Fábulas de todos os tempos
Fábulas portuguesas
A águia e a coruja
A coruja
encontrou a águia, e disse-lhe:
– O
águia, se vires uns passarinhos muito lindos em um ninho, com uns biquinhos
muito bem feitos, olha lá não mos comas, que são os
meus filhos.
A águia
prometeu-lhe que os não comia; foi voando e encontrou numa árvore um ninho de
coruja, e comeu as corujinhas. Quando a coruja chegou e viu que lhe tinham
comigo os filhos, foi ter com a águia, muito aflita:
– O águia, tu foste-me falsa, porque prometeste que não me
comias os meus filhinhos, e mataste-mos todos!
Diz a
águia:
– Eu
encontrei umas corujas pequenas num ninho, todas depenadas, sem bico, e com os
olhos tapados, e comi-as; e como tu me disseste que os teus filhos eram muito
lindos e tinham os biquinhos bem feitos entendi que
não eram esses.
– Pois
eram esses mesmos, disse a coruja.
– Pois
então queixa-te de ti, que é que me enganaste com a tua cegueira.
(Porto)
Fábulas portuguesas
A barata e os filhos
A barata
saiu debaixo de umas pedras com os filhos e disse-lhes, enquanto eles ainda
pequenos estavam ao sol:
–
Passeai, flores! Passeai, flores!
Daqui vem
o ditado: «Quem o feio ama, bonito lhe parece.»
(Ilha de
S. Miguel)
Fábulas portuguesas
A cega fátua
Já lhe
ouvi ao Cura, um dia
Contar lá
na sua arenga
De certa
mulher, que havia,
Que nesse
tempo, em que via,
Como a
Raposa, era senga.
Eis senão
que de repente
Mau ar a
vista lhe veda;
Ficou
cega em continente:
Porém foi
tão levemente,
Que em
vez de triste era leda.
Todos do
trabalho seu
Se lhe
mostravam pesantes;
Mas que
resposta lhes deu?
O sol é
que escureceu,
Que eu
vejo melhor que dantes.
Tal lhes
sucede a uns doutores,
Que, no
que querem querer,
Julgam
por faltas menores
Mudar o
sol seus primores,
Que eles
o seu parecer.
(D. Francisco Manuel de Melo, Obras
Métricas, Églog. II, est.
77 e seg.)
Fábulas portuguesas
A formiga e a cigarra
O trigo,
que juntou no seco
Estio
Solícita a Formiga assoalhava,
Dês que o
bosque deixou de ser sombrio.
A Cigarra
importuna, que passava
Acaso por
ali morta de fome,
Que lhe
emprestasse dele, lhe rogava.
A fim que
da resposta aviso tome,
Perguntou-lhe
a Formiga, em que gastara
O tempo,
em que se colhe o que se come?
A Cigarra
lhe disse, que cantara,
Bem fora
de cuidar poder cair
Naquela
grande falta, em que se achara.
Começou a
Formiga então de rir,
Dizendo:
– Amiga, pois no Verão cantas,
Podes
bailar no Inverno, e não pedir.
(Diogo Bernardes, Lima, cart. XIV, V. 151 e seg.)
Fábulas portuguesas
A Fortuna e o Moço
Diz um
conto, que jazia
Sôbola borda dum poço,
Cheio e
fundo em demasia,
Onde com párvoa ousadia
Quis
dormir a sesta um Moço.
Nisto, a
Fortuna passou:
E vendo o
que ali se azava,
Foi-se ao
Moço, e o acordou;
Deu-lhe
muito, ele gritou;
Ela dava,
ele gritava.
Porque
(diz) com tão mortais
Golpes me tratas assim?
Ela
responde (e dá mais):
Porque
errais; e do que errais,
Me pondes
a culpa a mim.
Quer no
mar e quer na terra,
Buscais o
risco por cama,
Trocais a
paz pela guerra;
Então, se
o apetite erra,
A Fortuna
é quem se infama.
(D. Francisco Manuel de Meio, Obras
Métricas, cart. II, est.
24 e seg.)
NOTA – Acha-se nas Fábulas de Babrius, nº XLVIII: O Obreiro e a Fortunas.
