existem
várias interpretações sobre o número de consciências; um sistema postula apenas
uma; outros postulam seis; outro postula oito; e um outro, nove. Embora a maior
parte dos sistemas budistas postule seis tipos de consciência, a figura com
freqüência é de um macaco indo de janela em janela numa casa; isto
provavelmente tem origem no postulado de uma única consciência. Quando esta
consciência única percebe por meio do olho, parece ser uma consciência de olho,
e quando percebe por meio do nariz, ouvido, língua e corpo, parece ser
respectivamente uma consciência de nariz, consciência de ouvido, consciência de
língua e consciência de corpo, mas, como um único macaco em muitas janelas, é
apenas uma. De qualquer modo, o macaco é um animal esperto e ativo e, portanto,
pode simbolizar estas qualidades da consciência.
O problema
é que, entre uma ação e sua fruição, pode haver um considerável período de
tempo; contudo, todos os sistemas budistas asseguram que os carmas não são
perdidos ou desperdiçados; entre a causa e o efeito deve haver alguma coisa que
conecte os dois. Muitas asserções diferentes são apresentadas dentro dos
sistemas budistas a respeito do que conecta uma ação e seu efeito de longo
prazo. A melhor solução é oferecida pela Escola da Conseqüência, que é a
seguinte: todos os sistemas afirmam que existe uma pessoa na hora em que a ação
é praticada e na hora em que o efeito é experimentado. Assim, deve haver um
continuum do eu dependentemente designado – o qual proporciona a base para
infusão da predisposição[43] criada
por uma ação. Uma vez que um sistema seja incapaz de apresentar tal base para
infusão das predisposições, tem que encontrar uma base independentemente
identificável para a infusão destas potências; é por isto que a Escola da
Mente-Apenas postula uma mente-como-base-de-tudo[44] como
base para a infusão das predisposições. Entretanto, o sistema mais elevado, a
Escola da Conseqüência, não tem tal dificuldade, visto que sustenta que a base
contínua de infusão das predisposições é o simples eu,
a mera pessoa, e que a base temporária para a infusão das predisposições é a
consciência.
Neste
sentido, imediatamente após uma ação há um estado de destrutividade ou cessação
da ação, que, pode-se dizer, transforma-se na entidade de uma predisposição
infundida na consciência. A consciência que vai deste momento até o momento
imediatamente anterior à concepção na nova vida é chamada de consciência do
tempo causal ou de consciência causal. A consciência do momento seguinte, na
qual é feita a conexão para a próxima vida, é chamada de consciência
resultante. Em termos de duração, a consciência resultante perdura daquele
momento até imediatamente antes do período do quarto elo, nome e forma; por
conseguinte, é extremamente breve.
No que
concerne a nome e forma, “nome” refere-se aos quatro agregados mentais de
sensação, discriminação, fatores composicionais e consciência. “Forma” é o
agregado dos fenômenos físicos. Em nosso quadro, é representado por pessoas
andando de barco; em outros quadros, é simbolizado por estacas que se apóiam
umas contra as outras. Este último provém de uma escritura que apresenta os
ensinamentos da Escola da Mente-Apenas para 1) uma consciência mental, 2) uma
mente-como-base-de-tudo, e 3) uma forma, as quais são
como as pernas de um tripé, apoiando umas às outras. Em nossa representação, o
barco simboliza a forma, e as pessoas no barco simbolizam os agregados. O
período de nome e forma continua durante o desenvolvimento do embrião, até ele
começar a desenvolver os cinco órgãos.
PERGUNTAS
Pergunta: Poderia explicar os dois
tipos de meditação analítica?
Resposta: Tanto a
meditação analítica quanto a meditação estabilizadora são de dois tipos.
No primeiro tipo de meditação analítica, você está meditando sobre um objeto, como quando se medita
sobre a impermanência; no segundo, você está motivando sua própria consciência
a ser gerada dentro de um estado mental, como quando se cultiva amor
meditativamente. Quando medita sobre impermanência ou vacuidade, você as está
pegando como objetos de sua mente, mas quando você “medita” sobre fé ou
“medita” sobre compaixão, não está meditando sobre fé ou compaixão por meio de
reflexão sobre as qualidades delas; ao contrário, você está desenvolvendo sua
própria consciência dentro de uma consciência fiel ou compassiva.
Pergunta: Quantos tipos de
investigação analítica existem?
Resposta: Dentro dos sistemas
budistas existem quatros modos de investigar os fenômenos. O primeiro é olhar
para as funções que um objeto apresenta – que o fogo queima ou que a água
umedece, por exemplo; o seguinte é investigar por meio da argumentação baseada
em prova válida; o terceiro é olhar para a dependência, como na causalidade; e
o último é a argumentação de simplesmente olhar a natureza do objeto, de que
uma coisa é o que é naturalmente. Acho que há muitos fenômenos que devem ser
entendidos no contexto do quarto tipo de indagação racional – de que a natureza
de alguma coisa simplesmente é como tem que ser. Ocorre-me que este tipo de
argumentação possa ser usado em conexão com o tópico da causalidade cármica;
por exemplo, se alguém faz mal a um outro ser, então, porque a natureza daquela
ação é trazer mal a um ser senciente, o resultado naturalmente é que o mal
retorna para o indivíduo que o praticou. De modo similar, visto que ajudar
outro ser senciente tem a natureza de trazer benefício, o efeito que retorna
para o indivíduo também é benéfico.
Além
disso, se alguém pergunta por que a consciência tem a característica de
experimentar objetos ou por que os objetos físicos são materiais, pode olhar
para suas respectivas causas substanciais e condições cooperativas, mas quando
recua a pergunta mais e mais para trás, é provável que simplesmente seja da
natureza da consciência ser uma entidade de experiência. Se alguém postulasse
um princípio para a consciência, este postulado ficaria exposto a muito dano
pela argumentação; por exemplo: seria absurdo alegar que uma entidade luminosa
e cognitiva pudesse ser produzida por alguma coisa que não fosse uma entidade
luminosa e cognitiva. Uma vez que existem muitas destas contradições neste
postulado, é melhor adotar o postulado de que não existe um começo para a
consciência.
Com
respeito às partículas de matéria, a consciência pode ser capaz de servir como
condição cooperativa no processo de produzir matéria, mas a causa substancial
deve ser alguma coisa material, visto que matéria deve ser produzida por algo
similar. Considerem, por exemplo, nossa própria galáxia, ou sistema planetário
de um bilhão de mundos. Na apresentação tradicional budista existem éons de
vacuidade, depois éons de formação, éons de duração e éons de destruição; estas
séries de quatro fases seguem-se uma depois da outra, sem cessar, sem fim. Eu
me pergunto se as substâncias que produzem as partículas que são os blocos
construídos durante o período de formação estão presentes durante os períodos
de éons de vacuidade. Talvez as partículas de espaço mencionadas no sistema
Kalachakra refiram-se a isto. Mesmo que cinco ou seis bilhões de anos tenham se
passado desde o Big Bang, tem que haver uma explicação sobre quais condições
causais anteriores deram origem a ele.
De um
outro ponto de vista, há iogues que cultivam estados meditativos chamados de
totalidade-da-terra, totalidade-da-água, e assim por diante, nos quais tudo que
aparece é apenas terra ou apenas água, e assim por diante. Além disso, os
fenômenos produzidos através do poder do ioga de fato não têm limite. Por
exemplo, embora tenhamos que postular a solidez, as coisas não podem ser
postuladas como sólidas em todos os aspectos e em termos de todas as situações;
pelo contrário, elas são postuladas como sólidas apenas em relação a uma
situação específica.
Pergunta: Por favor, dê sua
definição de eu, de invidualidade.
Resposta: Aqueles que não têm
nenhuma crença em vidas passadas e futuras não prestam muita atenção para o que
é a existência ou a natureza da individualidade, mas entre aqueles que têm tal
crença existem muitas asserções diferentes. Muitos sistemas não-budistas
postulam uma individualidade que continua de vida para vida. Fazem isso porque
vêem que alguma coisa segue de uma vida para outra e que o corpo claramente não
o faz; não podem postular algo impermanente que siga de uma vida para outra;
portanto, postulam uma individualidade permanente, singular e independente que
viaja de uma vida para a próxima.
Dentro dos
sistemas budistas, postula-se um eu, mas não da mesma maneira que acima.
Sentindo que o eu, ou a
individualidade, deve ser algo que possa ser postulado sob análise, os sistemas
budistas inferiores sustentam que algo de
dentro do conjunto impermanente de mente e corpo deve ser designado como o
eu, ou individualidade. Algumas destas escolas budistas postulam a consciência
mental; algumas postulam a mente-como-base-de-tudo; algumas, o continuum dos
agregados; e assim por diante. Entretanto, o supremo entre todos os sistemas de
doutrina budistas, a Escola da Conseqüência, sustenta que, da mesma forma que
uma carruagem é designada na dependência de suas partes e não pode ser encontrada
entre as próprias partes, uma pessoa é meramente designada na dependência de
agregados mentais e físicos, mas não pode ser encontrada, através de análise,
entre nenhum destes agregados. Assim, não apenas o eu é designado de modo dependente, mas todos os fenômenos
são dependentemente designados; até a vacuidade é designada de modo dependente,
do mesmo modo que o estado de Buda – todos os fenômenos que surgem e ocorrem
são apenas dependentemente designados.
Pergunta: Sua Santidade, poderia falar sobre a conexão entre os cinco agregados e
os cinco elementos?
Resposta:
Primeiro é necessário identificar os cinco agregados; eles são formas,
sensações, discriminações, fatores composicionais e consciência. No agregado da
forma, por exemplo, o nível mais grosseiro é nosso corpo ou carne, sangue e
todo o resto, e os níveis mais sutis envolvem o tópico dos vários ventos, ou
energias internas, descritos no tantra ioga insuperável. No tantra, existem
muitas explicações sobre a conexão entre o movimento dos constituintes físicos
básicos e as energias internas, ou ventos, em canais pelos quais são produzidos
diferentes níveis de consciência, conceitual e não-conceitual[45].
Os quatro
agregados restantes são chamados de “as bases do nome”[46]. São
eles: sensação, discriminação, fatores composicionais e consciência. O agregado
da sensação e o agregado da discriminação são os fatores mentais de sensação e
discriminação, que se distinguem de todos os outros fatores mentais[47]. No Treasury of Manifest Knowledge (Tesouro do
Conhecimento Manifesto)[48],
Vasubandhu explica que esta distinção ocorre porque a discriminação é a fonte
de toda disputa e porque a pessoa é arrastada para ações aflitivas e, por
conseguinte, para a existência cíclica por causa do desejo pela sensação
prazerosa e do desejo de querer se afastar da sensação dolorosa. Dentro do
quarto agregado, fatores composicionais, existem dois tipos principais: fatores
composicionais associados com a consciência e aqueles não associados com a
consciência. Em geral, quando falamos de seres com um corpo físico, todos têm
os cinco agregados, mas no reino da não-forma existem apenas os quatro
agregados mentais. Entretanto, do ponto de vista do tantra ioga insuperável,
isto é apenas em termos de forma grosseira.
Existem
quatro elementos básicos: terra, água, fogo e vento. O primeiro, embora
denominado “terra”, refere-se basicamente a solidez e obstrução. “Água”
refere-se a fluidez e umidade. “Fogo” significa calor e combustão. Em termos
grosseiros, “vento” refere-se ao ar que inspiramos e expiramos, mas num nível
sutil refere-se basicamente aos tipos de energia que promovem desenvolvimento e
mudança. No sistema Kalachakra, por exemplo, diz-se que mesmo um corpo morto
ainda tem ventos operando nele, porque continua a passar por mudanças. Um
elemento adicional é o espaço, o que, em referência ao corpo, significa as
cavidades vazias e os dutos. O sistema Kalachakra também fala de partículas de
espaço, que são extremamente sutis; de modo similar, os cientistas falam de
partículas diminutas no espaço que servem como base para outros fenômenos.
Estes são
os cinco agregados e os cinco elementos. Se vocês tiverem outras perguntas
sobre estes tópicos, por favor, façam-nas.
Pergunta: Visto que todos os
surgimentos e toda a vida são apenas ilusão, não é inconsistente dizer que há
níveis de surgimento, como aqueles mencionados nesta manhã?
Resposta: Não é que a vida seja uma ilusão; mais exatamente, ela é como uma ilusão. Portanto, podemos falar
de muitos tipos diferentes de discrepância entre o modo como as coisas aparecem
e o modo como elas realmente existem. Por exemplo, algo que na verdade é
impermanente pode parecer permanente; às vezes, coisas que de fato são fontes
de dor parecem ser fontes de prazer. Estes são tipos de conflito entre o modo como
as coisas realmente são e o modo como se parecem. Quanto à realidade
definitiva, os objetos parecem existir inerentemente, mas de fato falta
existência inerente; este é outro nível de discrepância entre aparência e fato.
Pergunta: Como crença ou descrença
se relacionam com a ignorância?
Resposta: A maioria de nós tem a
crença de que os objetos existem inerentemente; eles parecem existir a partir
de si mesmos, e nós
acreditamos que eles existam deste modo. Este tipo de crença é induzido pela
ignorância.
Pergunta: Quando o desejo é causa e
quando é efeito?
Resposta: O desejo pode servir como
causa de momentos posteriores de desejo, e estes momentos posteriores de desejo
são instâncias de desejo que são efeitos da causa prévia.
Pergunta: Se uma predisposição para
uma ação formou-se na mente, deve ser inevitavelmente completada ou existe uma
saída?
Resposta: Se você é capaz de gerar
uma condição mais poderosa que a condição que provocaria a manifestação do
carma, ela pode ser desarmada. Por exemplo: ao reconhecer más ações,
desenvolver contrição e empenhar-se em atividade virtuosa aspirando a purificar
um carma ruim, você pode purificá-lo. Você pode no mínimo diminuir a força
dele, de modo que, mesmo que você enfrente uma situação que teria provocado a
ativação, isto não acontecerá.
2 – Vida Impulsionada pela Ignorância
CONDIÇÕES
PARA O SOFRIMENTO
Vamos
continuar a descrição dos doze elos do surgimento dependente. O quinto elo são as seis esferas dos sentidos – os
promotores internos de consciência, que são o olho, ouvido, nariz, língua,
corpo e sentidos mentais. Eles são representados no quadro por uma casa vazia,
porque os órgãos estão se desenvolvendo, mas ainda não estão funcionando. Ou
seja, como em uma casa vazia, as circunstâncias externas requiridas para o
funcionamento das consciências dos sentidos estão se desenvolvendo, mas,
internamente, elas ainda não estão funcionando.
Depois
disto, vem o contato, o sexto elo. Contato em si é um fator mental que
distingue os objetos como prazerosos, dolorosos ou neutros a partir da reunião
do objeto, da faculdade sensorial e da consciência. Os objetos são formas
visíveis, sons, odores, gostos, objetos tangíveis e outros fenômenos não
incluídos nestes cinco; as faculdades sensoriais são os seis órgãos – olho,
ouvido, nariz, língua, corpo e faculdades sensoriais mentais. Quando um objeto,
uma faculdade sensorial e um momento de consciência anterior atuando como uma
condição imediatamente precedente estão juntos, gera-se uma consciência, e o
fator mental do contato distingue o objeto como prazeroso, doloroso ou neutro.
Em geral,
uma consciência é produzida por intermédio de três condições. A primeira é
chamada de condição do objeto observado[49], este é
o objeto que provoca o surgimento de uma consciência com o aspecto do próprio
objeto. A segunda é a condição dominante[50], uma
faculdade sensorial que torna uma consciência específica capaz de perceber
apenas seu respectivo tipo de objeto, mas não outro tipo, como quando a
faculdade sensorial do olho dá à consciência a capacidade de perceber objetos
visuais, mas não sons. O fato de que uma consciência seja produzida como uma
entidade empírica deve-se a uma consciência imediatamente precedente; esta é a
terceira condição, chamada de condição imediatamente precedente[51].
Por
envolver a percepção de um objeto e sua distinção, o contato é simbolizado por
um beijo. O contato ocorre imediatamente antes da produção de sensação.
O sétimo
elo do surgimento dependente, sensação, é postulado como um fator mental que
experimenta prazer, dor ou sensação neutra uma vez que o objeto tenha sido
definido pelo contato como prazeroso, doloroso ou neutro. De acordo com certo
um sistema de interpretação, a sensação pode se estender em todas as direções,
desde a experiência inicial de prazer e dor até o prazer do orgasmo. A sensação
é representada por um olho perfurado por uma flecha. O
olho é tão sensível que mesmo
uma coisa diminuta
provocará uma enorme sensação. Não importa que tipo de sensação tenhamos, prazerosa ou dolorosa, não conseguimos ficar
sossegados com ela – é algo muito forte, que nos move. Sensações prazerosas
geram um forte ímpeto por mais, e a dor gera um forte ímpeto de afastamento.
O oitavo e
nono elos, desejo e apego, são tipos de desejo. A diferença entre eles é que o
desejo é mais fraco que o apego. Existem várias divisões do desejo; desejo
ansioso, por exemplo, está associado ao reino do desejo; desejo por destruição
é uma vontade de ficar afastado de uma sensação dolorosa; e desejo pelos reinos
da forma e não-forma é chamado de desejo pela existência mundana.
O desejo é
representado por uma pessoa bebendo cerveja. Isto é fácil de entender, não é?
Não importa que você perceba que isso deixa você gordo e você não queira ser
gordo, você continua bebendo, bebendo e bebendo. O desejo é um fator mental que
aumenta o desejo, sem proporcionar qualquer satisfação.
O apego,
agarrar-se mentalmente ao objeto que se deseja, é representado por um macaco
pegando uma fruta. Existem quatro variedades de apego – por objetos desejados,
por visões de si mesmo, por maus sistemas de ética e conduta e por qualquer um
dos tipos restantes de pontos de vista impróprios. Tais formas de apego podem
ser aplicadas tanto àqueles que vivem em família quanto àqueles que deixaram a
vida doméstica e, embora celibatários, têm uma visão errônea. Existem,
entretanto, mais tipos de apego além dos quatro descritos aqui. Por exemplo, se
uma pessoa (1) tornou-se temporariamente livre do desejo relacionado ao reino
do desejo e (2) tem uma visão correta, mas (3) procura renascer num reino da
forma ou não-forma, ela deve acumular um carma que impulsionará o renascimento
naquele reino e, por conseguinte, está necessariamente se apegando àquele tipo
de vida. Uma vez que os quatro tipos de apego não incluem tais exemplos, não
são completos. Portanto, diz-se que a lista foi formulada apenas a fim de
sobrepujar idéias erradas, não para ser completa.
O desejo
de manter um objeto prazeroso e o desejo de se afastar de um objeto doloroso
surge na dependência de nome e forma, esferas dos sentidos, contato e sensação.
Quando tal desejo é produzido repetidamente de forma cada vez mais forte,
constitui-se em apego por objetos de desejo dos sentidos, tais como formas
agradáveis, sons agradáveis, odores agradáveis, sabores agradáveis e objetos
tangíveis agradáveis. Tais desejos e apegoa servem para, mais tarde,
potencializar ou carregar a potência cármica estabelecida na consciência por
uma ação anterior motivada pela ignorância. Isto causa a obtenção de um novo
sistema de vida no reino do desejo. Quando esse carma, a predisposição
estabelecida na mente, é nutrido pelo desejo e pelo apego e se torna
inteiramente capaz de produzir a próxima vida, é chamado de “existência”, o
décimo elo. Aqui a causa, o carma inteiramente potencializado, recebe o nome do
efeito, uma nova existência na roda cíclica do sofrimento. Na Escola da
Conseqüência, “existência” refere-se mais exatamente ao estado de
destrutividade de uma ação inteiramente potencializado, o que é em si algo
operante, que produzirá a próxima vida.
A figura
deste décimo elo é uma mulher grávida. Neste ponto, o carma que irá produzir a
próxima vida está inteiramente potencializado, embora ainda não manifesto; de
modo análogo, uma mulher em gravidez avançada tem dentro de seu útero uma criança
inteiramente desenvolvida que ainda não emergiu. O décimo elo estende-se do
momento do carma inteiramente potencializado até o começo da próxima vida.
Dentro disto há duas divisões de acordo com o momento – um nível chamado de
“direcional”[52],
visto que está direcionado rumo à próxima vida, e outro nível chamado de “em
processo”[53],
visto que se refere ao carma potencializado no momento do estado intermediário
entre duas vidas.
O
décimo-primeiro elo é o surgimento dependente do nascimento, representado por
uma mulher dando à luz. A criança que na figura anterior estava no útero da
mulher grávida agora está mudando de estado.
O
décimo-segundo elo é o surgimento dependente do envelhecimento e morte. Existem
dois tipos de envelhecimento; o primeiro é chamado de “progressivo”, uma vez
que, desde o momento da concepção, estamos envelhecendo; isto ocorre a cada
momento da vida. O outro tipo é chamado de “deterioração”, a denegeração comum
na velhice.
Depois do
envelhecimento vem a morte. Entre um e outro, existem choros de pesar e muitos
tipos de sofrimento, tais como buscar mas não encontrar o que se quer,
encontrar o que não se quer, e assim por diante.
IGNORÂNCIA
COMO RAIZ DO SOFRIMENTO
Nossas
vidas começam com o sofrimento do nascimento e terminam com o sofrimento da
morte; entre estes dois, existem muitas conseqüências diferentes do
envelhecimento e muitos eventos infelizes. Isto é o sofrimento, a primeira das
quatro nobres verdades, é o que não queremos – o problema que queremos superar.
É importante investigar se existe algum modo de transpor tal sofrimento ou não.
Para entender isto, é necessário investigar as causas de nossa situação. Esta é
a relevância de toda a explicação sobre os doze elos do surgimento dependente,
começando com o estágio de ignorância.
Quando
examinamos qualquer tipo de sofrimento experimentado agora, descobrimos que sua
raiz é a ignorância. Uma vez que haja ignorância, a todo e qualquer minuto
poderemos iniciar uma ação que servirá de causa para outro renascimento.
Através deste processo, já depositamos ilimitadas predisposições em nosso fluxo
de consciência, potências estabelecidas por ações motivadas pela ignorância;
agora mesmo temos em nossa consciência um número ilimitado de tais
potencialidades para vidas futuras.
Estivemos
considerando os doze elos do surgimento dependente em termos de uma série que
começa pela ignorância. Neste contexto, podemos ver que outras séries do
surgimento dependente estão operando simultaneamente, uma vez que outras
instâncias de ignorância induzem séries adicionais. Além disso, uma seqüência
de surgimento dependente requer intersecções com outras seqüências. Por
exemplo: ignorância, ação e consciência impelem a força que produz a próxima
vida, mas o oitavo, nono e décimo elos – desejo, apego e existência – devem
ocorrer entre consciência e nome e forma a fim de capacitar a consciência a
produzir a vida indicada pelo quarto elo, nome e forma. Ademais, visto que o
décimo elo, existência, representa o carma inteiramente potencializado que leva
ao nascimento, na época deste nascimento específico outro conjunto de nome e
forma, esferas dos sentidos, contato e sensação estará operando. Desejo, apego
e existência, por sua vez, devem vir entre os elos três e quatro, devendo ser
precedidos de seus respectivos nome e forma, esferas dos sentidos, contato e
sensação – elos quatro, cinco, seis e sete; assim, há outra série de surgimento
dependente envolvida na produção deles. Portanto, uma única série de surgimento
dependente necessariamente envolve outras séries.
Visto que
o primeiro dos doze elos é ignorância e o último é envelhecimento e morte,
poderia parecer que há um começo e um fim, mas já que, não apenas uma, mas
muitas séries operam juntas, não existe um fim, a menos que a ignorância seja
removida. Até a ignorância ser superada, não há nada que se possa de fato fazer
para acabar com este processo.
Se
considerarmos os doze elos do surgimento dependente relacionados com uma vida
numa má transmigração, como um animal, fantasma faminto ou ser do inferno, em
uma vida passada houve a ignorância básica – obscurecimento a respeito do modo
de ser dos fenômenos – e, além disso, houve também ignorância a respeito da
relação entre as ações e seus efeitos. Estas duas foram a força motivadora,
produzindo uma ação não-virtuosa que depositou uma potência na consciência.
Esta potência serviu então de causa projetora para uma vida numa má
transmigração. A causa projetora foi concretizada ou carregada pelo desejo e
pelo apego, tornando-se inteiramente potencializada como existência. Os efeitos
projetados de sofrimento (consciência resultante, nome e forma, esferas dos
sentidos, contato e sensação) e os efeitos concretizados de sofrimento
(nascimento e envelhecimento/morte) numa má transmigração são produzidos deste
modo.
Se considerarmos
os doze elos do surgimento dependente relacionados com uma vida numa boa
transmigração, como um humano, deus ou semideus, a ignorância básica é a mesma
– obscurecimento a respeito do modo de ser dos fenômenos –, mas a ação motivada
por isto foi uma ação virtuosa benéfica para os outros, tal como deixar de
matar. Tal ação virtuosa deposita na causa de consciência uma boa potência para
renascimento numa vida de status elevado. Esta causa projetora foi concretizada
ou carregada pelo desejo e pelo apego, de modo que tornou-se inteiramente
potencializada como existência, com o que produziu os efeitos projetados e
concretizados de uma vida numa condição de status elevado.
A reflexão
de que os outros viajam pela existência cíclica deste mesmo modo serve como uma
técnica para aumentar a compaixão. Assim, numerosos métodos de meditação são
descritos tanto em termos de reflexão sobre estes doze elos do surgimento
dependente no próprio indivíduo –
através do que se desenvolve o anseio de deixar a existência cíclica – quanto
em termos de reflexão sobre estes doze elos do surgimento dependente nos outros – através do que a compaixão
aumenta.
Isto
completa nossa discussão sobre o surgimento dependente como o processo de
desenvolver uma vida na existência cíclica.
SURGIMENTO
DEPENDENTE COMO DESIGNAÇÃO DEPENDENTE
Outra
forma de surgimento dependente é o estabelecimento dos fenômenos na dependência
de suas partes. Todo e qualquer objeto tem partes.
Objetos físicos têm partes direcionais, e fenômenos sem forma, como a
consciência, têm partes temporais – momentos anteriores e posteriores que
formam seu continuum. Se houvesse qualquer coisa tal como uma partícula sem
partes para servir de bloco de construção de um objeto maior, não se poderia
discriminar, por exemplo, seus lados direito e esquerdo, ou frente e verso. Se
os lados não pudessem ser discriminados, então, não importa quantas delas
fossem agrupadas, não se poderia encontrar nada mais que o formato da partícula
original. Seria impossível que elas se agrupassem. Entretanto, é fato que os
objetos grosseiros são produzidos através do agrupamento de muitas partículas
diminutas; assim, não importa quão pequena seja a partícula, ela deve ter
partes direcionais, e por esta lógica se estabelece que não existem objetos físicos
sem partes.
Similarmente,
a respeito do continuum, se os menores momentos de um continuum não tivessem
partes anteriores e posteriores, não haveria qualquer possibilidade de se
agruparem para formar um continuum. Se um momento não tivesse partes capazes de
estar em contato com o que o antecede e o que o precede, não haveria jeito de
tal momento sem partes formar um continuum. De modo similar, com relação a
fenômenos inalteráveis como o espaço livre de fatores composicionais, existem
partes ou fatores, como o espaço do quadrante leste e o espaço do quadrante
oeste, ou a parte associada com este objeto e a parte associada com aquele
objeto. Assim, cada objeto, quer seja
impermanente ou permanente, mutável ou imutável, tem partes.
Entretanto,
quando o todo e as partes de qualquer objeto específico – sendo na dependência
destas últimas que o todo é designado – aparecem para nossas mentes, o todo
parece ter uma entidade separada própria, e as partes parecem ser partes dele. Não é assim? Embora dependam umas
das outras, parecem ter existências próprias.
Dessa
forma, existe uma discrepância entre o modo como o todo e as partes aparecem e
o modo como de fato existem, no sentido de que parecem ter identidades
separadas próprias, mas de fato não têm. Entretanto, isto não significa que não
existam objetos que sejam um todo, porque, se não existissem os “todos”, não
poderíamos falar de alguma coisa como sendo parte de qualquer coisa, porque um
todo é isto em relação a alguma coisa que é designada como parte dele. Portanto,
existem os “todos”, mas seu modo de existência é serem designados na
dependência de suas partes – eles não existem de nenhum outro modo. Isto não se
aplica apenas aos fenômenos mutáveis, impermanentes, mas também aos fenômenos
permanentes, imutáveis, e assim é mais amplo em significado que a interpretação
anterior de surgimento dependente, que está limitada aos fenômenos surgidos na
dependência de causas e condições.
Impossibilidade de Demonstração Analítica
O
surgimento dependente possui uma profunda implicação. Ele implica em que, se
alguém não está satisfeito com a mera aparência de um objeto, mas procura,
através de análise extensiva, o real objeto ao qual a designação é anexada, não encontra nada entre as bases de designação
daquele objeto, nem separado delas, que se possa dizer que é o objeto. Tome-se
a individualidade, ou eu, como exemplo: o eu é o controlador, ou usuário, da mente e do corpo, e a
mente e o corpo são objetos de uso daquele eu. O eu, a mente e o corpo indiscutivelmente existem, e não se
pode negar que realizam suas respectivas funções. O eu é semelhante a um proprietário, e o corpo e a mente lhe
pertencem. De fato, dizemos: “Há algo errado com meu corpo hoje; por isso estou
cansado.” Ou: “Hoje meu corpo está em forma; portanto, estou cheio de vigor.”
Tais afirmações são válidas, mas a respeito do braço, por exemplo, ninguém diz:
“Este sou eu”; mesmo assim, quando o braço está
dolorido, com certeza dizemos: “Estou com dor, não estou bem.” Apesar disto, é
claro que o eu e o corpo são
diferentes; o corpo é algo que pertence ao eu.
De modo
similar, falamos de “minha mente” ou “minha consciência”, como quando
constatamos: “Minha memória está muito fraca; alguma coisa está errada.”
Podemos até parecer em oposição à nossa própria consciência; nossa própria
memória; não é mesmo? Dizemos coisas tais como: “Quero deixar minha mente mais
aguçada; quero treinar minha mente”, situação na qual a mente é tanto o
treinador quanto o objeto treinado. Quando a mente é indisciplinada – não
fazendo o que se quer que ela faça –, a pessoa é como o treinador ou professor
da mente, e a mente é como um estudante indisciplinado que deve ser treinado a
obedecer. Dizemos e pensamos tais coisas, e elas estão de acordo com os fatos.
Neste
sentido, tanto o corpo quanto a mente são coisas que pertencem ao eu, e o eu é o proprietário; mas, além da
mente e do corpo, não existe nenhuma entidade de eu
separada e independente. Existem todos os indícios de que o
eu existe; no entanto, sob investigação, ele não pode
ser encontrado. Por exemplo: o eu
do Dalai Lama deve estar localizado dentro dos limites desta área circunscrita
por meu corpo; não existe nenhum outro lugar onde ele possivelmente pudesse ser
encontrado. Isto é certo. Entretanto, se alguém investigar dentro desta área o
que é o verdadeiro Dalai Lama, o verdadeiro Tenzin Gyatso, o
eu não tem substância própria além deste corpo e
mente. Ainda assim, o Dalai Lama é um fato, um homem, um monge, um tibetano,
alguém capaz de falar, capaz de beber, capaz de dormir, capaz de desfrutar a
vida, não é mesmo? Isto é suficiente para provar que existe alguma coisa,
embora esta coisa não possa ser encontrada.
Isto
significa que, entre as bases de designação do eu, não existe nada para ser
encontrado que seja uma ilustração do eu ou que seja o eu. Isto significa que o eu não existe? Não, não significa
isto; o eu definitivamente
existe. Mas quando, ainda assim, o eu
não pode ser encontrado entre suas bases de designação, que constituem o lugar
onde deve ele existir, deve-se dizer que ele é estabelecido não por seu próprio
poder, mas por força de outras condições. Isto não pode ser postulado de nenhum
outro modo.
Entre as
condições na dependência das quais o eu existe, um dos fatores mais importantes é a
conceitualidade que o designa. Por isso se diz que o eu e os outros fenômenos existem pelo poder da
conceitualidade. Neste sentido, surgimento dependente vem a significar não
apenas “surgido na dependência de causas e condições”, ou “designado na
dependência de uma base de designação”, mas também “surgido ou designado sob
dependência de uma consciência conceitual que designa o objeto”.
Por
conseguinte, no termo “surgimento dependente”, “dependente”[54]
significa “dependendo de ou contando com” outros fatores. Uma vez que o objeto
depende de alguma outra coisa, está privado de existir por seu próprio poder –
está privado de independência. Portanto, surge apoiado em condições. Bom e mau,
causa e efeito, o indivíduo e os outros – todos os objetos são estabelecidos
com o apoio de outros fatores; surgem de modo dependente. Por surgirem
dependentemente, os objetos são destituídos da condição extrema de existirem
por seu próprio poder. Além disso, porque, neste contexto de dependência,
auxílio e dano surgem e existem, não é que os objetos não existam – seu desempenho de funções é plausível. Neste sentido,
as causas e efeitos das ações são plausíveis, haja visto que o
eu é a sua base. Quando se entende isto, fica-se livre
do ponto de vista extremo da não-existência, o niilismo.
Neste
sentido, existir na dependência da conceitualidade é também um significado de
surgimento dependente – o significado mais sutil. Atualmente, os físicos
explicam que os fenômenos não existem apenas objetivamente em si e a partir de
si mesmos, mas existem em termos de, ou no contexto de, envolvimento com um
entendedor, um observador.
Tenho a
impressão de que o tema da relação entre matéria e consciência é um ponto onde
a filosofia oriental – particularmente a filosofia budista – e a ciência
ocidental podem se encontrar. Acho que poderia ser um casamento feliz, sem
divórcio! Se trabalharmos no sentido de um esforço conjunto de eruditos
budistas – não meros eruditos, mas aqueles que também possuem alguma
experiência em meditação – e de físicos puros e sem preconceitos para investigar,
estudar e se empenhar em uma pesquisa mais profunda no campo da relação entre
matéria e consciência, podemos encontrar coisas lindas que podem ser úteis.
Isto não tem que ser considerado prática religiosa, mas pode ser feito
simplesmente para a expansão do conhecimento humano.
Além
disso, aqueles cientistas que estão trabalhando com o cérebro humano no campo
da neurologia poderiam se beneficiar com as explicações budistas sobre a
consciência – como funciona, como muda em termos de níveis, e tudo o mais.
Algum tempo atrás, perguntei a um neurologista como funciona a memória. Ele
respondeu que ainda não encontraram uma explicação concreta; por isso, creio
que poderíamos trabalhar juntos também neste campo. Alguns profissionais
ocidentais da área médica também estão mostrando interesse pela cura de certas
doenças através da meditação. Este é outro tema interessante para um projeto
conjunto[55].
Por causa
da ênfase do budismo na autocriação, não existe uma deidade criadora, e por
isso algumas pessoas consideram, em termos estritos, que não se trata de uma
religião. Um erudito budista ocidental me disse: “O budismo não é uma religião;
é uma espécie de ciência da mente.” Neste sentido, o budismo não pertence à
categoria de religião. Considero isto uma desventura, mas de algum modo significa que o budismo
fica mais perto da ciência. Entretanto, do ponto de vista dos cientistas puros,
o budismo é um tipo de caminho espiritual. É uma desventura
que também pareçamos não pertencer à categoria de ciência. Deste modo, o
budismo não pertence nem à religião, nem à ciência pura, mas esta situação nos
proporciona a oportunidade de fazer um elo, ou uma ponte, entre fé e ciência. É
por isto que acredito que, no futuro, teremos que trabalhar para fazer estas
duas forças ficarem mais próximas uma da outra do que estão hoje.
A maioria
das pessoas simplesmente ignora a religião. Mas entre aqueles que não o fazem,
existe de um lado um grupo que está seguindo a fé e experimentando o valor de
um caminho espiritual, e, do outro lado, um grupo que está deliberadamente
negando qualquer valor para a religião. Como resultado, existe um conflito
constante entre estas duas facções. Valeria a pena se, de um modo ou de outro,
pudéssemos ajudar a aproximar estas duas forças.
PERGUNTAS
Pergunta: Sua Santidade, poderia por favor esclarecer a diferença entre ações da
intenção e ações propositadas?
Resposta: A respeito das ações em
geral, ou carma, existem dois sistemas diferentes – um que explica que qualquer
tipo de carma é necessariamente o fator mental da intenção, e outro que diz que
também existem carmas físicos e verbais. De acordo com o primeiro sistema, o
fator mental da intenção em si, no momento em que está inicialmente motivando
uma ação, é chamado de ação da intenção, enquanto que
o fator mental de intenção no momento de realmente se ocupar com o ato é
chamado de ação propositada; portanto, ambos estão contidos dentro do fator
mental de intenção. De acordo com o sistema que postula que também existem
ações físicas e verbais, as ações da intenção são explicadas de modo
semelhante, mas as ações propositadas ocorrem no instante em que a ação é
manifestada física ou verbalmente, e, deste modo, o propósito pode ser mental,
físico ou verbal. Este último é um sistema preferível; é a asserção da Escola
da Conseqüência.