Fábulas portuguesas
Aglau ou a
bem-aventurança
Dos
antigos Romãos foi perguntado
Apoio,
qual dos homens desta vida
Julgava
por mais bem-aventurado.
Respondeu
à pergunta referida,
Que era Aglau; cousa mais não declarando,
O que a
resposta fez mal entendida.
Eles que
dele estavam esperando,
Que
nomeasse algum mui conhecido
Dos
grandes, que no mundo tinham mando:
Querendo
conhecer quem preferido
Fora em
ventura à régia dignidade,
Acharam,
tendo já muito inquirido,
Ser um
homem, que fora da cidade,
No campo
cultivava uma horta pobre,
O qual
era mais pobre de vontade.
(Diogo Bernardes, Lima, cart. II, v. 85 e seg.)
Fábulas portuguesas
As duas mães
Vieram
duas mulheres diante de Salomão com uma demanda notável. Traziam consigo dois
meninos, um morto outro vivo: o vivo cada uma dizia que era seu filho, o morto cada uma dizia que
o não era. Que faria o grande Rei nesta perplexidade? – Parta-se o menino vivo
pelo meio, e leve cada uma a sua parte. – Ouvida a sentença, uma das mulheres
consentiu, e disse, parta-se: a outra não consentiu, e disse, viva o menino, e
leve-o embora minha competidora. E qual destas duas seria mãe? A que disse, viva o menino. Assim o julgou Salomão, e assim era: porque
a que disse, mona, mostrou que não amava; a que disse, viva, provou que amava,
e da que amava o menino, desta era filho.
(P. António Vieira, Sermões, t.
IV, pág. 367, n. 389.)
Fábulas portuguesas
As lebres e as rãs
Diz que
as Lebres, como gente,
Um dia
conselho houveram,
Por não
viver tristemente;
E
afogar-se de repente
Todas
juntas resolveram.
Duas Rãs,
como soíam ,
Junto ao
charco eram, pastando
Adonde as Lebres corriam,
E de medo
do que ouviam
Vão-se no
charco lançando.
Uma Lebre
mais ladina,
Que isto
viu, teve-se quedo,
E gritou
pela campina:
Tende
mão, gente mofina,
Que inda há Rãs, que vos tem medo.
(D. Francisco Manuel de Meio, Obras
Métricas, Cart. V,
est, 35 e seg.)
Fábulas portuguesas
A Rã e o Boi
Mas que
me dirás tu daquela Rã,
Que vendo
o Boi no prado andar pascendo,
Chamou
uma filha sua, ou sua irmã,
E
disse-lhe: – Eu espero, se me estendo,
De ser
tamanha, como este animal;
E começou
de inchar, e foi crescendo?
Amiga,
inchares muito, pouco vai,
Respondeu
a que veio; certa estou,
Que não
lhe podeis nunca ser igual.
A douda da resposta não curou;
Antes
inchou com tanta força tanto,
Que não
cabendo em si, arrebentou.
As
outras, em lugar de fazer pranto,
Riram da
presunção desta sandia;
De rirem
e zombarem não me espanto.
Além de
ser costume, merecia
Tamanha
vaidade, qual foi esta,
Fazerem
dela grande zombaria.
(Bernardes, Lima, V. 160, e seg.)
Fábulas portuguesas
A raposa e o galo
Uma
raposa viu um galo pousado em cima de um palheiro, e não podendo agarrá-lo
começou a falar-lhe cá de baixo:
– Ó galo,
tu não sabes? Veio agora uma ordem para todos os animais serem amigos uns dos
outros. Nós cá as raposas já não temos guerra com os
cães, estamos amigos; e tu podes-te descer cá para baixo, que eu já te não faço
mal.
Estava
nisto, quando vem uma matilha de cães, e farejando a raposa, botam-se atrás
dela. A raposa ia sendo agarrada, mas fugiu o mais que podia. O galo de cima do
palheiro gritava-lhe:
–
Mostra-lhe a ordem! Mostra-lhe a ordem!
A raposa,
ainda de longe: lhe respondia:
– Não
tenho vagar! Não tenho vagar.
E fugia
por entre uns tremoçais, que já estavam secos, que faziam uma grande bulha, e
ela dizia:
– Ai, que
rica festa! E logo hoje, que vou com tanta pressa.