Pergunta: A respeito da consciência,
diz-se que na Escola do Caminho do Meio, em oposição à Escola da Mente-Apenas,
a base contínua de uma predisposição causada por uma ação é o mero eu, enquanto
a base temporária seria a consciência. Poderia explicar mais este ponto?
Especificamente, como pode o mero eu, que não existe inerente ou eternamente,
ser a base eterna da predisposição? Além disso, como ou qual é o mecanismo que
armazena a predisposição, uma vez que não é a mente-como-base-de-tudo, e como
isto viaja de uma vida para a próxima?
Resposta: Quando falamos de um eu
nominalmente existente que é um mero nome, não significa que não existe outro
significado para o eu, ou
individualidade, além do próprio nome. Existe um significado ao qual o nome eu se refere. Entretanto, porque o objeto eu
não existe de um modo auto-instituído por seu próprio poder, sem depender
daquele nome, mas existe dependendo em muito do nome, da designação conceitual,
diz-se que é “apenas nome” – designado de modo meramente nominal. Deste modo,
no termo “mero eu”, a palavra “mero” indica que, quando o
eu é buscado em análise, não pode ser encontrado. Não
apenas o eu – que é a base na
qual as predisposições são infundidas – é designado de modo meramente nominal,
mas também as predisposições em si, bem como as ações que infundem as
predisposições, são designadas nominalmente, como tudo o mais. O fato dos
fenômenos serem meramente nominais não significa que não existam de modo algum;
mais exatamente significa que, dentro da existência, eles não existem por seu
próprio poder, por sua própria entidade, por suas características próprias.
Quando se
diz que a base de infusão e transporte das predisposições é “apenas-nome”, pode
parecer para a sua mente que então a base de infusão realmente não seria lá
grande coisa. Entretanto, por esta explicação você pode entender que não é este
o caso e que tal dificuldade não existe. A respeito dos meios que conectam um
carma a seu efeito, considere o seguinte: em nosso linguajar convencional,
dizemos: “Um tempo atrás eu fiz isto e isto”, e é fato que o agente daquela
ação é um indivíduo. Dizemos isto a partir do ponto de vista de que o indivíduo
é uma continuação do mero eu que desempenhou a ação, mas, se olharmos dentro da
matéria, a ação cessou, e o eu
de agora não é o eu do passado. Ainda assim, temos o pensamento de modo inato e
de fato dizemos: “Eu fiz aquilo”, e isto está de acordo com o fato. A pessoa é,
portanto, proprietária daquela ação. Neste sentido, existe uma conexão entre a
ação e o indivíduo, e este é o elo que se conecta ao futuro efeito daquela
ação, não importando quanto tempo se passe. Visto que segue havendo o continuum
do mero eu para uma pessoa
que desempenhou uma ação e, desse modo, acumulou carma, esta pessoa continua
sendo o eu que acumulou aquele carma; visto que a ação feita anteriormente tem
que frutificar, não existe mais ninguém para quem ela possa frutificar exceto o
indivíduo.
O eu é designado na
dependência de agregados mentais e físicos, e, em termos do sistema tântrico,
ou mântrico, existem níveis grosseiros e sutis desses agregados mentais e
físicos. Do ponto de vista do tantra ioga insuperável, a base final de
designação do eu tem que ser um agregado sutil que esteve junto com o indívido
desde um tempo sem princípio; é um nível sutil da consciência, o continuum que
não tem começo e é ininterrupto, e que eventualmente alcança a realização no
estado de buda. Não existe nenhuma dúvida sobre a possibilidade de mentes
aflitas seguirem para o estado de buda – é claro que não seguem. Nem mesmo os
níveis mais grosseiros de consciência seguem; apenas o nível mais sutil da
consciência avança para o estado de buda. Este nível sutil tem perdurado desde
um tempo sem princípio e continua para sempre. Quando morremos, nossos níveis
de consciência mais grosseiros se dissolvem. Em nosso último dia, na hora de
nossa morte, a derradeira consciência que se manifesta é a mente mais sutil de
clara luz; é esta consciência que faz a conexão com a próxima vida. Neste sentido,
os agregados sutis necessariamente existem continuamente através do tempo.
De acordo
com a Escola da Conseqüência, quando uma ação cessa ou se desintegra, esta desintegração é algo causado; deste modo, o estado de
haver se desintegrado que ocorre após a desintegração é algo causado – é um
fenômeno produzido. A ação estabelece um estado de destrutividade que é um
fenômeno impermanente em si, continuando até o momento da fruição do carma e
produzindo a fruição.
Quanto ao
modo como o eu aparece, existe um tipo genérico de eu
que tem existido desde o tempo sem princípio até o presente, mas com relação a
eus específicos existe um eu qualificado, por exemplo, pela juventude do
indivíduo, e um eu qualificado por estar relacionado a uma vida humana e não a
outro tipo de vida, e assim por diante. Nos referimos, por exemplo, ao eu de
nossa própria juventude: “Oh, eu era um malandro quando era jovem, mas hoje em
dia melhorei um pouco.” Muitas destas distinções são feitas dentro do eu,
algumas genéricas e difusas, outras mais individuais e menos difusas.
Pergunta: Energia material e energia
mental são a mesma?
Resposta: Porque matéria e
consciência são diferentes, em geral parece que a energia associada a elas
deveria ser diferente. A respeito da energia mental, existem muitos níveis mais
grosseiros e mais sutis de consciência; quanto mais grosseiro o nível de uma
consciência, mais relacionado ao corpo atual; ao passo que, quanto mais sutil é
uma consciência, menor é a conexão que tem com este corpo físico grosseiro.
Além disso, os níveis mais sutis da mente são mais poderosos que os níveis mais
grosseiros; por conseguinte, se a pessoa é capaz de utilizá-los, são mais
eficientes para a transformação mental. A fim de discutir diferenças de
energia, deve-se considerar muitos níveis diferentes de matéria e consciência.
Pergunta: Como podemos abandonar a
ignorância inata?
Resposta: Certos tipos de ignorância
podem ser removidos com pouco empenho, mas o tipo de ignorância que é a raiz da
existência cíclica só pode ser removido com um empenho tremendo. De fato, o
tema principal desta série de palestras é como pôr um fim na ignorância. Até
agora, falei sobre a base, o fundamento das práticas. A seguir discutirei os
níveis de prática.
Pergunta: Qual é o caminho mais
hábil para lidar com a raiva e agressão sem se submeter ao agressor ou ficar
raivoso e agressivo?
Resposta: Se você simplesmente
continua deixando a raiva sair e a expressá-la, é muito difícil que isto vá
ajudar. Visto que este comportamento em si promove mais raiva, não trará nenhum
resultado positivo; apenas aumentará os problemas. Sob certas
circunstâncias pode ser necessário adotar uma ação contrária para parar
as más ações de um outro ser, mas acredito que tais medidas possam ser
desempenhadas sem raiva. De fato, a implementação de medidas defensivas é muito
mais efetiva sem raiva do que quando sua mente principal é governada por uma
forte emoção aflitiva, porque sob tal influência você pode não adotar a ação apropriada. A raiva destrói as melhores qualidades
do cérebro humano – julgamento, a capacidade de pensar: “Isto é errado”, e
investigar quais serão as conseqüências temporárias e de longo prazo de uma
ação. É necessário calcular tais circunstâncias antes de adotar uma ação; livre
da raiva, o poder de julgamento é melhor.
É claro
que, se você é sincero e honesto em uma sociedade competitiva, as pessoas podem
tirar vantagem de você em algumas circunstâncias. Se você deixa que alguém faça
isso, esta pessoa estará se envolvendo em uma ação imprópria e acumulando carma
ruim, que prejudicará a ela mesma no futuro. Nestas condições, é admissível,
com uma motivação altruística, adotar uma ação contrária a fim de ajudar a
outra pessoa a evitar os efeitos de sua ação errada no futuro. Por exemplo:
pais sensatos às vezes podem ralhar com seus filhos ou mesmo puni-los sem raiva
nenhuma. Isto é admissível, mas, se o pai fica realmente raivoso e surra o
filho com demasiada força, então sentirá arrependimento no futuro. Entretanto,
com a boa motivação de buscar corrigir um mau comportamento da criança, é
possível reagir de modo adequado ao que a criança precisa naquele momento. As
reações devem ser adotadas neste sentido.
De acordo
com o sistema dos sutras, o uso da raiva não é permitido no caminho espiritual;
entretanto, dentro do sistema tântrico existe a explicação de que é possível
utilizar a raiva no caminho. Neste caso, a motivação fundamental deve ser a
compaixão, mas a motivação temporária é a raiva, e o propósito é utilizar a
força e vivacidade da raiva sem ficar sujeito à sua influência negativa, de
modo que a prática se torne mais efetiva.
Pergunta: É melhor deixar o
potencial da aversão isolado dentro de si mesmo ou realizá-lo e, desse modo,
enfrentá-lo?
Resposta: Existe uma prática a fim
de identificar a aversão – como o objeto detestado aparece, como a mente reage,
qual é a natureza da aversão e assim por diante –, na qual a pessoa permite que
a mente gere aversão e então a observa, mas isto não significa manifestar
aversão externamente e brigar com outra pessoa. Se existe o perigo de você ir
para a rua com uma atitude raivosa, é melhor trancar a porta – com você do lado
de dentro – e então gerar raiva e examiná-la!
Para
certos tipos de problemas mentais, tais como depressão[56] e
algumas outras crises mentais, pode ser útil deixás-la sair falando a respeito
delas; isto reduz a sensação desconfortável interna. Para outros tipos de
crises mentais, tais como a raiva ou forte desejo, quanto mais você as
expressar, mais elas ocorrerão; nestes tipos, a coibição fará com que
enfraqueçam. Entretanto, coibir não significa apenas que, quando você
desenvolver raiva ou desejo em alto grau, você tentará controlar isso naquele
momento, porque aí é muito difícil. Em vez disso, na prática diária você deve
refletir continuamente sobre os benefícios e vantagens da compaixão, amor,
bondade e assim por diante, e refletir sobre as desvantagens – as falhas – da raiva. Tal contemplação ponderada e contínua e o
desenvolvimento do apreço pela compaixão e pelo amor, por meio dos quais
continuamente revive-se e se aumenta este apreço, têm o efeito de criar
desagrado pela aversão e respeito pelo amor. Através da força disto, mesmo
quando você fica raivoso, a expressão da raiva muda de aspecto e diminui em
força. Este é o modo de praticar; à medida que o tempo passa, as atitudes
mentais podem gradualmente mudar.
Pergunta: Como é possível para mim
fazer um esforço em minha prática de meditação quando não existe um eu?
Resposta: Muito provavelmente, este
é o mal-entendido que mencionei antes: interpretar erradamente o vazio da
existência inerente como um vazio da existência em si, de modo que parece que
não existe nada. Isto está errado. Se você acha que você não existe, então
espete um alfinete no seu dedo! Mesmo que você não possa identificar o eu, é
claro que ele existe.
Pergunta: Recebi muitos ensinamentos
e iniciações de meu guru, mas agora perdi um pouco da fé nele. O que devo
fazer?
Resposta: Este é um sinal de que
você não foi cuidadoso no começo. Se fé sozinha fosse suficiente, não haveria
razão para o Buda ter descrito as qualificações de um guru com grande detalhe
nas explicações da disciplina, nos conjuntos de discursos e no mantra secreto.
Diz-se que é muito importante para o
guru ou lama e para o estudante investigarem um ao outro. Ainda assim, esta
situação sobre a qual você está falando de fato ocorre; devemos tomar tais
experiências como avisos e perceber que precisamos de uma base mais confiável –
é importante analisar, investigar. Geralmente digo às pessoas que no começo, ao
receber ensinamentos, não é necessário considerar o professor como seu guru; em
vez disso, simplesmente considera-se o professor como um amigo religioso de
quem você está recebendo ensinamentos. Então, se você examinar as qualificações
da pessoa e adquirir verdadeira convicção à medida que o tempo passar, poderá
considerá-la seu guru. Este é um bom procedimento.
Agora,
para abordar sua pergunta sobre o que fazer: se a situação é de que primeiro você tinha fé e agora não
consegue gerar fé, em vez de vir a não gostar da pessoa, seria melhor
desenvolver uma atitude neutra. Outra técnica útil é refletir sobre o fato de
que no budismo, e particularmente no Grande Veículo, mesmo nosso inimigo é
considerado um dos melhores gurus. Muito embora um inimigo possa fazer mal a
você deliberadamente, é uma prática
básica desenvolver profundo respeito e um sentimento de gratidão por aquela
pessoa. Se num caso desses é assim, no seu é mais ainda, visto que seu guru
muito provavelmente não está causando mal a você deliberadamente. Olhar a
situação deste modo pode ajudar sua atitude mental.
Pergunta: Qual sua
opinião sobre estudantes ocidentais de budismo fazerem a prática das
deidades protetoras?
Resposta: Este é um tema complicado.
Se alguém pratica ou não religião é por decisão própria, e o que alguém faz
individualmente é um assunto que só diz respeito a ele. Entretanto, é
importante entender o contexto de tal prática. Quando olhamos a história desta
tradição, descobrimos que a teoria das deidades protetoras vem da prática
tântrica. Nos sistemas dos sutras, com exceção de uma menção ocasional dos
quatro grandes reis, não há menção a deidades além daquelas como Manjushri,
Avalokiteshvara, Tara, Maitreya e Samantabhadra. No Ornament for Clear Realization (Ornamento para a Clara Realização),
de Maitreya, no tema do treinamento em série das seis presenças mentais, existe
uma prática de presença mental de deuses ou deidades, e de fato é possível que
estas deidades, bem como os quatro grandes reis, apareçam dentro desta prática.
Entretanto, o contexto ali é estar plenamente consciente delas como testemunhas
de nossas próprias ações.
Por outro lado, muitos textos
tântricos mencionam deidades protetoras. Nos sistemas tântricos, um praticante
de uma deidade protetora deve primeiro receber iniciação e depois atingir um
profundo estado de meditação, no qual as práticas de visualização do ioga da
deidade eventualmente o deixam qualificado para conduzir esta prática. Enquanto
imagina a si mesmo como uma deidade numa mandala, o praticante visualiza a
deidade protetora à sua frente e dá a ele ou ela uma ordem que tem aplicação em
um campo de ação específico. Portanto, se você quer se ocupar com a prática de
uma deidade protetora, primeiro você mesmo deve estar qualificado.
No Tibete, no passado, muitas pessoas fizeram o oposto, negligenciando
completamente sua própria prática e simplesmente correndo atrás de deidades
protetoras. Isto é absolutamente errado. A pessoa deve obter a clara aparência
de si mesma como uma figura
divina, com uma total sensação de si mesma como sendo aquela deidade, em
conseqüência do que o protetor fica sob seu controle; a prática não é em
absoluto uma questão do protetor controlar a pessoa.
De fato, o
melhor protetor é o Buda, sua doutrina e a comunidade espiritual. Num sentido
mais profundo, o verdadeiro protetor e o verdadeiro destruidor são o seu
próprio carma. Se você perguntar o que realmente ajuda, são as suas próprias
ações virtuosas. Se você perguntar o que realmente prejudica, são as suas
próprias ações não-virtuosas. Isto é que é o importante.
Pergunta: O desejo deve levar sempre
ao desejo?
Resposta: Em tibetano existe uma
distinção clara entre ’dod pa e ’dod chags; o primeiro significa desejo,
vontade, carência, que pode ser razoável ou não, ao passo que o segundo é
necessariamente uma emoção aflitiva. O desejo racional existe até no continuum
de um destruidor do adversário[57], alguém
que foi além da existência cíclica. Apesar desta diferença verbal, durante os
estágios iniciais da prática, quando ainda se é um ser comum, é difícil
distinguir entre o simples desejo e o desejo aflitivo, e se pode até ter fé
misturada com a concepção de existência inerente, ou compaixão misturada com a
concepção de existência inerente, nas quais o indivíduo e o objeto da fé ou da
compaixão são erradamente considerados como estabelecidos por suas próprias
características. É difícil distinguir isto no começo, mas pela manutenção da
prática básica pode-se gradualmente identificar os fatores de ignorância e as
emoções aflitivas, fazendo desse modo uma prática cada vez mais pura.
3 – Níveis do Caminho
Os doze elos do
surgimento dependente de uma vida na existência cíclica representam nossa
situação básica – emoções aflitivas, ações contaminadas e sofrimento. Pode a
mente ser separada de tal ignorância ou não? Isto precisa ser examinado.
Qualquer tipo de consciência que possamos considerar está sujeita a
condicionamento, com familiarização. Contudo, não importa o quanto uma mente
equivocada aumente em força devido ao hábito, isto não pode aumentar
ilimitadamente porque não possui um embasamento válido, garantido por uma
cognição correta. Por outro lado, uma consciência com embasamento válido,
embora possa não parecer muito poderosa no presente, devido a não estarmos
habituados com ela, pode ser continuamente fortalecida através do
condicionamento. Além disso, visto que está validamente embasada, pode vir a se
tornar ilimitada.
Diz-se que as qualidades
mentais possuem uma base estável, visto que a consciência, na qual estão
embasadas, não tem princípio nem fim. Desde que se continue praticando, as
qualidades mentais não requerem a renovação do esforço dispendido para
adquiri-las inicialmente; por isso, sua força pode ser gradualmente aumentada.
Uma vez que uma qualidade mental está com uma certa força na mente, não se
precisa exercer novamente aquele grau de força para trazê-la àquele nível; por
isso, o treinamento adicional irá aumentar aquela qualidade.
Visto que a raiz do sofrimento
é a ignorância, o sofrimento provém de uma mente indomada. De modo
correspondente, visto que o alívio para o sofrimento vem de purificar e
destruir a ignorância que está na mente, este alívio provém de domar a mente.
Não domar a mente leva ao sofrimento, ao passo que domar a mente leva à
felicidade. Visto que o treinador é um tipo de mente, e visto que o que está
sendo treinado também é a mente, é preciso tornar-se perito em psicologia.
Deste modo, os textos budistas devotam uma grande atenção à discussão da
consciência.
O tipo mais indomado de
mente – o nível mais grosseiro da mente, que percebe seus objetos erroneamente
– é chamado de conhecimento errado.