(Airão)
NOTA – Nos Contos Populares da
Grã-Bretanha, trad. de Brueyre, p. 369, vem também esta fábula. Acha-se em La Fontaine, Le
Coq et te Renard.
Fábulas portuguesas
A raposa e o leão enfermo
Os
desejos são sem termo,
A
esperança é saborosa:
Eu
contentei-me deste ermo
Pola razão, que a Raposa
Deu ao
Leão, que era enfermo:
Meu Rei,
meu senhor Leão,
Olho cá,
e olho lá,
Vejo
pegadas no chão,
Que todas
para lá vão,
Nenhuma
vem para ca.
(Francisco de Sá de Miranda, Cart. III, est. 45,
e segs.)
Fábulas portuguesas
A raposa e o lobo
A raposa
e o lobo mataram dois carneiros e fugiram. Depois que se acharam seguros,
deitaram-se a comer, mas só puderam comer um, e o outro ficou inteiro. Diz a
raposa:
–
Compadre, é melhor enterrarmos este carneiro e vimos
cá amanhã Comê-lo juntos.
Vai o
lobo e diz-lhe:
– Mas nem
eu nem tu temos faro, como é que o havemos tomar a achar?
–
Deixa-se-lhe o rabo de fora.
Assim se
fez. No dia seguinte apresenta-se o lobo e diz:
– Comadre, vamos comer o carneiro?
– Hoje
não posso; tenho de ir ser madrinha de um cachorrinho
O lobo
fiou-se, mas a raposa foi ao lugar onde estava enterrado o carneiro e comeu um
grande pedaço. No outro dia toma o lobo a perguntar-lhe:
– Que
nome puseste ao teu afilhado?
–
Comecei-te.
Exclama o
lobo:
– Que
nome! Vamos comer o carneiro?
– Ai,
compadre (disse-lhe a raposa), hoje também não pode ser; estou convidada para
ir ser madrinha.
O lobo
fiou-se; a raposa tornou a ir comer sozinha. Ao outro dia vem o lobo:
– Que
nome deste ao teu afilhado?
– Meei-te.
– Que
nome! (replica o lobo). Vamos comer o carneiro?
A raposa
tornou a escusar-se com outro baptizado, e foi acabar de comer o carneiro. O
lobo vem:
– Como se
chama o teu afilhado?
–
Acabei-te.
– Vamos
comer o carneiro?
Foram e
chegaram ao sítio; assim que viram o rabo, disse a raposa:
– Puxa
com força, compadre.
O lobo
puxou, e caiu de pernas para o ar; a raposa safou-se.
(Airão)
NOTA – Nos Contes populaires de la Grande Bretagne, trad. de Brueyre, p. 362 (vid. nota 1, p. 364 e 365). A fábula dos Highlanders versa sobre uma panela de manteiga; é popular
na Noruega, como se vê pela colecção de Absjörnsen, A
Raposa e o Urso.
Fábulas portuguesas
A raposa e o mocho
Uma
raposa passou por um souto e sentiu piar um mocho; disse ela para si:
– Ceia já
eu tenho.
E foi
muito sorrateira trepando pelo castanheiro em que estava piando o mocho, e
filou-o.
O mocho
conheceu a sorte que o esperava, e viu que não podia livrar-se da raposa sem
ser por ardil. Disse então para ela:
– O
raposa, não me comas assim como qualquer frango desses que furtas pelos
galinheiros; tu também sabes andar à caça de altenaria,
e é preciso que todos o saibam. Agora que me vais comer, grita bem alto:
«Mocho comi!»
A raposa
levada por aquela vaidade, gritou:
– Mocho comi!
– A outro
sim, que nenja a mim! replicou-lhe
o mocho caindo-lhe de entre os dentes e voando pelo ar fora, livre do perigo.
(Airão)
Fábulas portuguesas
A raposa no galinheiro
De uma
vez uma raposa apanhou um buraquinho num galinheiro,
entrou para dentro fazendo-se muito esguia, e depois que se viu lá, comeu
galinhas à farta. Quando foi para sair estava com a barriga muito cheia, e por
mais que fez não pôde passar pelo buraco. Viu-se perdida, porque já vinha
amanhecendo. Por fim teve uma lembrança: Fingiu-se morta.
De manhã
veio o lavrador e viu-a:
– Cá está
ela. E que estrago que me fez!
Vai para
lhe dar pancadas e matá-la, mas vê-a hirta, com a língua atravessada nos dentes
e os olhos envidraçados:
–
Poupaste-me o trabalho; morreste arrebentada. Foi bom.
E
pegando-lhe pelas pernas atira-a para o meio da horta para a enterrar. A raposa
assim que se viu fora do galinheiro, pernas para que te quero! botou a fugir pelos campos fora e fez do rabo bandeira. O
lavrador deu a cardada ao dianho, e jurou que nunca
mais se fiaria em raposas.
(Airão)
Fábulas portuguesas
A tartaruga e a águia
Viu a Tartaruga voar a Águia por esses ares com tanta
soltura e liberdade, quanta tem a rainha das Aves (fábula é com sua doutrina),
e quis ela também fazer o mesmo. Pediu com encarecimento à Águia a quisesse
levar ao alto, e tirar daquele poço, onde andava. – Es
mui pesada, e impedida de membros e concha, lhe disse a Águia. – Não importa isso nada, respondeu a
Tartaruga; que quem tão bem se meneia na água, que faz mais resistência, por
ser mais grossa, melhor o fará no ar, que é mais delgado. – Que não tens asas,
nem instrumentos para te ter? – Não releva , replica
ela, isto quero experimentar. Pera que te pões nesses
perigos? lhe pergunta a Águia.
– Porque quero ser conhecida, e não estar toda a minha
vida em um poço, ou charco escondido; e se vós voais, também eu. – Alto, vamos
ambas acima. – Pega a Águia da Tartaruga, e em a largando, que esperais fosse
dela? Caiu, e fez-se em pedaços. E vem o Conto a dizer: Que se não há asas, ou
posses, pera que é querer voar ou dar de comer a
ventos? Quem vive e se meneia no seu poço, pera que
quer ares? Quem na sua herdade ou quinta, pera que
quer Corte, ou Cidade? Quem no seu quartau , pera que em coches? Quem no
pano honesto, pera que em galas, ou mangas perdidas,
senão pera se perder? – Oh! que
anda o outro assim, e é costume do tempo e da Cidade! – Quiçá terá asas o
outro, com que possa sustentar esse fausto e esse vento; mas quem se não pode
bulir mais que uma Tartaruga, porque se não contenta com a sua concha, ou com
andar metido nelas?
(Fr. João
de Ceita, Quadragen. I, pág. 244, col. I)
Fábulas portuguesas
Júpiter e o sábio
Diz que
um Sábio impertinente
A Júpiter
se queixava,
Porque no
tempo presente
Já c’os homens não falava,
Qual
falava antigamente.
Mas o
Deus, porque entendesse
A gente a
simples fadiga,
E a presente
conhecesse,
Respondeu:
Que qués te diga,
Que o
mundo te não dissesse?
Enquanto
o mundo não viu
Casos de escarmentos vários,
Minha voz
entanto ouviu:
Dei-lhe
avisos necessários;
Chore, se
os mal advertiu.
No que
ontem foi, podes ver
O que
há-de ser amanhã;
Muito
esperar, pouco crer;
A nova
esperança é vã,
Se não
crer o que não quer.
Se queres
de pensamentos
Lançar
pelo vento as redes,
Que só te
caçam tormentos,
Queixa-te
do mal que medes
Ditas e
arrependimentos.
(D. Francisco Manuel de Meio, Obras Métricas, cart. IX, est. 25 e seg.)
Fábulas portuguesas
O Bacarote, as
ovelhas, o lobo e os porcos da aldeia
Um Bacorote orgulhoso
Deu vista
ao gado ovelhum,
De quexiquer espantoso;
Trombejava ele hum e hum,
Andava
todo bravoso.
Vem um
dia o Lobo, e apanha
Pela
cabeça o doudete:
Abrandou-lhe
aquela sanha;
Brada: –
Ah dos meus! Em tamanha
Pressa ninguém arremete.
Vinham os
Porcos da aldeia
Mais
atrás, grunhir ouviram,
Um escuma, outro esbraveia;
Estes si,
que lhe acudiram,
Perdeu o
Lobo a sua ceia:
Ele solto
viu que o gado
De lã
branca estava olhando
De longe,
inda amedrontado:
Antes,
disse, ser mandado,
Que em
tal perigo tal mando .