Então, quando a mente se acostuma com os ensinamentos e tudo o mais,
converte-se para o nível da dúvida.
Dentro da dúvida existem três níveis diferentes: o mais baixo é o da dúvida que
tende para o que é errado; o médio é o da dúvida equivalente, que oscila entre
o que é errado e o que é certo; e o nível mais elevado é o da dúvida que tende
para o que é certo. Através da prática, a dúvida é gradualmente convertida ao
nível chamado de consciência que presume
corretamente, o qual, através de métodos de treinamento contínuos, tais
como refletir sobre as causas, transforma-se em inferência. Acostumando-se ao entendimento inferido e
desenvolvendo-se uma crescente aparência clara do objeto que está sendo
entendido, alcança-se a percepção direta
daquele objeto[58].
A fim de superar pontos
de vista errados que sustentam unidirecionalmente o que é contrário aos fatos, é preciso refletir sobre as conseqüências absurdas de tais
pontos de vista. Por esta razão, os textos budistas sobre lógica apresentam
muitas formas de conseqüências absurdas, que rompem a força da adesão a pontos
de vista errados. No momento em que se chega ao nível da dúvida, é possível
fazer uso de argumentações silogísticas destinadas a gerar um entendimento
inferido. Por isto é importante estudar os livros dos dois pilares da lógica,
Dignaga e Dharmakirti, a fim de desenvolver e aumentar a sabedoria de
diferenciar os fenômenos. No processo, um praticante gradualmente gera a
sabedoria surgida do ouvir, a sabedoria surgida do pensar, e a sabedoria
surgida da meditação.
NÍVEIS DE PRÁTICA
Com este tipo de
prática, torna-se gradualmente visível que de fato é possível transformar a
consciência. A partir desta perspectiva, pode-se desenvolver convicção na
eficácia da prática de não-violência. O primeiro nível da prática de
não-violência é impedir a si mesmo de envolver-se em atividades que causem mal
a outros; o segundo é implementar antídotos para as emoções aflitivas que
comandam as más ações; e o terceiro é superar até mesmo as predisposições
anteriormente estabelecidas pelas emoções aflitivas. Refletindo-se sobre como
as falhas indesejadas da existência cíclica provêm da ignorância, conclui-se
que se deve praticar estes três níveis de não-violência – primeiro restringindo
as más atividades das emoções aflitivas, depois restringindo as próprias
emoções aflitivas, e finalmente restringindo as predisposições estabelecidas
pelas emoções aflitivas.
Para remover as
predisposições latentes, é necessário primeiro extinguir as emoções aflitivas,
porque sem isto não existe possibilidade de se desembaraçar das predisposições
estabelecidas na mente por elas. O estado de haver removido inteiramente as
emoções aflitivas, bem como suas predisposições, é chamado de estado de buda,
ao passo que a mera remoção das emoções aflitivas é o estágio de um arhan, um destruidor do adversário.
A destruição das emoções
aflitivas e das predisposições estabelecidas por elas é muito parecida com um
empenho ofensivo; assim, é importante primeiro empenhar-se numa linha de ação
defensiva, assegurando-se de que não se cairá sob o domínio de quaisquer destas
emoções contraproducentes. Por isto é muito importante inicialmente restringir
as más ações de corpo e fala. A meta final é a remoção de todas as emoções
aflitivas, junto com suas predisposições, ou seja, atingir o estado de buda,
mas, ao implementar os meios para realizar esta meta, deve-se inicialmente
evitar de cair sob a influência das más ações.
Quando se age por um
motivo egoísta e se comete ações erradas, tais como matar, roubar, praticar
adultério, mentir, criar discórdia, falar de modo grosseiro e tagarelar
insensatamente, causa-se mal não só aos outros, mas, por fim, traz-se
sofrimento a si mesmo. Desse modo, sem sequer considerar o que a violência
causa aos outros – considerando apenas a violência infligida a si mesmo em
termos de causa e efeito das ações que levam à existência cíclica –, pode-se
ver que é necessário restringir as más ações de corpo e fala. Ao pensar neste
sentido, desenvolve-se a convicção de que causar mal aos outros traz perdas
para si mesmo. Deve-se refletir sobre isso repetidamente.
Também é útil refletir
sobre a impermanência. Não importa quão longa seja nossa vida, há um limite
para ela, não há? Quando pensamos sobre a formação deste universo e sobre o
tempo geológico, a vida de um humano é muito curta, e não há nenhuma garantia
de que poderemos nos manter vivos sequer pelo período normal de uma vida
humana. Sob tais circunstâncias, é insensato concentrar toda a energia, tanto
mental quanto física, em acumular dinheiro e posses. Visto que é muito claro
que riqueza é útil somente para esta vida, é conveniente reduzir a extrema
ganância.
Neste nível do
ensinamento não existe nenhuma referência a amor e compaixão por outras
pessoas; em vez disso, a enfâse está em perceber que as más ações são prejudiciais
até do ponto de vista do bem-estar próprio. Além disso, está claro pela atual
situação do mundo que não há progresso material que possa preencher o que os
seres estão buscando. Progresso material por si só não resolve certos problemas
em alguns campos, e às vezes desenvolve novos problemas. Sabemos por
experiência própria que o progresso material por si só não é suficiente.
Novamente, neste
estágio, é proveitoso refletir sobre a utilidade de ter obtido a condição de
ser humano. Considerando-se como o corpo humano pode ser usado de modo
positivo, entende-se que é realmente lamentável usá-lo para um propósito
nocivo.
Além disso, para algumas
pessoas é útil refletir sobre os sofrimentos dos três níveis de transmigração
ruins: seres dos infernos, fantasmas famintos e animais. Se é difícil de
acreditar que existam seres dos infernos, considerem-se os muitos sofrimentos
que os animais suportam. Podemos ver seus múltiplos sofrimentos com nossos
próprios olhos, mas devemos considerar se, nascidos naquela espécie de
situação, seríamos capazes de agüentar tal sofrimento. Podemos decidir que já
temos em nossas mentes muitas predisposições estabelecidas por ações
não-meritórias – as quais foram motivadas pela ignorância sem princípio –, o
que resultará em renascimento como animais. Até aqui, apenas olhamos para os
animais, mas agora devemos imaginar a nós mesmos vivendo como um deles; devemos
considerar se poderíamos suportar ou não. Quando pensamos deste modo,
desenvolvemos a sensação de não querer renascer como um animal. O que ocasiona
estes resultados são atos prejudiciais e violentos contra os outros.
Este é o primeiro nível
de reflexão sobre as falhas da violência e a necessidade de restringir as más
ações de corpo e fala. Contudo, não há nenhuma garantia de que, mesmo que se
restrinja estas ações durante esta vida, não se ficará sob a influência delas
na próxima vida. Logo, a melhor defesa é praticar o nível seguinte de
não-violência, que pode ser chamado de compromisso ativo.
As emoções aflitivas que
nos ocasionam todos estes problemas são aquelas mencionadas nos doze elos do
surgimento dependente. Sua raiz é a ignorância que concebe os objetos como
inerentemente existentes; a força desta ignorância induz ao desejo e à aversão,
bem como a muitos outros tipos de emoção aflitiva, tais como orgulho, dúvida,
inimizade, ciúme e assim por diante. Estes são verdadeiros causadores de
problemas. Quando analisamos os problemas e crises do mundo atual, ou em nível
internacional ou na família, fica claro que são relacionados à nossa raiva,
ciúme e desejo.
Consideremos nosso
pretenso “inimigo”, aquele por quem sentimos um grande ódio. Devido ao fato da
mente desta pessoa ser indomada, ela se empenha em atividades para nos causar
mal, e é por isto que a consideramos um inimigo. Se esta raiva – o desejo de
causar mal – estivesse na verdadeira natureza da pessoa, não se alteraria de
modo algum, mas não é este o caso, a aversão não está assentada na natureza
daquela pessoa. Em vez disso, exatamente como nós mesmos, a pessoa apresenta
mau comportamento sob a influência de uma emoção aflitiva gerada por ela mesma.
Nós mesmos nos envolvemos em mau comportamento, não é? Ainda assim, não
pensamos o tempo todo que somos completamente maus. A situação é a mesma com
esta outra pessoa que consideramos um inimigo. Conseqüentemente, o verdadeiro
causador de problemas não é a pessoa, mas sua emoção aflitiva. O verdadeiro
inimigo é um fator interno.
Como praticantes, nossa
verdadeira batalha deve ter lugar dentro de nós mesmos. Vai levar tempo, mas é
o único jeito de minimizar as qualidades humanas contraproducentes. Através de
tal prática, obteremos mais paz mental, não apenas no futuro distante da
próxima vida, mas dia-a-dia.
A fim de gerar paz
mental, é crucial questionar se as emoções aflitivas podem ser superadas. Neste
ponto, está se treinando para superar as emoções aflitivas, e para fazer isto é
necessário destruir sua raiz, que é a ignorância que concebe existência
inerente. Para fazer isto, é necessário gerar uma consciência argumentadora,
que percebe os objetos do modo exatamente oposto ao que perceberíamos com a
ignorância. Somente tal consciência pode servir de antídoto para as emoções
aflitivas.
A ignorância concebe os
fenômenos como existindo em si e por si mesmos, ao passo que os objetos na verdade não existem deste
modo; para superar esta ignorância é necessário refutar este objeto concebido –
a existência inerente – com argumentação. Devemos perceber que os objetos não
existem inerentemente em si e por si mesmos.
A fim de desenvolver a
percepção da vacuidade capaz de remover esta ignorância, não se pode
simplesmente gerar uma consciência inferida racional que percebe a vacuidade.
Junto com isto, deve-se trazer este entendimento inferido para o nível da
percepção direta não-conceitual da vacuidade da existência inerente. A fim de
fazer isto, é necessário ter a ajuda de uma concentração profunda, com a qual é
possível desenvolver samadhi, ou estabilização meditativa, a união de
permanência serena e discernimento especial. Por isto diz-se que, a fim de
gerar a consciência sábia constituída por discernimento especial na vacuidade,
é necessário primeiro gerar a permanência serena na mente – tranqüilização e
focalização da consciência. É proveitoso desenvolver a capacidade da mente de
permanecer no objeto de observação de maneira alerta e clara, e, ao desenvolver
vívida unidirecionalidade da mente, a mente torna-se gradualmente mais aguçada,
mais alerta e mais capaz. Estas são as razões para as detalhadas apresentações
sobre como atingir a estabilização meditativa.
Alguém que deseje
atingir a permanência serena mental não pode viver como vivemos hoje, mas deve
ficar em um local isolado, onde possa cultivar a prática contínua por um longo
período de tempo. Além disso, afirma-se que o processo é mais fácil se a pessoa
trabalha para alcançar a permanência serena em conexão com práticas tântricas.
Contudo, para aqueles que não são capazes de ou não estão prontos para uma
prática tão intensa, é proveitoso levantar de manhã cedo e de imediato usar a
mente – enquanto ela ainda está clara – para investigar a natureza ou entidade
da própria mente, sem pensar sobre outros assuntos. Esta prática ajuda a manter
a mente alerta, auxiliando assim a pessoa ao longo do resto do dia.
A fim de alcançar o
ponto em que até as distrações sutis internas foram pacificadas e a mente
permanece vívida e continuamente no objeto de observação, deve-se primeiro
restringir as distrações grosseiras, as más ações vulgares de corpo e fala, que
dispersam a mente por objetos de desejo e aversão. Para isto, é preciso treinar
a ética. O sistema budista de ética contém dois níveis – um para pessoas que
vivem em família ou leigos, e outro para os que deixaram a vida familiar. Mesmo
dentro do nível de ética das pessoas leigas existem diversos estágios. Todas
estas variações ocorrem porque o Buda descreveu níveis de prática de acordo com
as capacidades variáveis das pessoas. É crucial seguir um caminho de acordo com
a sua própria disposição mental; só então se obterá resultados satisfatórios.
Porque os seres
sencientes possuem muitas e variadas disposições e interesses, o Buda descreveu
muitos níveis diferentes de prática. Reconhecer isto é útil não apenas por se
obter uma perspectiva apropriada dos ensinamentos budistas, mas também por
desenvolver respeito do fundo do coração pelos diferentes tipos de sistemas
religiosos presentes neste mundo, visto que todos são benéficos para aqueles
que neles acreditam. Muito embora as diferenças entre as filosofias sejam
tremendas – muitas vezes fundamentais –, ainda assim pode-se ver que aquelas
filosofias são apropriadas e benéficas na condução da vida das pessoas, no que
diz respeito a seus vários interesses e disposições. Pelo entendimento disto,
surgirá um profundo respeito. Hoje precisamos deste tipo de respeito e
entendimento mútuos.
Um grande número de
homens e mulheres ocidentais tornaram-se monges e freiras. Eu respeito a
decisão deles de serem ordenados, mas não deve haver pressa para se fazer os
votos. É preciso lembrar que, visto que o Buda descreveu práticas de acordo com
vários níveis diferentes de capacidade, é crítico determinar qual o seu próprio
nível e avançar gradualmente dentro dele. É importante que aqueles ocidentais
que desejam sinceramente praticar o budismo permaneçam bons cidadãos e membros
da sociedade – permanecendo em suas próprias comunidades, sem vir a se isolar.
É importante adotar a essência dos
ensinamentos do Buda, reconhecendo que o budismo na forma como é praticado
pelos tibetanos é influenciado pela cultura tibetana; seria um equívoco por
parte dos ocidentais tentar praticar uma forma tibetanizada de budismo.
Tentando tibetanizar por completo sua prática, os budistas ocidentais podem
encontrar dificuldades, visto que tal sistema não combina com suas próprias
mentes e torna difícil a interação com a sociedade. Hoje em dia, algumas
pessoas agem como tibetanos até o ponto de manterem suas cabeças abaixadas de uma
forma abjeta. Em vez de copiar tais modelos culturais, deve-se permanecer com
seus próprios modelos culturais e implementar o ensinamento do Buda se alguma
coisa útil e eficaz puder ser encontrada nele. A pessoa deve trabalhar em sua
profissão como um membro da comunidade. Embora vários centros que já estão
estabelecidos sejam úteis e devam ser mantidos, não é necessário que alguém que
deseje praticar o budismo sequer se ligue a um centro específico.
Até aqui discutimos os
dois primeiros níveis da prática, de lutar contra as emoções aflitivas. A
seguir iremos apreciar o terceiro nível: como desenvolver compaixão a fim de
destruir as obstruções à onisciência – as predisposições estabelecidas pelas
emoções aflitivas. Inicialmente, treina-se a ética, que forma a base de toda a
prática posterior; então, através da prática da estabilização meditativa, a
mente torna-se poderosamente focada e eficiente em meditar sobre a vacuidade.
Depois, eventualmente supera-se as obstruções à onisciência, constituídas pelas
predisposições estabelecidas pela concepção da existência inerente. Primeiro
são superadas as concepções adquiridas intelectualmente, e depois as obstruções
inatas são gradualmente removidas. Dentro das obstruções inatas existem muitos
níveis de emoções aflitivas para superar, mas finalmente a pessoa se
desembaraça por completo da ignorância que é a raiz de todas as emoções
aflitivas – a concepção de existência inerente. Esta ignorância e todas as
emoções aflitivas por ela induzidas são extintas, ou pacificadas, na esfera da
realidade. A sabedoria que percebe a vacuidade diretamente derruba a ignorância
que concebe a existência inerente, e a extinção desta ignorância na esfera da
realidade é chamada de liberação. Conforme o protetor Nagarjuna diz em seu Treatise on the Middle (Tratado sobre o
Meio):
Quando as ações e as
emoções aflitivas cessam,
há a liberação.
As ações e as emoções
aflitivas surgem das concepções falsas,
que por sua vez surgem das elaborações fictícias.
As elaborações fictícias
cessam na vacuidade.[59]
Ações contaminadas e
emoções aflitivas são produzidas a partir de conceitualidade errada, que é
produzida a partir de elaborações da concepção de existência inerente. Estas
elaborações conceituais são
cessadas através da vacuidade[60], ou
estas elaborações são cessadas na vacuidade[61] – a
linha final é interpretada de ambos os modos. O primeiro significa que
elaborações conceituais são
cessadas através do cultivo da visão
que percebe a vacuidade. Haja visto que isto no qual elas são extintas é a
realidade da vacuidade em si, aqui vacuidade também é interpretada como aquilo dentro do qual cessam as elaborações
fictícias sobre a concepção de existência inerente. Aquela realidade – a
vacuidade dentro da qual todas as emoções aflitivas foram extintas através do
antídoto da sabedoria – é a verdadeira cessação das fontes de sofrimento: a
liberação.
PERGUNTAS
Pergunta: Ouvi
dizer que ficar sonolento durante a meditação sobre a respiração pode indicar
que este método específico não é uma prática adequada, e que se deve buscar um
método alternativo. Por favor, comente isto.
Resposta: Isto
acontece com freqüência quando as pessoas meditam, elas ficam sonolentas ou até
pegam no sono; por esse motivo, para algumas pessoas com insônia, eu aconselho
até mesmo que recitem mantras!
Durante a meditação, a
mente pode ficar sob a influência da letargia, uma indolência de mente e corpo
que leva à sonolência e até o sono. Isto deve-se ao fato de que o modo de
apreensão da mente ficou muito frouxo; uma técnica neutralizante é deixar a
mente mais retesada, por meio do que ela se revitaliza. Se isto não funciona,
deve-se então imaginar alguma coisa brilhante ou prestar atenção nos detalhes
do objeto sobre o qual se está meditando, visto que a letargia é causada pela
mente estar excessivamente retirada para dentro. Se isto também não funcionar,
pode-se abandonar a sessão e olhar ao longe, talvez para uma vista panorâmica,
ou lavar o rosto, ou sair para o ar fresco.
Se você fica
extraordinariamente sonolento quando se concentra na respiração, mas não
experimenta isto quando se concentra em qualquer outro objeto, pode ser um
problema físico. Neste caso, pode ser adequado trocar de objeto. Pode ser que
ajude meditar sobre um certo elemento ou um certo tipo de luz em um centro
canalizador específico. Também pode ser aconselhável, enquanto se contempla a
respiração, meditar sobre uma luz na parte superior do corpo. Em geral, diz-se
que, quando a mente esmorece e se torna frouxa, é recomendável mover o objeto
para cima, e, quando a mente fica excitada, é recomendável mover o objeto para
baixo. O remédio tem que ser preparado de acordo com a situação específica do
meditante.
Pergunta: Qual
seu conselho para os pais de uma criança de sete anos de idade que tem câncer
no cérebro? Ela está se submetendo a tratamento em Londres neste momento.