(Sá de Miranda, Églog.
VIII, est. 57 e seg.)
Fábulas portuguesas
O cão sôfrego
Um cão,
passando um dia por um rio
De cristalinas
águas e correntes,
Devia por
razão de ser no Estio;
Dum osso
duro, que antre os duros dentes
Levava
atravessado, a sombra viu
Naquelas
frescas águas transparentes,
Ser outro
mor cuidando, a boca abriu,
E por
querer tomar a presa vã,
A certa
na corrente lhe caiu.
(Diogo Bernardes, Lima, carta
V, v. 31 e segs.)
Fábulas portuguesas
O Cervo e o Cavalo
Quando
tudo era falante,
Pascia o
Cervo um bom prado;
I veio um
Cavalo andante,
Quis
comer algum bocado,
pôs-se-lhe o Cervo diante.
Outra
razão lhe não deu,
(Que eram
pascigos gerais)
Salvo –
posso e quero, é meu.
Este meu,
e este teu
Tanto há
já que nos fez tais.
Vendo tão
pouca prestança
O Cavalo,
dantes forro,
Com
desejo de vingança,
Pedindo
ao homem socorro
Por terra
a seus pés se lança.
Não pôde
à justa querela
Deixar de
se pôr no meio;
Mas foi
necessária a sela:
Pôs-lhe,
e fez-se forte nela,
Toma a
rédea, prova o freio.
Assim dão
volta ao imigo:
O Cervo,
quando tal viu,
Homem ao
Cavalo amigo,
Deixou-lhe
o campo, e fugiu,
Foi
buscar outro pascigo.
O Cavalo
vencedor
Corre o
verde e corre o seco,
Fora,
fora o contendor;
Ficou-lhe
porém senhor,
Não foi
tanto o outro enxeco.
Quem há
tal medo à pobreza,
Tal à
fome e frialdade,
Que por
ouro e por riqueza
Dá a só
rica liberdade,
E mais
outrem, que a si preza?
Se lhe
vês herdades largas,
Não lhe
hajas inveja à troca;
Embaraçam
as roupas largas,
Faz
sangue o freio na boca,
As
esporas nas ilhargas.
(Sá de Miranda, Églog.
VIII, est. 73, e seg.)
Fábulas portuguesas
O conselho dos ratos
Os Ratos fizeram entre si uma grande, e a seu parecer,
útil consulta (fábula é, mas doutrinal), querendo dar remédio à perseguição,
que lhes faziam os Gatos; pois raramente lhes escapavam das unhas; e dando cada qual seu parecer, acordaram que se deitasse um grande
chocalho no pescoço dos Gatos, e com isto os não tomariam descuidados, pois ao
tom do chocalho se poriam em cobro, ou acautelariam. Contentes todos com a
traça, que parecia boa, respondeu um mais autorizado e velho: – E qual há-de
ser o primeiro da companhia, que se atreva a deitar esse chocalho? – Aqui
calaram e pasmaram todos.
(Fr. João
de Ceita, Quadra gen. I, pág. 244, col. 1)
Fábulas portuguesas
O filósofo e o fanfarrão
C’um Filósofo chapado
Apostava
um Fanfarrão,
A qual
mais era, um cruzado;
O
Fanfarrão era honrado,
O
Filósofo vilão.
Cada qual
das duas partes
Buscando
a Justiça, apenas
(Que tu,
Sorte, mal repartes)
Vão lá
dar c’um Mestre em Artes,
Mestre
das Artes de Atenas.
Chega o
Fanfarrão, e alega
Por
sextos progenitores,
Cuja fama
ele hoje cega;
Cala, e o
Filósofo chega,
E alega
só seus suores.
Faz
presente o estudo imenso,
O ânimo
pronto à razão,
Seu juízo
ao bem propenso;
Em fim
que ali por extenso
Cada qual
diz sim e não.
Eu já sei
que o vosso intento,
Diz o
Juiz sem receio,
É medir
no entendimento
O próprio
merecimento
C’o merecimento alheio.
Tu, que
vens de altiva gente,
De cujo
ser participas,
Não te
nego a honra eminente:
Mas que
importa, se vilmente
A não
herdas, que a dissipas?