Resposta: Não há
dúvida de que os pais usarão todos os meios para obter uma cura médica. Além
disso, existem casos em que é útil empregar técnicas meditativas tais como
repetição de mantras e uso de certas visualizações, mas se elas vão ser
eficientes de imediato vai depender de uma grande quantidade de fatores. Além
disso, no sistema budista, quando se tentou outros métodos e eles não foram
eficientes, é mais benéfico refletir sobre a inevitabilidade da causa e efeito
das ações – carma. Aqueles que acreditam num criador podem pensar em tais
dificuldades como sendo os desígnios de Deus e obter conforto a partir deste
modo de ver as coisas. O fator mais importante é que a criancinha deve permanecer
mentalmente em paz. Além destes pontos, é difícil dar sugestões. Diz-se que,
quando o efeito de uma ação está no estágio de fruição manifesta, é muito
difícil revertê-lo.
Pergunta:
Dizem-nos que o progresso ao longo do caminho espiritual depende da fé. Qual é
a causa substancial da fé?
Resposta: Em
geral, a fé é de três tipos – a fé do claro deleite, a fé de desejar alcançar
uma qualidade benéfica e a fé da convicção. No que diz respeito às principais
causas da fé, é útil refletir sobre as razões
que promovem a convicção e, além disso, desenvolver a verdadeira experiência por si mesmo. Quanto mais
você pensa sobre a razão, mais sua avaliação aumenta; isto, por sua vez, induz
à experiência, por meio da qual a fé se torna mais firme.
Dentro da fé e dos
outros tipos de experiência espiritual, existem basicamente dois tipos – um que
se sucede por causas adventícias, precipitando-se de repente sobre a pessoa, e
outro que se sucede pelo emprego de esforço ao longo de um grande período de
tempo. O último é mais estável, muito embora as experiências adventícias sejam
benéficas. Quando você tem uma experiência repentina, invulgar e profunda, é
proveitoso apoderar-se dela e sustentá-la pelo esforço a partir daquele
momento.
Pergunta: Para
mim é difícil compreender todos os níveis diferentes de prática. Qual seria uma
prática básica e simples que eu poderia ter em mente?
Resposta: Em
resumo, é o que eu costumo dizer: na melhor das hipóteses, se você é capaz de
fazê-lo, então ajude os outros; e se você não é capaz de fazê-lo, pelo menos
não cause mal aos outros. Esta é a prática principal. A essência do ensinamento
do Veículo dos Ouvintes é abster-se de causar mal aos outros; a essência do
ensinamento do Grande Veículo é o altruísmo – ajudar os outros. Em termos de
estágio de prática, no primeiro nível a pessoa se abstém das más ações no
contexto de evitar as dez não-virtudes e então faz votos relativos àquele
nível; mais tarde a pessoa desempenha mais práticas altruísticas e faz votos
relacionados a este nível mais amplo.
Pergunta: É
possível conciliar o amor especial por uma pessoa, como no casamento, com a
equanimidade? Ou só é possível desenvolver a equanimidade estando completamente
desapegado de qualquer envolvimento pessoal?
Resposta:
Durante os estágios iniciais da prática existem diferentes níveis de amor –
mais forte por aqueles que são, no momento, mais próximos, e mais fraco por
aqueles que não são tão próximos. Entretanto, à medida que a pessoa pratica e
se desenvolve, o amor torna-se igual em força em relação a todo e qualquer ser.
Entretanto, tal amor todo-abrangente e equânime não pode
aparecer de imediato, deve ser desenvolvido gradualmente. Como eu estava
dizendo antes, nos estágios iniciais de prática, amor, compaixão, fé e tudo o
mais estão na maioria das vezes misturados com pelo menos um pouquinho de
emoções aflitivas.
Pergunta: Se um
pensamento benéfico é precedido por uma ação maléfica, qual deles possui maior
efeito cármico?
Resposta: O
efeito depende tanto do tipo de ação feito no momento de execução da ação
quanto do grau da motivação anterior ao envolvimento na ação – quão vasto é em
termos de campo de motivação. Existem casos nos quais a motivação, por ser
poderosa e vasta, vem a ser mais forte em efeito, e outros casos nos quais a
real execução da ação vem a ser mais forte devido à situação – o objeto e a
ocasião.
Pergunta: Muitos
budistas acham perturbador ouvir sobre professores budistas que quebram certos
preceitos regularmente, ao dizerem, por exemplo, que é admissível beber álcool,
coabitar com membros da comunidade espiritual e assim por diante. Existem
quaisquer circunstâncias sob as quais estes preceitos possam ser quebrados?
Resposta: Está
dito nas escrituras do Veículo do Bodhisattva que, para o amadurecimento do
continuum mental da pessoa existe a prática das seis perfeições – generosidade,
ética, paciência, esforço, concentração e sabedoria –, e para o amadurecimento
do continuum dos outros existem os quatro meios de reunir estudantes – dar
coisas materiais aos estudantes; falar agradavelmente, o que significa ensinar
como obter vidas melhores dentro da existência cíclica e como eventualmente
deixar a existência cíclica; fazer com que os estudantes adotem na prática o
que é útil e descartem de seu comportamento o que é contraproducente; e
praticar tudo o que se ensina aos outros. Portanto, o que alguém ensina aos
outros, esse alguém também
deve praticar. Usando o bom senso podemos ver que não é apropriado explicar
práticas para outras pessoas e depois fazer algo diferente. Para ser franco,
quando há contradição entre o que uma pessoa ensina e o que ela pratica,
significa que esta pessoa não tem a totalidade das qualificações de um guia
espiritual.
Diz-se que é importante
para um estudante entender as qualificações de um guru descritas nas escrituras
do Buda sobre disciplina, nos discursos e no tantra antes de fazer uma conexão
religiosa com alguém como seu professor, e analisar se a pessoa tem ou não
estas qualificações. Além disso, a pessoa que deseja tornar-se lama, ensinando os
outros, deve entender estas qualificações e trabalhar para preenchê-las.
No sistema dos tantras
existe um procedimento para grandes praticantes, que estão em um nível muito
elevado de realização, de se comportar de modo incomum. Diz-que a linha
limítrofe para se envolver nestas atividades incomuns é quando o praticante
“alcançou a capacidade”. Qual é o significado de ter alcançado capacidade?
Padma Gar-bo[62],
grande erudito e praticante Druk-ba Ga-gyu-ba, disse que isso significa que o
iogue alcançou o ponto em que, através do poder do ioga, ele é capaz de superar
a falta de fé que causaria nos outros pela manifestação daquelas atividades.
Por exemplo: o grande pandita Tilopa, apesar de exibir muitos modos de
comportamento incomuns para Naropa, era totalmente capaz de superar a falta de
fé do seu discípulo. Assim, ações incomuns podem ser feitas somente depois de
ter alcançado tal capacidade. Por outro lado, se um lama que não tem tal
capacidade ainda assim tenta legitimar seu comportamento irregular, isto apenas
indica que ele está contra a parede.
Pergunta:
Poderia fazer o favor de explicar a natureza da conexão entre uma ação
completada há muitas vidas e seu resultado cármico quando experimentado através
de um desastre natural, tal como ser atingido por um raio? Nossa consciência
atual, ou fluxo mental, afeta ou cria o raio?
Resposta: A
respeito do carma, é relativamente fácil de entender através de análise
racional que em geral uma ação virtuosa levará a um efeito agradável por causa
da similaridade da natureza entre causa e efeito. Entretanto, quando se
considera uma ação específica num momento específico, que cria um efeito
específico num momento específico, estes fatores são extremamente sutis e, por
isso, difíceis de entender. Com relação ao exemplo de ser atingido por um raio,
existem, conforme eu mencionei antes, quatro procedimentos para pesquisar ou
investigar os objetos. Um deles é examinar a natureza de um objeto que não é
criado pelo carma, mas que apenas é assim naturalmente, como o calor e a combustão
que são a natureza genuína do fogo e a umidade e fluidez que são a natureza
genuína da água. Similarmente, o raio é produzido através das maquinações dos
elementos do sistema deste mundo, mas o fato de que alguém estivesse no local
onde o raio caiu – que alguém se deparasse com esta circunstância particular –
é de fato devido ao carma. Muitas distinções como essa precisam ser feitas.
Pergunta: Como
bons budistas, que estão comprometidos em não matar, desfrutam alegremente dos
resultados de matanças, comendo carne, aves e peixe?
Resposta:
Este é um ponto relevante. Em geral, nas escrituras budistas sobre disciplina,
não está proibido comer carne. Além disso, monges e freiras são pessoas que, de
certo modo, são pedintes que mendigam comida, e assim, como estão mendigando,
não expõem uma preferência tal como: “Gostaria deste e daquele tipo de comida.”
Há mais de quinze anos, discuti esse assunto com um monge do Sri Lanka que
disse que, em termos estritos, por causa disso, os monges e freiras budistas não
são necessariamente nem vegetarianos, nem não-vegetarianos.
No Veículo do
Bodhisattva, a ênfase geral está em ser vegetariano; não comer carne é
geralmente considerado preferível, e de fato algumas comunidades budistas
japonesas são estritamente vegetarianas. Acho que esta é a prática adequada.
Então, no Veículo do Tantra, os três grupos inferiores de tantra – ação,
desempenho e ioga – proibem comer carne, mas no tantra ioga insuperável não
existe a proibição de comer carne.
Estas são
as explicações gerais oferecidas pelas escrituras sobre disciplina, o Veículo
do Sutra e o Veículo do Mantra. Mais especificamente, é inadequado ter um
animal morto para si. Por exemplo, num mercado de uma cidade grande, a carne já
está disponível para ser comprada e comida, mas num lugar onde não há carne
disponível não é adequado dizer: “Quero carne.”
Contudo, o melhor
caminho é ser vegetariano. Eu mesmo tentei me tornar vegetariano em 1965 e
assim permaneci por uns 22 ou 23 meses. Então contraí uma severa icterícia, e
fui aconselhado por meu médico a abandonar o vegetarianismo. Para aquelas
pessoas que podem seguir o vegetarianismo estrito, isto é o melhor. Fiquei
profundamente impressionado outro dia quando ouvi na rádio BBC que o número de
vegetarianos deste país (Inglaterra)
está crescendo. Esta é uma boa notícia.
Pergunta: Foi
dito que dar vazão à raiva não era uma boa prática. Presumo que isto signifique
que não é bom expressar raiva para a pessoa que é objeto desta raiva.
Entretanto, alguns sistemas de psicologia defendem a expressão da raiva em um
outro objeto, tal como um travesseiro ou parede, para liberar a energia que
reside na pessoa raivosa. Esta técnica é útil ou prejudicial?
Resposta: Em
princípio não é bom expressar ou dar vazão à aversão de modo algum. Todavia, se
você não se dá ao trabalho de implementar um antídoto, tal como cultivar a
paciência e o amor, a raiva crescerá. Desse modo, em princípio é melhor tentar
minimizar a aversão. Um amigo meu
diz que, quando a raiva dele fica inteiramente expandida, de modo que ele sente
uma intensa irritação, ele bate em si mesmo. Também acho que isso poderia ser
útil. A pessoa que fez a pergunta mencionou bater numa parede ou travesseiro;
acho que um travesseiro é muito melhor, porque não será tão duro! Sob
circunstâncias específicas, parece admissível deixar a raiva sair, mas sem
causar mal aos outros.
Pergunta: Muitos
de nós tivemos que contar algumas mentiras no trabalho a fim de poder vir aqui
e se beneficiar com seu ensinamento. O carma ruim adquirido por contar mentiras
é neutralizado pelo bom carma adquirido através do ensinamento?
Resposta:
Depende muito de quanto benefício é obtido. Se você implementa os ensinamentos
na prática e dessa forma obtém algo para seu modo de vida, então vale a pena.
Para isto ser benéfico, depende de tais fatores. Como diz Shantideva, no
budismo as considerações mais importantes são os resultados das ações; temos
que decidir o que fazer e o que não fazer em termos de determinar qual pode ser
o resultado. Neste contexto, atividades que são completamente proibidas nas
escrituras sobre disciplina não apenas são permitidas como são requeridas sob
certas circunstâncias – elas devem
ser feitas se serão benéficas. Do mesmo modo que, num tratamento médico, diferentes
medicamentos são usados igualmente pela mesma pessoa sob novas circunstâncias,
quando se promove o processo de purificar a mente, circunstâncias diferentes
pedem a implementação de diferentes técnicas.
4 – O Valor do Altruísmo
RESTRINGINDO AS PREDISPOSIÇÕES
ESTABELECIDAS PELAS
EMOÇÕES AFLITIVAS
A prática
dos três treinamentos, em ética, estabilização meditativa e sabedoria, é capaz
de destruir as emoções aflitivas; entretanto, também é necessário livrar-se das
predisposições latentes estabelecidas pelas emoções aflitivas, e isto é
extremamente difícil. A razão para buscar a erradicação destas predisposições é
que elas impedem o conhecimento simultâneo de todos os objetos de conhecimento.
Embora as pessoas que atingiram o estado de destruidor do inimigo tenham se
desembaraçado da existência cíclica, ainda não desenvolveram por completo o
potencial da consciência humana – ainda estão apenas na metade do caminho.
A questão
é como destruir estas tendências
predisponentes. A verdadeira arma é a mesma – a sabedoria que entende a
vacuidade –, mas para superar tais latências é necessário o poderoso amparo de
um grande mérito. A técnica para acumular grande mérito constantemente é o
altruísmo incomum. Até agora, a principal preocupação foi com um único ser, a
pessoa em si. Na prática altruística, a preocupação é com todos os seres sencientes.
Os seres
sencientes são ilimitados; portanto, quando a consciência está preocupada com
este número infinito de seres sencientes, o poder meritório que é acumulado por
atividades virtuosas também é ilimitado. Por isso tomar refúgio no Buda, na
doutrina e na comunidade espiritual preocupado consigo mesmo e tomar refúgio
preocupado com um número ilimitado de seres sencientes difere grandemente no
poder meritório.
Além disso,
até agora a meta foi alcançar a mera liberação da existência cíclica – a mera
extinção do sofrimento – para si mesmo; com a motivação mais altruística a meta
é a mais alta realização possível: o estado de buda. Isto está vinculado não só
à extinção das obstruções aflitivas, mas também à de suas predisposições, as
quais constituem as obstruções à onisciência. Deste modo, também do ponto de
vista do alvo, ou meta, as práticas da pessoa mais altruisticamente motivada na
busca da iluminação insuperável serão mais poderosas, acumulando uma força de
meritória maior.
A natureza
de uma mente altruística é preciosa. De fato é espantoso que a mente humana
possa desenvolver tal atitude, porque a pessoa esquece de si
mesma e considera todos os outros seres tão queridos
quanto ela mesma. Isto é verdadeiramente maravilhoso. Se alguém nos demonstra
um sentimento caloroso, nos sentimos muito felizes, e acontece o mesmo quando
mostramos interesse sincero a outras
pessoas. Acho que, com uma atitude dessas, toda a existência cíclica seria como
o nirvana. Esta é a verdadeira fonte da felicidade, não apenas a longo prazo,
mas hoje mesmo. Se mesmo a mais leve experiência disto se desenvolver, ajudará
dando paz mental e força interior. Ela atrai a melhor de todas as experiências
e proporciona a melhor base para a participação ativa na sociedade. Serve não
apenas como professora, mas também como melhor amiga e protetora. É
verdadeiramente boa.
Nesta
manhã discutimos a estrutura filosófica que nos permite concluir que é possível
desenvolver uma mente tão bela. Os grandes panditas indianos descreveram duas
técnicas para o desenvolvimento do altruísmo – uma através das sete instruções
quintessenciais de causa e efeito, e outra através de igualar e trocar o eu
pelo outro. As sete instruções quintessenciais da técnica anterior, precedida
de uma prática preliminar de desenvolver equanimidade a respeito de todos os
seres, são as seguintes: (1) reconhecer todos como amigos, (2) refletir sobre a
bondade deles, (3) desenvolver a intenção de retribuir esta bondade, (4) gerar
amor, (5) gerar compaixão, (6) desenvolver a elevada resolução de
responsabilidade universal, e (7) engendrar a intenção altruística de tornar-se
iluminado.
A fim de
gerar uma atitude altruística tão forte, na qual se promete buscar o estado de
buda em favor dos outros, é necessário gerar de antemão uma resolução incomum,
na qual toma-se por encargo o bem-estar dos outros. A fim de induzir esta
resolução incomum, é necessário ter compaixão, de modo que não se possa
suportar ver tanto o sofrimento manifesto dos outros, como a sua opressão por
condições internas indesejáveis que resultam em sofrimento. Por conseguinte,
deseja-se do fundo do coração que eles se libertem de tal condição. Porque, a menos
que se esteja movido pela mais profunda compaixão, a elevada resolução na qual
se toma o encargo de libertar os seres do sofrimento não pode ser induzida.
Está claro
a partir de nossa experiência própria que é mais fácil gerar compaixão por
outras pessoas que são atrativas ou por aqueles que despertam uma sensação
agradável – com quem se tem uma sensação de conexão.
Assim, antes de gerar grande compaixão precisa-se de uma técnica que faça com
que todos os seres pareçam interessantes e atrativos para a pessoa. Esta
técnica implica em ver todos os seres sencientes do modo como já vemos aqueles
seres dos quais geralmente estamos mais próximos, sejam eles nossas mães, pais,
parentes ou outros.
A fim de
ver os seres deste modo, é necessário primeiro vê-los de modo imparcial, e aqui
é útil usar a imaginação. Imagine à sua frente um amigo, um inimigo e alguém a
quem você seja completamente indiferente – uma pessoa “neutra”. Examine seus
sentimentos para ver por quem você tem afeição e quem você considera de modo
distante. Naturalmente, você se sente próximo de seu amigo; sente-se não apenas
distante, mas às vezes também raivoso ou irritado em relação a seu inimigo;
simplesmente não sente nada pela pessoa neutra. Você tem que investigar por que
isso é assim. O primeiro é seu melhor amigo; entretanto, do ponto de vista
budista, embora hoje ele esteja agindo como amigo, isto não é permanente,
porque, ao longo de renascimentos sem princípio, em alguma vida passada ele
pode ter sido um de seus piores inimigos. De modo similar, embora o outro
esteja agindo hoje como um inimigo, você não pode absolutamente ter certeza de
que em uma vida passada ele não tenha sido um de seus mais queridos amigos. No
futuro também não há nenhuma razão pela qual um inimigo deva permanecer sempre
inimigo e um amigo permanecer sempre amigo – não há nenhuma garantia nem mesmo
dentro desta vida. O amigo de hoje, dentro de um curto período de tempo, pode
mudar.
Isto é
confirmado por nossa experiência de vida e, mais ainda, na vida política – o aliado
de agora é o pior inimigo no momento seguinte! Neste sentido, a estrutura
básica da vida não é absolutamente estável: às vezes somos bem-sucedidos, às
vezes mal-sucedidos; as coisas estão sempre mudando, mudando, mudando.
Portanto, nossa experiência de sentimentos tão sólidos e estáveis em relação a
amigos e inimigos é absolutamente errada. Não há razão alguma para assumir
tamanha rigidez; é algo tolo, não é? Levar isto em consideração gradualmente
ajudará você a se tornar imparcial.
O passo
seguinte é pensar que, dado que seu inimigo foi no passado – ou mais cedo, ou
mais tarde será – um bom amigo, é muito melhor considerar todas as três pessoas
como suas melhores amigas. Além disso, você pode investigar se existe utilidade
em manifestar aversão: que tipo de resultado virá daí? A resposta é óbvia.
Entretanto, se você tentar desenvolver compaixão por estas pessoas, não há
nenhuma dúvida de que o resultado será bom. Também deste ponto de vista você
pode ver que é muito melhor desenvolver uma atitude compassiva equivalente por
todos os três tipos de seres.
Amplie
este sentimento por seus vizinhos – um por um, por aqueles que vivem deste lado
e depois por aqueles que vivem do outro lado da rua. A seguir, pelo país
inteiro, depois por todo o continente, depois por toda a humanidade neste
mundo, e a seguir mais longe, para os infinitos seres sencientes. É assim que
se pratica as sete instruções quintessenciais de causa e efeito.
A outra
técnica para desenvolver o altruísmo é chamada de igualar e trocar o eu pelo
outro. Aqui, deve-se investigar qual lado é importante, o
eu ou os outros. Escolha. Não existe nenhuma outra
escolha – só estas duas. Quem é mais importante, você ou os outros? Os outros
são maiores em número do que você, que é apenas um; os outros são infinitos. É
claro que ninguém quer sofrimento, e todos desejam felicidade, e todos têm todo
o direito de alcançar a felicidade e superar o sofrimento porque todos são
seres sencientes.
Se
perguntarmos: “Por que eu tenho o direito de ser feliz?”, a resposta definitiva
é: “Porque eu quero felicidade.” Não existe mais nenhuma razão.Temos uma
natural e válida sensação de eu, em cuja base
desejamos a felicidade. Isto em si é o fundamento válido do nosso direito de
nos esforçarmos pela felicidade; é um direito humano, e um direito de todos os
seres sencientes. Agora, se alguém tem o direito de superar o sofrimento, então
os outros seres sencientes naturalmente têm o mesmo direito. Além disso, todos
os seres sencientes são basicamente dotados com a capacidade de superar o
sofrimento. A única diferença é que o indivíduo é apenas um, ao passo que os
outros estão em maioria. Portanto, a conclusão é clara: se mesmo um pequeno
problema, um pequeno sofrimento, ocorre aos outros, seu alcance é infinito, ao
passo que, quando alguma coisa acontece com um indivíduo, limita-se a apenas
uma única pessoa. Quando também vemos os outros como seres sencientes desta
maneira, a própria pessoa não parece tão importante.
Deixem-me
descrever como isto é praticado na meditação. Esta é a minha prática, e
freqüentemente falo sobre isso aos outros. Imagine que à sua frente está o seu
velho eu egoísta de um lado e, do outro lado, um grupo
de pessoas pobres e necessitadas. E você mesmo está no meio como uma pessoa
neutra, uma terceira parte. Então, julgue o que é mais importante – se você se
juntaria àquela pessoa egoísta, autocentrada e estúpida, ou àquelas pessoas
pobres, necessitadas e desamparadas. Se você tem um coração humano,
naturalmente será levado para o lado dos seres necessitados.
Este tipo
de contemplação reflexiva ajudará a desenvolver uma atitude altruística; você
gradualmente perceberá como o comportamento egoísta é ruim. Até aqui, você
mesmo vem se comportando deste jeito, mas agora você percebe o quão mau tem
sido. Ninguém quer ser uma má pessoa; se alguém diz: “Você é uma pessoa má”,
ficamos muito irados. Por quê? A principal razão é que simplesmente não
queremos ser maus. Se realmente não queremos ser uma má pessoa, então os meios
para evitar isto estão em nossas próprias mãos. Se nos treinamos no
comportamento para ser uma boa pessoa, nos tornaremos bons. Mais ninguém tem o
direito de colocar uma pessoa nas categorias de boa ou má; ninguém tem este
tipo de poder.
A fonte
definitiva de paz na família, no país e no mundo é o altruísmo – compaixão e
amor. A contemplação deste fato também ajuda tremendamente a desenvolver o
altruísmo. Meditar sobre estas técnicas tanto quanto possível engendra
convicção, desejo e determinação. Quando, com tanta determinação, tentamos,
tentamos, tentamos, dia após dia, mês após mês, ano após ano, podemos melhorar
a nós mesmos. Com motivação altruística, cada ação acumula boas virtudes – o
poder sem limites do mérito salutar.
AS SEIS
PERFEIÇÕES
Do ponto
de vista budista, que tipo de ajuda podemos trazer aos outros? Um tipo
importante de caridade é dar coisas materiais, tais como comida, roupas e
abrigo, mas isto é limitado, porque não traz satisfação completa. Da mesma
forma que nossa experiência própria confirma que, através da purificação gradual
de nossa mente, mais e mais a felicidade se desenvolve, com os outros acontece
a mesma coisa; assim, é crucial que os outros entendam quais práticas devem
adotar a fim de obter felicidade. Para facilitar o entendimento destes tópicos
pelos outros, devemos ser inteiramente capazes de ensiná-los. Além do mais,
visto que os seres sencientes possuem diferentes e ilimitadas predisposições,
interesses, potenciais adormecidos e atitudes, não podemos preencher as
esperanças dos outros seres a menos que desenvolvamos atividades elevadas de
fala que combinem exatamente com o que eles precisam. Não existe jeito de
realizar isto a menos que superemos as obstruções que impedem a onisciência em
nosso continuum mental. Assim, ao buscar ajudar os outros, resolvemos atingir o
estado de buda, no qual as obstruções à onisciência foram extintas.
Neste
sentido, a atitude de bodhisattva é descrita como uma mente atentamente
direcionada ao bem-estar dos outros, e aspirando ao estado de buda para
realizar isto. Embora a meta final na obtenção do estado de buda seja o serviço
altruístico, em termos de implementação no presente um bodhisattva empenha-se
na prática das seis perfeições – generosidade, ética, paciência, esforço,
concentração e sabedoria – de acordo com sua capacidade, começando com a
caridade de doar coisas materiais.
Generosidade
significa treinar, do fundo do coração, uma tamanha atitude de prodigalidade
que não se busca nenhuma recompensa ou resultado para si mesmo; o ato de
caridade e todos os seus resultados benéficos são dedicados aos outros seres
sencientes.
Em relação
à ética, a prática essencial de um bodhisattva é restringir o egocentrismo.
Visto que a prática de caridade não pode envolver nenhum prejuízo aos outros
para ser bem-sucedida, é necessário superar justamente a raiz de toda a
tendência de causar mal aos outros. Isto deve ser feito eliminando-se o
egocentrismo, visto que uma atitude unicamente altruística não deixa espaço
para causar mal aos outros. Assim, a ética de restringir o egocentrismo é
crucial.
A fim de
que haja ética pura, é necessário cultivar a paciência. A prática da paciência
é extremamente importante, visto que é o principal baluarte para o treinamento
em igualar e trocar o eu pelos outros. O mais proveitoso é praticar junto as
técnicas que Shantideva descreve nos capítulos sobre paciência e concentração
em seu A Guide to the Bodhisattva’s Way
of Life (Guia
para o Modo de Vida do Bodhisattva[63]),
nos quais explica a equiparação e troca do eu pelos outros. A prática da
paciência estabelece a fundação, a base, para igualar e trocar o eu pelos
outros. É mais difícil gerar o sentimento de afeição e respeito pelos inimigos.
Quando se pensa nos inimigos em termos de prática de paciência, um inimigo não
se trata de alguém que causa mal, o inimigo é a mais benevolente entre as
pessoas prestativas. Chega-se a pensar: “Sem alguém para me prejudicar, não
haveria jeito de eu cultivar a paciência de não me importar com prejuízos à
minha pessoa.”
Conforme
diz Shantideva, existem muitos seres para os quais se pode praticar caridade,
mas há muito poucos seres em relação aos quais se pode praticar a paciência, e
o que é mais raro é mais valioso. Um inimigo é realmente muito bondoso. Pelo
cultivo da paciência, o poder meritório cresce, e a prática da paciência só
pode ser feita na dependência de um inimigo. Por esta razão, os inimigos são os
principais incentivadores do aumento do poder meritório. Um inimigo não impede,
mas de fato ajuda na prática da religião.
Em seu A Guide to the Bodhisattva’s Way of Life
(Guia para o Modo de Vida do Bodhisattva), Shantideva enuncia uma objeção
hipotética: “Mas um inimigo não possui a motivação de ajudar, e por isso não
deve ser respeitado.” A resposta de Shantideva é que, para alguma coisa ajudar,
não é necessário que ela tenha motivação. Se fosse necessária motivação, não
haveria como ter fé no estado de liberação do sofrimento. Assim, mesmo que os
inimigos não tenham o desejo de ajudar, é conveniente respeitá-los, visto que
são benéficos.
A seguir,
Shantideva apresenta mais um protesto hipotético: “Mesmo que o estado de
liberação não tenha o desejo de ajudar, também não quer causar mal; entretanto,
um inimigo quer causar mal.” A resposta de Shantideva é: “Porque tem o desejo
de causar mal, uma pessoa recebe o nome de ‘inimigo’, e você precisa de um
inimigo a fim de cultivar a paciência. Como um doutor, por exemplo, está
procurando ajudá-lo, você não o identifica como um ‘inimigo’ e, por
conseguinte, ele não pode proporcionar uma situação para o cultivo da
paciência.” Esta é a experiência e o raciocínio dos grandes bodhisattvas da
antigüidade. Pensar deste modo é muito benéfico. Ajuda a manter a pessoa feliz.
Shantideva argumenta que, se existe alguma coisa que possa ser feita para
consertar uma situação, não há necessidade
de se preocupar, e se, por outro lado, não há nada que possa ser feito, não há utilidade em se preocupar.
Outro
importante tipo de paciência é a resignação, a aceitação voluntária do
sofrimento.
Antes do sofrimento ocorrer, é importante empenhar-se em técnicas
para evitá-lo; mas, uma vez que o sofrimento começou, deve ser considerado não
como um fardo, mas como algo que pode auxiliar. São muitas as razões. Ao
suportar pequenos sofrimentos nesta vida, pode-se purificar o carma de muitas
más ações, acumulado em vidas passadas. Além disso, o sofrimento ajuda a
revelar as falhas e desvantagens da existência cíclica: quanto mais se vê as
falhas da existência cíclica, mais se desenvolverá o desagrado por envolver-se
com não-virtudes. O sofrimento também ajuda a revelar as boas qualidades e
vantagens da liberação. Ademais, através da sua própria experiência de
sofrimento, você pode inferir como é a dor dos outros e gerar o desejo de fazer
alguma coisa por eles. Pensando sobre o sofrimento desta forma, descobre-se que
ele proporciona uma boa oportunidade para mais prática e reflexão.
A quarta
das seis perfeições é o esforço. Entre os muitos tipos de esforço, um é chamado
de “colocar a armadura”; isto evita o descontentamento com a falta de avanço
imediato. O esforço propicia boa vontade para empenhar-se na prática
entusiástica por éons e éons a fim de realizar progressos.
PERGUNTAS
Pergunta: No momento da concepção a
consciência mistura-se aos agregados físicos em desenvolvimento, ou a
consciência pode juntar-se ao corpo físico mais tarde, momentos antes do
nascimento?
Resposta: Diz-se que a consciência
entra no momento da concepção em si. Matar um humano significa matar ou um
humano, ou algo que está se formando como humano; este último caso refere-se ao
período que se inicia na concepção e vai até o nascimento.
Pergunta: O aborto é apropriado
quando foi detectada severa deficiência no embrião?
Resposta: Pode haver situações nas
quais, se a criança será tão severamente deficiente que passará por grande
sofrimento, o aborto seja admissível. Em geral, entretanto, o aborto envolve
tirar uma vida, e isto não é apropriado. O fator mais importante é a motivação.
Pergunta: Quais são as conseqüências
cármicas de uma mulher escolher fazer um aborto quando ela entende que é errado
tirar a vida?
Resposta: Diz-se que, se não existem
circunstâncias atenuantes, é pior fazer uma má ação sabendo-se que é errado.
Pergunta: Que conselho o senhor pode
dar àqueles de nós que fizeram um aborto, mas atualmente estão praticando o
budismo?
Resposta: Quando uma má ação já foi
feita, depois de se aprender que é errado, pode-se reconhecer a ação faltosa
[na presença real ou imaginária de seres sagrados] e desenvolver a intenção de
não fazer aquela ação de novo no futuro. Isto diminui a força da má ação.
Pergunta: No Ocidente existe um
problema crescente com relação à dependência de drogas e álcool. Tem algum
conselho sobre como aqueles que passam por esta aflição podem ajudar a si
mesmos ou serem ajudados por aqueles a sua volta?
Resposta: Quando se usa drogas, a
mente fica sob a influência de delusão adicional, além da que temos usualmente.
Delusão em dobro certamente não é necessário; o que precisamos é de técnicas
para abrandar a situação básica. Conhecer a natureza da existência cíclica e treinar
o altruísmo pode ajudar.
Pergunta: Por favor, diga algo sobre
a eutanásia, que pode ser realizada ou pela recusa do tratamento, ou pela
aplicação de uma droga ativa que mata a pessoa em poucos minutos.
Resposta: Novamente podem existir
situações excepcionais, mas em geral é melhor deixar as pessoas morrerem na
hora delas. Aquilo a que somos submetidos deve-se às nossas ações passadas, e
temos que aceitar aquilo a que nosso carma nos impeliu. Inicialmente, temos que
fazer o que quer que possamos para evitar o sofrimento, e então, se nada
atenuará o problema, o sofrimento deve ser entendido como o inevitável
resultado de ações passadas.
Pergunta: Sua Santidade falou sobre
uma consciência sutil continuando como uma corrente de uma vida para a
seguinte, mas, depois que ocorre a liberação, o que acontece com a corrente de
consciência no momento da morte? Ela continua?
Resposta: O nível de consciência
mais sutil segue para e através do estado de buda. Ele nunca se extingue.
Pergunta: Muitos de nós apreciam
tanto a vida que não podemos imaginar querer fugir dela; dessa forma, alguns
aspectos da filosofia budista parecem excessivamente deprimentes. Poderia
comentar, por favor?
Resposta: De uma perspectiva
budista, este é um caso de não entender os vários níveis de sofrimento. Se você
está verdadeiramente feliz, então está bem!
Pergunta: Em que extensão a falta do
conceito de um deus criador impede a nós budistas de trabalharmos e praticarmos
ao lado de outras religiões?
Resposta: Dado o fato de que os
seres sencientes têm tantas disposições e interesses diferentes, existem seres
para os quais a teoria de um deus criador é adequada e proveitosa, e, deste
modo, você não deve causar problema a si mesmo preocupando-se por trabalhar ao
lado de uma dessas pessoas. Um número considerável de pessoas que acredita num
deus criador alcançou um estado de ausência de egoísmo, e isto prova que
diferentes ensinamentos trazem resultados benéficos. Quando olhamos para os
resultados, cresce o respeito pelas diferentes religiões.
Pergunta: Andei lendo a respeito do
ensinamento budista sobre ausência de eu, que várias
vezes é traduzido como “ausência de alma”. Ontem Sua Santidade falou sobre o
continuum mais sutil de consciência como aquilo que passa de um nascimento ao
outro e é o herdeiro do carma. Existe alguma diferença essencial entre a
consciência sutil e o conceito cristão de alma, deixando de lado a questão da
reencarnação, que o ensinamento cristão ortodoxo não aceita?
Resposta: Eu me pergunto qual é a
definição clara de alma no cristianismo. Na Índia, desde a antigüidade existem
sistemas de doutrinas que sustentam um eu, atman,
descrito como sendo permanente, singular e independente. Este tipo de alma não
é defendido pelo budismo.
Pergunta: Como posso superar o forte
medo de atitudes rudes e hostis por parte dos outros, que experimento desde a
infância?
Resposta: O cultivo da atitude de
ser carinhoso com os outros mais do que com você mesmo gradualmente ajudará.
Vai levar tempo. Além disso, se tal pensamento lhe causa desconforto constante,
seria melhor você tentar parar de pensar sobre isto.
Pergunta: O que Sua Santidade acha
de um budista que não acredita em carma ou renascimento?
Resposta: Isto de fato deve ser
levado em consideração. Geralmente, ser ou não budista é determinado por tomar
ou não as Três Jóias – o Buda, sua doutrina e a comunidade espiritual – como
fontes puras de refúgio. Entretanto, há pessoas que fazem isto sem muita
reflexão sobre questões complicadas como nascimentos prévios e posteriores,
carma e assim por diante. Por outro lado, alguns ocidentais que pensam mais
nestas coisas podem não aceitar imediatamente as Três Jóias e permanecerem
céticos, mas apesar disto terem elevada consideração
pelo Buda, seu ensinamento e a comunidade espiritual. Pode-se dizer que este
últimos são pessoas que estão prestes a se tornar budistas. Além disso, embora
os budistas não sustentem um eu permanente, singular e independente, poderia
haver budistas que não aceitassem imediatamente a ausência de eu.
Pergunta: Como é possível praticar o
budismo enquanto se vive entre pessoas – marido, esposa, ou família – que não o
praticam?
Resposta: O budismo é para ser
praticado individualmente; não há necessidade de recitar textos juntos, por
exemplo.
Pergunta: Qual é o seu conselho para
um ocidental comum que está trabalhando, mas quer completar as práticas de
budismo tibetano sem se tornar um monge ou fazer um retiro de três anos?
Resposta: As pessoas devem
permanecer na sociedade, desempenhando sua profissão habitual e, enquanto
contribuem para a sociedade, levar adiante internamente a análise e a prática.