Porém tu,
que entre os terrões
Das
paternas semeadas
Semeaste
tais tenções,
Que todas
tuas acções
Foram
justas e regradas:
Se nunca
errar procuraste,
Só do bem
seguindo o esmo ,
Quando o
creste, o imitaste,
Na
virtude te geraste,
E foste
pai de ti mesmo.
Quem logo
o sangue turvou,
Não pode
ser que mereça
Como
aquele, que o apurou:
Neste a
nobreza acabou,
Nest’outro agora começa.
(D. Francisco Manuel de Meio, Obras
Métricas, cart. VIII, est.
16 e seg.)
Fábulas portuguesas
O Homem, o ídolo e o tesouro
Lá me lembra a mim fazer menção a Esopo, em uma Fábula
sua, de certo Homem, que tinha em sua casa um Ídolo, alfaia de seus
antepassados, os quais fizeram dele seu mealheiro, ou depósito do seu dinheiro;
porque além de o terem ali mais escondido, cuidaram o
tinham mais guardado, encomendado ao seu Deus. O Homem, herdeiro da casa e do
Ídolo, não sabendo do Tesouro deu em pobreza, (como dão muitos herdeiros de
grandes casas); e achando não ter outro meio mais eficaz pera
se livrar da lazeira, que encomendar-se ao Deus, pois o tinha de casa, começou
de lhe fazer suas novenas e preces: e pera ter mais
efeito, ia-se ao campo todos os dias, e colhendo das flores e boninas, o
enramava, e com mil capelas o laureava, e punha nas mãos ramalhetes, despois perfumes, etc. Continuou sua devoção per muitos dias; mas como o Deus era de pau tais tinha as
respostas. A lazeira cada vez era maior, a bolsa mais magra, a fome mais viva;
e quanto mais o apertavam as necessidades, mais deprecativas
e brados multiplicava, e o Deus não lhe acudia. Ele um
dia enfadado de tanto buscar de bonina, e fazer de ramalhetes sem proveito,
deu-lhe a cólera e enviando-se ao Ídolo, lhe pegou per
uma perna e deu com ele no chão: e como era já antigo e carunchoso, quebrou em
pedaços: começam de se espalhar os dobrões e as moedas de caras, ouro velho e
fino. Ele, que não cabia de contente, olha pera o Idolo, e diz-lhe:
– E assim vos quereis vós? Por bem zombastes de mim e
por mal me acudistes; quisestes-vos por mal. – Vem a dizer isto, que há gente,
que quanto mais a animais, e fazeis de bem, mais de pedra e mais de pau se faz:
vindes a tratá-la como Deus, e não há fruta no mundo que não vá pera aquele Ídolo; as primícias, que são
de Deus, ele as logra; não há cravo, nem bonina, que suas mãos e narizes
não gozem; as cortesias e continências não têm número; mas pera
vos fazer bem, é falar com um pau, ou com um Ídolo feito dele; tais como estes,
espedaçá-los e maltratá-los, deitam alguma cousa.
(Fr. João
de Ceita, Quadragen., pág. 267, col. 2)
Fábulas portuguesas
O lobo e a ovelha
Uma vez
um lobo encontrou uma ovelha, que andava a pascer, e disse-lhe:
– Ó
ovelha! eu como-te.
Respondeu
a ovelha:
– Pois
sobe ali para cima, que eu entretanto vou pascendo, e depois entro-te lá mesmo
pela boca dentro.
O lobo
subiu para o alto do monte e esperou. A ovelha assim que viu o lobo longe,
fugiu. O lobo começou a correr atrás dela, e como a não pudesse agarrar, disse:
Eu, que
sou lobinho-cão
Nunca
corri tanto em vão.
Respondeu
a ovelha:
Eu, que
sou ovelhinha ruça,
Nunca
corri tanto de escaramuça.
(Vila Cova, Leite de Vasconcelos, Trad.,
p. 183)
Fábulas portuguesas
O lobo e a raposa
Quando
tudo era falante,
Diz que a
Raposa caiu
Num poço
de água abundante:
Chegou um
Lobo arrogante,
Que
passava acaso, e a viu.