Na vida diária, você deve ir para o escritório, fazer seu trabalho e voltar
para casa. Valeria a pena sacrificar algum entretenimento noturno, ir dormir
cedo e acordar cedo na manhã seguinte para realizar meditação analítica. Depois
tomar um bom café da manhã e seguir calmamente para seu local de trabalho.
Ocasionalmente, quando tiver dinheiro suficiente, ir a um país budista por
algumas semanas. Acho que isto pode ser prático e eficiente.
Pergunta: Como podemos entender a
vacuidade de modo bem simples, sem entrar em uma filosofia excessivamente
intelectualizada?
Resposta: O que eu estive falando
nos últimos três dias não é simples o bastante? A idéia principal é que, quando
os objetos são procurados sob análise, não são encontrados, mas isto não
significa que eles não existam – significa simplesmente que falta a eles existência inerente. Se você contemplar isto
repetidamente, em dado momento a realização definitivamente emergirá.
Pergunta: Como o altruísmo e a
vacuidade se unem na prática?
Resposta: No Grande Veículo do
Sutra, as práticas da intenção altruística de se tornar iluminado são os meios
para acumular o conjunto de mérito; é sob a influência destas práticas que se
medita sobre a vacuidade. Similarmente, a meditação sobre a vacuidade acumula
sabedoria. Então, influenciado pela averiguação de que os fenômenos são vazios
de existência inerente, cultiva-se a intenção altruística de se tornar
iluminado. Discutirei como estas técnicas se combinam no tantra quando
continuar minha palestra.
Pergunta: Como podemos ajudar alguém
que está morrendo? O que devemos dizer para o moribundo?
Resposta: O mais importante é não
causar perturbação na mente de um moribundo, e também é importante ativar a
memória de uma prática religiosa virtuosa familiar à pessoa. Aqueles que não
aceitam a prática de qualquer religião devem ser auxiliados a morrer com uma
atitude pacífica, relaxada. A razão para isso é que, conforme foi explicado
antes, em relação aos doze elos do surgimento dependente, o tipo de atitude que
se tem perto da hora da morte é extremamente importante no que se refere a qual
carma é ativado e, por conseguinte, como se renascerá na próxima vida.
Para
aqueles envolvidos em prática budista, existem muitos níveis diferentes de
reflexão que uma pessoa que está morrendo pode utilizar – refletir sobre o
significado da vacuidade, cultivar uma intenção altruística de se tornar
iluminado, cultivar o ioga da deidade, ocupar-se com a prática dos ventos e até
mesmo refletir sobre a elevada sabedoria da vacuidade e bem-aventurança
indiferenciáveis, realizar a transferência de consciência, e assim por diante.
Não importa quão grande possa ser o benefício ou poder da meditação em termos
abstratos, é crucial que o moribundo seja induzido a uma prática com a qual já
tenha familiaridade. Visto que, perto da morte o poder de vivacidade e todo o
resto se deterioram, não existe o menor sentido em tentar forçar o moribundo a
se envolver numa prática não familiar. O mais benéfico é lembrar a pessoa de
uma prática adequada a seu próprio nível.
5 – Compaixão e Sabedoria Combinadas
MANTRA
Conforme foi mencionado
antes, uma pessoa altruisticamente motivada amadurece seu continuum pela
prática das seis perfeições, e amadurece o continuum dos outros pela prática
dos quatro modos de reunir estudantes. Entre as seis perfeições, cada uma das
que se sucede é mais difícil de se atingir e mais importante que as anteriores.
As duas últimas perfeições são concentração e sabedoria.
Em termos de Veículo do
Sutra, o Ornament for Clear Realization
(Ornamento para a Clara Realização), de Maitreya, apresenta 37 caminhos em
harmonia com a iluminação relacionada à conquista de liberação, e muitas
variações de caminhos relacionados à conquista do estado de buda. A raiz de
todos eles é a estabilização meditativa descrita como a união da permanência
serena da mente e do discernimento especial.
Como meio de alcançar
esta estabilização meditativa rápida e poderosamente, existe o Veículo do
Mantra (ou Tantra), compreendo quatro conjuntos de tantra – ação, desempenho,
ioga e ioga insuperável; os três tantras inferiores compartilham
aproximadamente o mesmo modo de procedimento geral, embora cada um possua
práticas distintas. Tanto no Veículo das Perfeições quanto no Veículo do Mantra
Secreto, a prática está enraizada na intenção altruística de se tornar
iluminado e na visão da vacuidade da existência inerente. A grandeza do mantra
secreto, por outro lado, vem da estabilização meditativa. Por conseguinte,
diz-se até mesmo que as escrituras do mantra secreto estão incluídas nos
conjuntos dos discursos[64], visto
que a estabilização meditativa é seu tópico principal.
De que forma o Veículo
do Mantra Secreto atinge sua distinção através da estabilização meditativa?
Como é que possui um modo mais profundo de intensificar a estabilização
meditativa que é a união de permanência serena e discernimento especial?
Motivado pela intenção altruística de se tornar iluminado, o praticante almeja
a iluminação total; este estado de buda é dotado de um corpo da verdade, a
efetivação do bem-estar próprio, e de corpos da forma, a efetivação do
bem-estar dos outros. Estes dois praticantes almejam basicamente alcançar
corpos da forma a fim de auxiliar os outros. Certos corpos da forma possuem as
marcas maiores e menores de um corpo de buda. No Veículo das Perfeições, dentro
do sistema dos sutras, busca-se alcançar este tipo de corpo acumulando poder de
meritório através da prática das seis perfeições sob a influência de grande
compaixão e da intenção altruística de se tornar iluminado. Em adição a estas
práticas, a característica distinta do tantra é exigir uma técnica de aspecto
similar ao tipo de corpo que se busca – a pessoa medita sobre si mesma como
possuindo presentemente o corpo físico de um buda. Esta prática é chamada de
ioga da deidade. Visto que esta prática concorda em aspecto com o resultado que
se está tentando alcançar, o ioga da deidade é particularmente eficiente e
poderoso.
Neste sentido, uma
característica distinta do mantra secreto é o ioga no qual método e sabedoria
são indivisíveis. No Veículo das Perfeições, método altruístico e sabedoria são
entidades separadas que influenciam uma à outra; o método altruístico é afetado
pela força da sabedoria, e a força da sabedoria é afetada pelo método
altruístico. Como os dois são indivisíveis dentro do tantra? Na prática do ioga
da deidade, uma única consciência contém estes dois fatores: a imaginação de um
corpo divino e a verificação simultânea de sua vacuidade de existência
inerente. A imaginação de um corpo divino, que está na classe das aparências de
vasta compaixão, acumula um conjunto de mérito; em conseqüência, a mente de
ioga da deidade preenche a característica do método altruístico. Visto que esta
mesma mente verifica a vacuidade da existência inerente do corpo divino e de
tudo o mais, o conjunto de sabedoria é acumulado; desta forma, a mesma mente de
ioga da deidade preenche as qualidades de sabedoria. Embora método e sabedoria
sejam conceitualmente separáveis, estão contidos na entidade de uma única
consciência.
Um iogue imagina
intencionalmente, em sua consciência mental, sua aparência em um corpo divino.
Quando os iogues imaginam a si mesmos como sendo uma
deidade e percebem a vacuidade daquele corpo divino, existe uma diferença no
impacto desta percepção devido ao objeto especial – o corpo divino –, que é o
substrato da vacuidade.
Além disso, no Veículo
das Perfeições, quando a pessoa medita sobre a vacuidade do eu e dos fenômenos
incluídos nos cinco agregados, não se envolve em técnicas que levem o substrato
a se manter aparente e não desaparecer. No sistema dos tantras, treina-se
especificamente para manter a aparência do corpo divino em meio à verificação
de sua vacuidade de existência inerente. Enquanto se imagina o corpo divino, a
vacuidade de existência inerente daquele corpo é verificada pelo modo de
apreensão da mesma consciência; desta forma diz-se que um fator da consciência
sábia que percebe a vacuidade aparece como uma deidade.
TANTRA IOGA INSUPERÁVEL
O tantra ioga
insuperável descreve um modo ainda mais profundo no qual método altruístico e
sabedoria são indiferenciáveis. Isto é entendido ao se focar a mente em fatores
físicos e mentais mais sutis – o próprio vento sutil, ou energia, e a própria
mente sutil, que são eles mesmos uma entidade indiferenciável. Para praticar
este nível, é necessário parar à força os níveis mais grosseiros de vento e
mente. O tantra ioga insuperável descreve muitas técnicas diferentes para fazer
isto, dando ênfase a partes diferentes do corpo. Esta é a prática dos canais,
ventos, ou energias internas, e das gotas de fluido essencial.
Em geral,
o cultivo de discernimento especial envolve meditação analítica, mas, devido a
seus fatores especiais, no tantra ioga insuperável é a meditação estabilizadora
que é enfatizada ao se cultivar discernimento especial. Níveis mais grosseiros
de consciência induzem a verificação através de análise e investigação. Por
outro lado, quando se manifesta propositadamente níveis mais sutis de
consciência induzidos pelo poder do ioga (e não nos momentos em que estes
níveis ocorrem naturalmente devido ao poder do carma, como quando se está
morrendo), estas consciências sutis nas quais os níveis mais grosseiros
cessaram são inteiramente capazes de verificar significados. Se a pessoa se
empenha em análise naquele momento, isto faz com que o nível mais sutil cesse e
o mais grosseiro retorne. Visto que o nível mais sutil do eu compensa a análise
– cujo propósito é dotar a mente da capacidade de verificação profunda –, não
se conduz análise naquele momento, e recomenda-se a meditação estabilizadora.
O tantra ioga
insuperável prescreve dois sistemas principais de meditação para se obter um
corpo de buda: através do foco tanto no vento quanto na mente mais sutil, e
através do foco apenas na mente mais sutil. Na maior parte dos tantras iogas
insuperáveis das Escolas da Nova Tradução[65], tais
como Guhyasamaja e Chakrasamvara, a ênfase é colocada tanto
no vento como na mente mais sutil a fim de se obter um corpo de buda. No
sistema Kalachakra[66],
entretanto, a mente mais sutil é enfatizada sozinha, e na prática do grande
sinal[67] e da
grande perfeição[68]
a ênfase também é principalmente na mente mais sutil.
De uma
outra perspectiva, diz-se que, entre os tantras iogas insuperáveis, um grupo
foca os canais, ventos e gotas de fluidos essenciais a fim de manifestar a
mente inata e fundamental de clara luz, e outro grupo manifesta esta mente
sustentando apenas um estado não-conceitual, sem enfocar canais, ventos e
gotas. Dentro do primeiro, existem tantras que colocam ênfase particular no
ioga do vento, como é o caso do Guhyasamaja,
e tantras que colocam ênfase particular nas quatro alegrias, como é o caso do Chakrasamvara. O grande sinal e a grande
perfeição estão entre aqueles sistemas que manifestam a mente inata e
fundamental de clara luz sustentando apenas um estado não-conceitual.
Antes de
se envolver na prática do tantra é necessário receber iniciação, e depois de
receber iniciação é importante manter as promessas e os votos feitos. Na
iniciação, uma pessoa transmite uma linhagem de bênçãos para outra, e, muito
embora as bênçãos possam ser obtidas por meio de outros métodos, tais como ler
livros, é melhor receber a bênção do continuum mental de uma pessoa viva,
porque o benefício forma-se mais facilmente na mente. Devido a isto, os lamas
são altamente valorizados no tantra secreto. Já falamos sobre o cuidado que se
deve ter em relação a aceitar alguém como lama; aqui apenas vou acrescentar
que, quando os praticantes não se comportam de forma condizente com a prática,
isto é visto como um augúrio de degeneração da religião.
DEIDADES
TÂNTRICAS
Embora o budismo não
possua um deus criador, existe uma grande variedade de deuses em suas muitas
formas de iniciação e outras áreas. Quem são eles? Conforme foi discutido
anteriormente, no começo da prática de bodhisattva a pessoa almeja obter corpos
da forma de buda altruisticamente ativos a fim de trazer ajuda vasta e efetiva
aos outros seres sencientes. No estado de buda, os corpos da forma aparecem
espontaneamente e sem esforço a fim de ajudar os outros. Quando existe um
reflexo da lua, tem que haver alguma coisa para refleti-la; do mesmo modo, a
aparência espontânea dos corpos da forma de um buda requer seres em frente aos
quais aparecer. Além disso, se o reflexo aparece de modo nítido ou não, grande
ou pequeno e assim por diante, depende da superfície onde está refletido;
similarmente, as cores, formas e aspectos dos corpos da forma aparecem
espontaneamente e sem esforço para os praticantes de acordo com seus
interesses, disposições, crenças, necessidades e assim por diante. Neste
sentido, os deuses dos três tantras inferiores aparecem fazendo uso dos cinco
atributos prazerosos do reino do desejo – formas visíveis, sons, odores,
sabores e objetos tangíveis prazerosos –, mas sem apresentar os atributos
prazerosos da união dos órgãos masculino e feminino. Para os praticantes que
não podem fazer uso destes atributos prazerosos do reino do desejo em seu
caminho, o corpo da forma de um buda aparece como um corpo de emanação suprema
no aspecto de um monje, como fez o Buda Shakyamuni.
Se os
praticantes têm a disposição e a capacidade de praticar o tantra ioga
insuperável, e se suas capacidades estão ativadas, os corpos da forma
manifestam-se a eles no aspecto de deidades masculinas e femininas em união. Os
corpos da forma aparecem com um aspecto irado para aqueles capazes de usar o
fator da aversão no caminho, e com um aspecto pacífico para aqueles que estão
aptos a usar principalmente o desejo. Deste modo, os corpos da forma aparecem
de vários jeitos, de acordo com as capacidades dos praticantes.
Um buda
específico poderia aparecer como uma deidade única, mas também poderia
manifestar várias emanações simultaneamente. Por exemplo: Guhyasamaja
manifesta-se como 32 pessoas em uma mandala, mas isto não significa que existam
32 pessoas; existe apenas uma pessoa real – as outras são apenas emanações.
Portanto, entre as hostes de deidades existem várias que são apenas emanações,
ou reflexos, de um ser.
A VISÃO
NAS QUATRO ORDENS DO BUDISMO TIBETANO
Quando o termo “visão[69]” é
usado, é importante determinar seu significado no contexto, visto que, da mesma
forma que a palavra “sensação” pode referir-se tanto àquele que sente quanto ao
que é sentido, “visão” pode-se referir-se ou à consciência que vê, ou ao objeto
que é visto. No tantra ioga insuperável, o termo “visão” é usado predominantemente
para se referir àquele que vê, à consciência que vê. De acordo com esta
apresentação distinta, embora não exista diferença na vacuidade que é vista,
existe uma diferença no sujeito, a consciência de grande bem-aventurança que vê
a vacuidade. Com referência à vacuidade enquanto objeto que é visto, Sa-gya
Pandita (1182-1251) diz que sutra e mantra têm a mesma visão, e vários textos
Ge-luk-ba falam de modo similar sobre sutra e mantra como tendo a mesma visão.
Contudo,
no Sa-gya-ba são postuladas quatro visões diferentes, relacionadas às quatro
iniciações no tantra ioga insuperável – a visão da iniciação do vaso, a visão
da iniciação secreta, a visão da iniciação do conhecimento da sabedoria e a
visão da iniciação da palavra. Similarmente, textos Ge-luk-ba,
tais como o de Jam-yang-shay-ba[70], Great Exposition of Tenets (Grande Exposição
de Doutrinas)[71],
fala do tantra ioga insuperável como sendo superior devido à sua visão,
referindo-se ao sujeito que vê – a sabedoria de grande bem-aventurança.
Portanto, quando grandes eruditos dizem que não existe diferença de visão entre
sutra e mantra, estão falando do objeto visto, a vacuidade, uma vez que sutra e
mantra não diferem a respeito disto. Entretanto, quando dizem que sutra e
mantra diferem na visão, estão falando da consciência que vê a vacuidade, uma
vez que o tantra ioga insuperável apresenta níveis mais sutis de mente, que
percebem a vacuidade de um modo mais poderoso. Os textos Ga-gyu-ba e
Nying-ma-ba dizem de modo similar que a visão de mantra é superior à de sutra;
todos eles referem-se a um tipo de mente distinto e mais sutil.
Os textos
Sa-gya-ba apresentam uma visão da indiferenciação da existência cíclica e do
nirvana, dizendo que isto deve ser delineado em termos do continuum causal que é
a base-de-tudo. Existem explicações levemente diferentes deste continuum causal
entre os panditas indianos e dentro
do Sa-gya-ba, mas geralmente isto se refere à verdadeira natureza da mente. De
uma perspectiva diferente, o Tantra
Guhyasamaja fala de estudantes de diferentes níveis de capacidade; o
estudante supremamente capaz é chamado de “preciso”, que poderia ser descrito
como o continuum causal que é a base-de-tudo.
No
Sa-gya-ba, o continuum causal é identificado pelo grande erudito
Mang-tö-lu-drup-gya-tso[72] como a
mente inata e fundamental de clara luz. Em outra interpretação dentro do
Sa-gya-ba, isto é identificado como todos os agregados impuros, componentes e
esferas dos sentidos de uma pessoa. Também diz-se que, no continuum causal,
todos os fenômenos da existência cíclica são completos em termos de natureza,
todos os fenômenos do caminho são completos em termos de qualidades, e todos os
fenômenos do estado de buda são completos em termos de efeitos.
A respeito
da igualdade da existência cíclica e do nirvana, no sistema dos sutras
Nagarjuna diz em suas Sixty Stanzas of
Reasoning (Sessenta Estrofes de Argumentação):
Tanto a
existência cíclica quanto o nirvana
Não
existem [inerentemente].
Justamente
aquilo que é o conhecimento da existência cíclica
É chamado
de “nirvana”.[73]
No sistema
dos sutras, a realidade – na qual todos os verdadeiros sofrimentos e fontes de
sofrimento são extintos quando se entendeu por completo o significado da
ausência de existência inerente da existência cíclica – é o nirvana. Uma
apresentação Sa-gya-ba da igualdade da existência cíclica e do nirvana explica
que os fenômenos impuros dos agregados mentais e físicos e tudo o mais existem
primordialmente como agregados mentais e físicos puros. São apresentadas quatro
“mandalas” como a fundação – sendo estas os canais do
corpo, os ventos, as gotas de fluido essencial e as letras. Estas são vistas
como entidades dos quatro corpos de um buda.