Duma polé
pendurava,
Porque o
poço era profundo,
Uma
corda, a qual atava
Dous baldes: um no alto estava,
Noutro a
Raposa no fundo.
Pois a
bicha, que era arteira,
Chama o
Lobo, e diz: – Senhor,
Já que eu
não fui a primeira,
Socorrei
vossa parceira,
Que eu sei
que tendes valor.
Ora assim
sem mais porfia
O Lobo,
que é fanfarrão,
Já no
balde se metia:
Ele cai,
ela subia
Por uma
mesma invenção.
Toparam-se
ao perpassar;
E o Lobo,
meio caindo,
Nem lhe
ousava de falar;
Ela a
rir, e a arrebentar
De se ver
tão bem subindo.
Em fim ao
medo venceu,
Fala o
Lobo, e diz: – Comadre,
Isto vos
mereça eu?
Ela a
zombar do sandeu,
Nem lhe
quis chamar Compadre.
Mas
diz-lhe: Dum vagabundo,
Teus
queixumes não me empecem;
Acaba já
de ir-te ao fundo:
Isto são cousas do mundo,
Quando um
sobe, os outros decem.
(D. Francisco Manuel de Meio, Obras
Métricas, Cart. VI, est. 21 e seg.)
Fábulas portuguesas
O ódio e o amor
Ouvi que
o Ódio e o Amor
Jogaram a
matar um dia,
A quem
matava melhor:
Um se
armou todo de dor,
Outro
todo de alegria.
Ia o
Ódio, o arco atesado,
Sempre
envolto em fúria brava,
Fero,
medonho, indignado:
Ia o
Amor, mui repousado,
Salvando
a quantos topava.
As
gentes, que o Ódio viam
De tal
jeito, anteparavam,
E as mais
sem parar fugiam:
As setas
se lhe perdiam,
Como do
arco lhe voavam.
Mas indo
delas fugindo
Os
tristes homens com medo,
Eis o
Amor, que era já indo,
Vai
matando e vai ferindo,
Muito
falso, e muito quedo,
Depois ao
fazer da conta,
Com ser
destro o Ódio e membrudo,
Não fez
nada, ou tanto monta;
E o Amor só,
sem perder ponta,
Tinha
morto quase tudo.
Donde de
certo se sabe,
Que por
mais que o Amor estude,
Inda o Ódio é menos grave;
Somos
tais, que em nós não cabe
Excesso,
nem de virtude.
(D. Francisco Manuel de Melo, Obras
Métricas, cart. I, est.
19 e seg.)
Fábulas portuguesas
O que faz mal a si mesmo por fazê-lo a outrem
Houve um rei antigamente neste mundo, que sabendo de dous vassalos seus, que eram grandes inimigos entre si,
mandou chamar o mais apaixonado, e disse-lhe:
– Quero-vos fazer uma mercê, e há-de ser a que vós me
pedirdes; com advertência que a hei-de fazer dobrada a Fulano, de quem sei,
sois grande inimigo.
Beijou a mão ao rei pelo favor, e pediu logo por
mercê, que lhe mandasse arrancar um olho; porque assim seria obrigado a
arrancar dous ao outro, para que ficasse cego, ainda
que ele ficasse torto. E bem cego estava, quando procurava dano alheio sem
proveito próprio.
(Arte de Furtar, pág. 468 e seg.)
Teófilo Braga, Contos
Tradicionais do Povo Português.
Fábulas portuguesas
O rato da cidade e o rato da aldeia
Um Rato usado à cidade,
Tomou-o a noite por fora;
(Quem foge à necessidade?)
Lembrou-lhe a velha amizade
De outro Rato, que ali
mora.
Faz um homem a conta errada
Muitas vezes, e acontece
Crescimento na jornada;
Diz, e entretanto na
pousada,
Cidadão logo parece.
O pobre assi
salteado
De um tamanho cortesão,
Em busca de algum bocado,
Vai e vem, sempre
apressado,
Sem tocar cos pés no chão.
Ordena a sua mezinha,
Pôs-lhe nela algum legume,
Mesura, quando ia e vinha,
Deu-lhe tudo quanto tinha,
Pede perdão por costume.
Diz, quem tal adivinhara,
Contra o cortesão severo,
Que tanto andara e buscara,
Té que alguma cousa
achara,
A quem tanto devo e quero?