De acordo
com Mang-tö-lu-drup-gya-tso, todos os fenômenos da existência cíclica e do
nirvana devem ser vistos como o passatempo, ou reflexão, da mente inata e
fundamental de clara luz, visto que todos eles compartilham do mesmo sabor na
esfera da clara luz. Esta é a visão da indiferenciação de existência cíclica e
nirvana. Assim, a doutrina da indiferenciação de existência cíclica e nirvana
deriva da mente fundamental.
No
Ga-gyu-ba, a meditação sobre o grande sinal é feita através de quatro iogas –
unidirecionado, não-elaborativo, um-só-sabor e não-meditativo. Diz-se que os
dois primeiros são comuns ao caminho do sutra; através do ioga unidirecionado,
alcança-se a permanência serena da mente, e através do ioga não-elaborativo
alcança-se o discernimento especial sobre a vacuidade. Através do ioga do
um-só-sabor, alcança-se um extraordinário discernimento especial, no qual todos
os fenômenos aparentes e correntes são vistos como um só na esfera da mente
inata e fundamental de clara luz. Quando este caminho, que é apenas do tantra,
aumenta em força, torna-se ioga não-meditativo. Como disse Nagarjuna em seus Five Stages (Cinco Estágios)[74]
– que se relaciona ao sistema do Tantra
Guhyasamaja –, quando se chega ao nível da união do corpo puro e da mente
pura, não há nada de novo para aprender.
Sobre a
visão do grande sinal é dito:
A própria
mente é o corpo inato da verdade.
As
aparências são as ondas do corpo inato da verdade.
A mente
verdadeira, ou mente básica, é o corpo inato da verdade – a mente fundamental
de clara luz. Todas as aparências puras e impuras são passatempos deste corpo
da verdade; elas brotam da esfera da mente fundamental de clara luz.
No
Ge-luk-ba, não seria apropriado alegar que uma visão como esta do grande sinal
seja a mesma visão do Caminho do Meio, mas poderia se dizer que é uma visão especial do Caminho do Meio. Dentro do
Ge-luk-ba esta visão especial é encontrada em meditações sobre a visão do
Caminho do Meio que são combinadas com o tantra ioga insuperável. Quando se
pensa nestes termos, a união de bem-aventurança e vacuidade nas apresentações
Ge-luk-ba do tantra ioga insuperável e particularmente o nível inato da união
de bem-aventurança e vacuidade são os mesmos que o grande sinal. Os textos
Ge-luk-ba sobre sutra e até sobre mantra enfatizam a visão como o objeto visto,
ou seja, a vacuidade; contudo, seus textos sobre mantra freqüentemente falam
sobre a visão em termos do sujeito, a consciência que vê. Além disso, dizem que
todos os fenômenos puros e impuros, entendidos como passatempo da vacuidade,
também devem ser vistos como passatempo do sujeito, a consciência que vê, a
mente inata de clara luz. Como diz Nagarjuna em seus Five Stages (Cinco Estágios):
O iogue,
enquanto permanece na estabilização meditativa, que é como uma ilusão,
[Deve ver]
tudo deste modo.
O iogue,
enquanto permanece na estabilização meditativa que é como uma ilusão, deve ver
todos os fenômenos aparentes e correntes – ambientes
e seres dentro deles – como o passatempo da estabilização meditativa ilusória.
Na visão
da grande perfeição, o modo de explicação é muito diferente, mas refere-se
exatamente à mesma coisa. Como uma fonte para isto confio basicamente no grande
erudito e iogue notável Do-drup-chen Jik-may-den-bay-nyi-ma[75]. Na
grande perfeição, a referência original é à mente inata e fundamental de clara
luz, mas ela é chamada de “consciência ordinária[76]”. É
esboçada uma distinção entre mente[77] e mente
básica[78];
consciência ordinária refere-se à mente básica. No sistema Nying-ma-ba, o
tantra ioga insuperável é dividido em três categorias – mahayoga, anuyoga e atiyoga. Atiyoga, ou a grande
totalidade, também é dividido em três – a classe da mente[79], a
classe da grande vastidão[80] e a
classe das instruções quintessenciais[81].
Conforme diz Do-drup-chen Jik-may-den bay-nyi-ma, todos os textos do tantra ioga
insuperável em todas as escolas da Nova Tradução e da Velha Tradução ensinam
apenas a prática da mente inata e fundamental de clara luz. A diferença entre
eles é explicada como se segue: dentro de outros sistemas, nos estágios
iniciais de prática, faz-se uso de diversas práticas que envolvem
conceitualidade, através da qual é manifestada a mente inata e fundamental de
clara luz. Na grande perfeição, por outro lado, desde o começo a utilização da
conceitualidade não é salientada; a ênfase é colocada na mente básica em
dependência das instruções quintessenciais. É por isto que é chamada de
doutrina livre de esforço.
Porque na
grande perfeição é colocada uma tremenda ênfase na mente inata e fundamental de
clara luz, ela inclui uma apresentação incomum das duas verdades, chamada de
duas verdades especiais[82]. A
grosso modo, poderia dizer-se que o que é inato e fundamental é a verdade
definitiva, e, relativo a isso, qualquer coisa que seja adventícia é uma
verdade convencional. Desta perspectiva, a mente inata e fundamental de clara
luz é vazia de todas as verdades convencionais que são fenômenos adventícios, e
deste modo é uma “vacuidade-do-que-é-diferente”; o que quer dizer que é vazia
do que é diferente. Todavia, diz-se que a mente inata e fundamental de clara
luz possui uma natureza de pureza essencial e, por conseguinte, não vai além da
natureza da vacuidade de existência inerente descrita na roda intermediária do
ensinamento do Buda.
Esta
vacuidade-do-que-é-diferente é descrita no contexto de compatibilidade entre a
vacuidade da existência inerente da volta intermediária e da natureza de buda
conforme é apresentada na terceira volta. Por causa disto, é descrita em
algumas tradições orais como a vacuidade-do-que-é-diferente “boa”, ao passo que
a vacuidade-do-que-é-diferente “ruim” é o ensinamento que destaca somente a
natureza de buda com base na volta intermediária, defendendo, por conseqüência,
que a natureza de buda existe inerentemente. Neste sentido, muitos eruditos
qualificados de todas as escolas do budismo tibetano – Nying-ma-ba, Sa-gya-ba,
Ga-gyu-ba e Ge-luk-ba – refutaram especificamente a
vacuidade-do-que-é-diferente que tanto apresenta uma verdade final que é em si
inerentemente existente quanto despreza a vacuidade da existência inerente como
uma autovacuidade aniquiladora que é motivo de escárnio.
Conforme é
dito em uma transmissão oral do grande lama Kyen-dzay Jam-yang-chö-gyi-lo-drö[83], quando
Long-chen-rap-jam[84],
um grande praticante Nying-ma-ba, faz uma apresentação do fundamento, do
caminho e do fruto, ele o faz basicamente a partir da perspectiva do estado
iluminado de um buda, ao passo que a apresentação Sa-gya-ba é basicamente a
partir da perspectiva da experiência espiritual de um iogue no caminho, e a
apresentação Ge-luk-ba é basicamente a partir da perspectiva de como os
fenômenos aparecem para os seres sencientes comuns. Este enunciado parece digno
de considerável reflexão; através dele, muitos mal-entendidos podem ser
removidos[85].
ALCANÇANDO
UM ESTADO DE
SUPREMA
EFICIÊNCIA ALTRUÍSTICA
Ao se
praticar sistemas que enfatizam tanto o vento quanto a mente, alcança-se a
união de corpo puro e mente pura – corpo ilusório e mente de clara luz – na
dependência do que obtém-se o estado de buda suprema e altruisticamente
eficiente. No modo de procedimento incomum dos tantras-mãe, o estado de buda é
alcançado por meio de um corpo de arco-íris. No sistema Kalachakra, que
enfatiza principalmente a mente, o estado de buda é obtido na dependência da
união do corpo da forma vazia e da suprema bem-aventurança imutável. O sistema
Nying-ma-ba da grande perfeição também enfatiza principalmente a mente. Neste,
todos os fatores grosseiros do corpo são consumidos na dependência do
completamento dos quatro níveis de aparência e, tal como no sistema dos tantras
originais, alcança-se o corpo de arco-íris da grande transferência. Todas estas
corporificações de sabedoria e compaixão existem na intenção de ajudar os
outros seres a se desembaraçar da roda de sofrimento impulsionada pela
ignorância.
[1] A datação segue as tradições budistas do sul.
[2] Porque os semideuses também são deuses, seu reino
muitas vezes é combinado com o dos deuses, resultando num desenho com cinco, e
não seis, setores.
[3] No primeiro de seus três livros, intitulado Stages of Meditation; ver Acarya rGyal mtshan rnam grol, slob dpon kalamashilas mdzad pa’i bsgom rim thog mtha’ bar gsum
(Varanasi, Índia: dbus bod kyi ches mtho’i gtsug lag slob gnyer khang, 1985),
5.6ff.
[16] Adaptado de Chandrakirti, estrofe 24 do Supplement to (Nagarjuna’s)
“Treatise on the Middle” (dbu ma la
’jug pa, madhyamakavatara;
Peking 5261, Peking 5262, vol. 98).
[17] abhyudaya, mngon
mtho. Para uma discussão sobre
status elevado, ver Jeffrey Hopkins. Buddhist Advice for Living and Liberation: Nagarjuna’s Precious
[20] A fim de purificar este processo, certas
iniciações do tantra ioga insuperável seguem este padrão na forma pura; ver
Dalai Lama, Tenzin Gyatso e Jeffrey Hopkins, The Kalachakra Tantra: Rite
of Initiation for the Stage of Generation (Londres: Wisdom Publications,
1985; segunda edição revisada, Boston, 1989) 93-97, 264-266 etc.
[21] Adaptado de Jeffrey Hopkins, Meditation on Emptiness (Londres: Wisdom, 1983; edição revisada,
Boston: Wisdom Publications, 1996), 279; para outras versões, ver Meditation on Emptiness, 707-11.
[24] bdag rkyen, adhipatipratyaya.
Outras traduções incluem “condição proprietária” e “condição habilitante”.
[27] Estrofe 35. Ver Jeffrey Hopkins, Buddhist Advice for Living and Liberation: Nagarjuna’s Precious Garland (Ithaca: Snow Lion, 1998), pag. 98.
[29] sa lu’i ljang pa’i mdo, salistambasutra; P
876, vol. 34.
[30] rang bzhin, prakrti; spyi gtso bo, samanyapradhana.
[31] Samkhya é um sistema indiano não-budista que apresenta duas
categorias de existência: consciência pura, chamada de pessoa, e fenômeno
material, do qual o mais básico é a essência geral, também chamada de natureza
fundamental. Embora esta última seja permanente, diz-se que dela surgem todos
os fenômenos materiais.
[32] Para uma série de palestras estruturadas em torno
das quatro nobres verdades, ver o XIV Dalai Lama, The Dalai Lama at Harvard: Lectures on the Buddhist Path to Peace
(Ithaca: Snow Lion Publications, 1989).
[33] kun ’byung, samudaya.
[34] srid pa’i ’khor lo cha lnga pa. A ilustração apresentada aqui possui seis setores,
com setores separados para deuses e semideuses.
[35]
[36] stong pa nyid bdun cu pa’i
tshig le’ur byas pa, sunyatasaptatikarika;
P 5227, vol. 95; Toh 3827,
[37] ’jig tshogs la lta ba, satkayadrsti.
[38] Ver Meditation
on Emptiness para os cinco tipos de argumentação.
[39] Se bem construído, um torno de oleiro permanecerá
girando por longo tempo.
[40] bsam pa’i las.
[41] sems pa’i las.
[42] Nas palestras em Harvard, o Dalai Lama deu o
seguinte exeTmplo:
Um exemplo da
primeira seria matar um mosquito deliberadamente. Então, vamos supor que um
inseto estivesse lhe incomodando e você quisesse muito matá-lo, mas alguém o
distraísse. Neste caso você acumulou carmicamente a motivação, mas não levou a
ação a cabo; isto é uma ação deliberada, mas não executada. Um exemplo de ação
executada sem deliberação seria matar um mosquito simplesmente por mover a mão,
sem ter pretendido fazer aquilo; você matou, mas não deliberadamente. O quarto
tipo é quando não se tem a motivação, nem se leva a ação a cabo.
The Dalai Lama at Harvard, pag. 60
[43] Uma ação infunde, ou deposita, uma potência
predisponente na mente quando está prestes a cessar. Tanto a ação quanto a
predisposição que esta deposita na mente são chamadas de carma.
[44] kun gzhi rnam par shes pa, alayavijnana.
[45] Para uma discussão sobre os níveis da mente em
conexão com o processo da morte, ver Lati Rinbochay e Jeffrey Hopkins, Death, Intermediate State, and Rebirth in
Tibetan Buddhism (Londres: Rider, 1979; reedição, Ithaca: Snow Lion
Publications, 1980).
[46] ming gzhi.
[47] Sensação e discriminação são dois de uma lista
padrão de 51 fatores mentais. Ver The
Dalai Lama at Harvard, pags. 75-76.
[48] chos mngon pa’i mdzod, abhidharmakosa; capítulo três. Ver a bibliografia para edições e
traduções.
[49] dmigs rkyen, alambanapratyaya.
[50] bdag rkyen, adhipatipratyaya.
[51] de ma thag rkyen, anantaryapratyaya.
[52] zhol ba.
[53] zhugs pa.
[55] Para mais discussão sobre muitos dos pontos
levantados aqui, ver MindScience: An
East-West Dialogue (Boston: Wisdom Publications, 1991).
[57] dgra bcom pa, arhan. A respeito da tradução de arhan/arhani (dgra bcom pa) por “destruidor do adversário”, eu a
fiz de acordo com a tradução tibetana usual do termo e para ajudar a capturar o
sabor das tradições orais e escritas que freqüentemente referem-se a esta
etimologia. Arhans superaram o adversário, que são as emoções aflitivas (nyon mongs, klesa), das quais a líder é a ignorância, a concepção (de
acordo com a Escola da Conseqüência) de que pessoas e fenômenos são
estabelecidos por meio de suas próprias características.
Os tradutores
indianos e tibetanos também estavam cientes da etimologia de arhan como “merecedor”, visto que
traduziram o nome do “fundador” do
sistema Jaina, Arhat, por mchod ’od
“merecedor de veneração”(ver Jam-yang-shay-ba,
Great Exposition of Tenets, ka
62a.3). Também estavam cientes do comentário de Chandrakirti sobre o termo como “merecedor”em seu Clear Words: “Por serem merecedores de
veneração pelo mundo dos deuses, humanos e semideuses, são chamados de arhans” (sadevamanusasural lokat
punarhatvad arhannityuchyate [Poussin,
486.5], lha dang mi dang lha ma yin du
bcas pa’i ’jig rten gyis mchod par ’os
pas dgra bcom pa zhes brjod la [409.20, Tibetan Cultural Printing Press
edition; também P5260, vol. 98 75.2.2]). Além disso, estavam cientes da
etimologia dupla de Haribhadra em seu Illumination
of the Eight Thousand Stanza Perfection of Wisdom Sutra. No contexto da lista de epítetos qualificando o séquito
do Buda no começo do sutra (ver Unrai Wogihara, ed., Abhisamayalamkaraloka
Prajna-paramita-vyakhya, The Work
of Haribhadra [Tóquio: The Tokyo Bunko, 1932-35; edição reimpressa, Tóquio:
Sankibo Buddhist Book Store], 1973, 8.18), Haribhadra diz:
Eles são chamados de
arhant [= merecedor, da raiz arh “ser merecedor”], visto que são
merecedores de veneração, doações religiosas e de serem reunidos em um grupo,
etc (W 9.8-9: sarva evatra puja-daksina-gana-parikarsady-arhatay-arhantah; P 5189,
67.5.7: ’dir thams cad kyang mchod pa
dang // yon dang tshogs su ’dub la sogs par ’os pas na dgra bcom pa’o).
Também:
Eles são chamados de
arhant [= destruidor do adversário, arihan] porque destruíram (hata) o adversário (ari). (W 10.18: hataritvad arhantah; P 5189, 69.3.6 dgra
rnams bcom pas na dgra bcom pa’o).
(Meus agradecimentos
a Gareth Sparham pelas referências a Haribhadra.) Assim, não estamos lidando
com uma concepção equivocada e ignorante de um termo, mas com uma preferência
considerada face a etimologias alternativas – “destruidor do adversário”
requerendo um infixo i não incomum
para formar arihan, ari significando inimigo e han significando matar, e, deste modo, “destruidor do adversário”. Infelizmente, não
há uma palavra em inglês que transmita este significado e “merecedor de
veneração”; assim, usei aquele que se tornou o significado predominante no
Tibete. (Para uma excelente discussão sobre as duas etimologias de arhat no budismo e jainismo, ver L.M.
Joshi, “Facets of Jaina Religiousness in Comparative Light”, L.D. Series 85
[Ahmedabad: L.D. Institute of Indology, May 1981], pags. 53-58).
[58] Para mais discussão sobre estes sete tipos de
percepção, ver Lati Rinbochay e Elizabeth Napper, Mind in Tibetan Buddhism (Londres: Rider and Company, 1980; Ithaca:
Snow Lion Publications, 1980).
[59] Fundamental Treatise on the Middle,
Called “Wisdom”, XVIII.5 (dbu ma’i bstan bcos / dbu ma rtsa ba’i tshig
le’ur byas pa shes rab ces bya ba, madhya-makasastral
/ prajnanamamulamadhyamakakarika),
P 5224, vol. 95. Ver bibliografia para edições e traduções.
[63] byang chub sems dpa’i spyod
pa la ’jug pa, bodhicaryavatara.
Ver a bibliografia para edições e
traduções.
[64] mdo sde, sutranta.
[66] Para discussão sobre o sistema Kalachakra pelo Dalai Lama, ver Tenzin
Gyatso e Jeffrey Hopkins, The Kalachakra Tantra: Rite of Initiation
for the Stage of Generation (Londres: Wisdom Publications, 1985; segunda
edição revisada, Boston: Wisdom Publications, 1999).
[71] grub mtha’i rnam bshad rang
gzhan grub mtha’kun dang zab don mchog tu gsal ba kun bzang zhing gi nyi ma
lung rigs rgya mtsho skye dgu’i re ba kun skong / grub mtha’ chen mo. Ver bibliografia para edições e traduções.
[73] rigs pa drug cu pa’i tshig le’ur
byas pa, yuktisastikakarika; estrofe 7. Para o tibetano editado com
fragmentos de sânscrito e tradução inglesa, ver Chr. Lindtner em Nagarjuniana, Indiske Studier 4
(Copenhagen: Akademisk Forlag, 1982), pags. 100-119.