Cumpre porém nesta mesa,
Que haja mais fome, que
gula:
Tem-lhe a fogueirinha
acesa,
Faz rostro
ledo à despesa,
Vê-a o outro, e dissimula.
E dizendo está consigo:
Que gente a dentre penedos!
Quando há de Pedro e
Rodrigo!
Que bem diz o exemplo
antigo,
Que não são iguais os
dedos.
Ora, depois de comer
Jazendo detrás do lar,
Começa o nobre a dizer:
Dous dias, que hás-de viver,
Aqui os queres passar?
Na aspereza do deserto,
Que não sei quem o suporte,
De urzes e de tojos
coberto,
Sendo tudo tão incerto,
Sendo só tão certa a morte?
Vive, amigo, a teu sabor;
Mais é que cousa perdida
Quem por si escolhe o pior;
Vai-te comigo onde eu for,
Lá verás que cousa é vida.
E depois que ambas
provares,
(Que eu de outrem não
adivinho)
Quando te enganado achares,
Aqui tens os teus manjares,
I também tens o caminho.
Assi disse; eis o vilão
Em alvoroço e balança,
Ia, e vinha o coração,
Ora si, e ora não;
Venceu porém esperança.
E que pode i al fazer!
Vive com tanto suor,
E mal pode inda viver;
Mal pode o amo vencer,
Sempre a saída é maior.
E diz: Quem não se
aventura,
Não ganha; quem há que o
negue?
Escolheram hora segura,
Foram
pela noite escura;
Que o rico, o pobre segue.
Entram por paços dourados,
Cheirosos inda da ceia;
Tristes dos casais
colmados,
Do sol, do vento queimados,
Pobre e faminha
da aldeia!
Vou-me por meu conto
avante;
Mostra-lhe o cidadão tudo,
Que traz no bucho um
Infante;
Quem quereis que não se
espante?
Anda o vilãozinho
mudo.
Que somente em provar
Das cousas,
que mais lhe aprazem,
Já começam de enjeitar;
Fartos para arrebentar
Em lãs estrangeiras jazem.
Nisto o despenseiro chega,
Que estes bens não duram
tanto;
Vê-os, mas a pressa o cega,
Um tiro, ou dous mal emprega,
Corre-os de canto em canto.
Os cães à volta se
ergueram,
Ladram, que é alto serão.
As casas estremeceram;
Todos juntos lá correram.
Foi dita que os gatos não.
Sabia o da casa a manha,
Subiu o paço, e fugiu:
O Ratinho da montanha,
Aos pés em pressa tamanha
O coração lhe caiu.
Enfim passado o perigo
Da morte, que ante si vira,
O coitado só consigo
Polo seu repouso antigo,
Que mal deixara, suspira.
Minha segura pobreza,
Se chegarei a ver, quando
A vós torne, e esta
riqueza,
Mal, que o mundo tonto
preza,
Fuja, se puder, voando!
Ai baldias esperanças,
Meu entendimento fraco!
Deixemos tais abastanças,
Tais riquezas, tais mostranças,
Deus me torne ao meu
buraco.
(Francisco de Sá de Miranda, Cart. III, est. 39,
e segs.)
Fábulas portuguesas
Variante
Diz que lá não sei onde se ajuntaram as Lebres a
conselho, e que por todas foi apontado, que se fossem lançar em uma lagoa, e se
afogassem, sem ficar mais geração de tão triste gente, perseguida de todo o
mundo, que toma seu perigo por divertimento. Ora indo já correndo todas,
fizeram tão grande matinada, que as ouviram as Rãs que estavam junto do charco;
e como tivessem grande medo do ruído, foram-se lançando na água, ganhando-lhe a
dianteira do precipício.
Notou isso uma
das lebres, que ia diante, e parou, fazendo deter as outras, a quem disse:
– Senhoras, tende mão, não
nos lancemos a perder por miseráveis, pois vemos que ainda o são mais estas
Rãs, que têm medo de nós, e a nosso respeito se precipitam.
O que digo, que não há estado tão triste no mundo que
não haja outro mais triste, com que aquele possa consolar-se.
(D. Francisco Manuel de Melo, Apólog. Dialog., pág.
107 e seg.)