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MITOS E MITOLOGIA

MITOLOGIA Egípcia

(Fonte:”Dicionario de mitologia”, de Tassilo Orpheu Spalding)

 

As AVENTURAS DE HORO E DE SET

 

 

Da narração acima referida, deduz-se, com bastante clareza, que mesmo os maiores deuses estavam sujeitos a fraquezas e imperfeições características dos mortais; as aventuras nas quais se envolviam, não eram de molde a elevar seu prestígio. Con­tudo, essas narrativas faziam parte dos mitos canónicos. Com mais frequência e com mais realismo elas aparecem nas lendas que se formaram, no decurso dos séculos, à margem da mito­logia oficial.

Os egípcios cultivavam um género narrativo que mesclava a mitologia ortodoxa a relatos populares, onde os deuses aparecem de maneira inesperada e insólita:

Há um conto, que data da época do Novo Império, onde o humor popular se expandiu com notável liberdade; trata-se das aventuras do bravo Horo e do perverso Set, os deuses antagó­nicos da mitologia canónica.

Tanto a língua vulgar do Novo Império, o neo-egípcio, como o estilo, provam à saciedade que o conto é de origem popular; mas o caráter não-canônico se evidencia com mais nitidez por causa da mistura de elementos tirados dos mitos oficiais e epi­sódios que têm origem no folclore. Nesse conto, além disso, encontram-se temas mitológicos de origem assaz diversa, o que dificulta, não raro, a compreensão e lhe empresta um certo tom ilógico, próprio das composições populares formadas no decurso dos séculos e que se transmitiram por via oral.

No resumo que se segue será fácil verificar a verdade dessas asserções.

Quando Osíris abandonou as plagas terrestres a fim de ir habitar o país dos Bem-aventurados, dois deuses reivindicaram o trono do Egipto, Set, deus pérfido e violento, que assassinara o irmão, e Horo, filho póstumo de Osíris, bom e justiceiro. Ísis, mãe de Horo, o criara num recanto isolado do Delta, na doce esperança de que, quando crescesse, vingaria o pai e reinaria por sobre todo o Egipto.

A contenda foi levada ao tribunal dos deuses aos quais com­petia decidir quem reinaria sobre o trono. O juiz supremo desse tribunal era o Senhor Universal, forma divina que tanto pode corresponder a Atum como a Ré-Haracti, ou a ambos ao mesmo tempo; esses dois deuses formavam a base do sistema heliopo­litano.

Quando se inicia a narração, o processo já está sub judice há mais de oitenta anos; Horo e Set continuam argumentando, na esperança de convencer os juizes da equidade de suas res­pectivas pretensões. A maioria dos deuses está inclinada a reco­nhecer a validade dos títulos de Horo e a iniqüidade de Set. Mas o Senhor do Universo, personagem que nesse conto surge como ser risível e de imparcialidade duvidosa, hesita proferir a sentença com receio de atrair as iras do rancoroso Set. Um dos juizes sugere, então, que se consulte Neit, a deusa de Sais, cuja reputação de sábia é universalmente reconhecida. Tot escre­ve-lhe uma carta dizendo da causa e explicando-lhe as dificul­dades em que os deuses se encontram para dar um veredicto justo e honesto; Neit responde declarando que o direito está com Horo: A ele, somente a ele, deve ser atribuído o trono; propõe, mais, que se dê a Set uma indemnização sob a forma de duas deusas asiáticas, Anat e Astarte, que ele poderá desposar. Concordam todos os deuses, mas o Senhor do Universo pondera que Horo é ainda muito jovem e muito fraco para assumir encar­go tão pesado e difícil como é o trono. Surge, então, outra personagem, Baba, deus maroto e, segundo tudo indica, aliado de Set; cheio de ira, Baba injuria o presidente do tribunal; tumulto geral na assembleia. O Senhor Universal, profundamente ofendido, retira-se do recinto. Nesse momento intervém a deusa Hator, que, com gracejos e facécias não só acalma o juiz supremo do tribunal, mas até consegue restituir-lhe o bom humor. Reco­meça, novamente, a sessão; os dois contendores, Horo e Set, vol­tam a reivindicar seus direitos. Grande parte dos deuses arvo­rados em juizes defendem a causa de Horo; Ísis propõe que se "levem as palavras para diante de Atum, o príncipe poderoso que assiste em Heliópolis, e para diante de Quépri, que reside na sua barca". Essa intervenção da mãe de Horo tem como resultado excitar em Set tal furor que ele recusa prosseguir na demanda enquanto Isis estiver com a sua presença influenciando os juízes, e, com suas palavras insinuantes, fazendo com que o tribunal dos deuses se torne parcial. O Senhor Universal aceita as objurgatórias de Set, e declara que os debates continuarão numa ilha bem protegida, onde não será permitida a presença de Ísis. A seguir dá severas ordens a Anti, o deus-barqueiro, espécie de Caronte egípcio, para que não deixe Ísis se aproxi­mar da ilha, pois sua pessoa é considerada indesejável. A deusa, astuciosamente, pensa logo num artifício que lhe permita atingir a ilha não obstante as severas proibições do Senhor Universal. Transforma-se numa velha e começa a negociar com Anti; final­mente, com a ajuda de um anel de ouro, consegue que o deus­-barqueiro a conduza para a ilha onde estão reunidos os juízes. Lá chegada, muda-se numa virgem de beleza deslumbrante e con­segue atrair a atenção de Set, que, sem saber quem fosse aquela formosa donzela, se deixa prender pelos seus encantos e chega a propor-lhe um encontro amoroso. Ísis, aproveitando-se das disposições ardorosas de Set, conduz a conversação para a causa que estava sendo julgada, e, com suma habilidade, consegue fazer com que Set reconheça que os direitos à sucessão de um descendente directo são mais legítimos do que quaisquer outros. Feliz pelo êxito alcançado, Ísis evola-se sob a forma de milhafre e deixa seu interlocutor não somente desapontado mas furioso e humilhado. Em desespero de causa, corre a queixar-se da duplicidade da deusa ao Senhor Universal; este, porém, reco­nhece que Set se condenou a si mesmo.

Em outra sessão, convoca da já na margem ocidental, o Mestre Universal relata aos seus pares as declarações impru­dentes de Set, e atribui a coroa a Horo, como legítimo sucessor ao trono. Mas Set não se conforma com a derrota; jamais permitirá que Horo reine. Propõe, portanto, uma competição, onde esperava vencer o adversário. Ambos se transformariam em hipopótamos e ganharia a causa aquele que conseguisse per­manecer mais tempo embaixo d'água. Aceito o alvitre, ambos mergulham. Ísis, porém, teme pela sorte do filho. Resolve ajudá-lo. Lança n'água um arpão com o fito de ferir Set; mas, em lugar de atingir a este, infelizmente fere seu próprio filho, que se debate sob a água. Finalmente reconhece seu erro e mais que depressa atinge Set. A seguir, numa dessas inconsequências que recheiam o conto, apiada-se do concorrente ferido e lhe retira o arpão das costas. Inesperadamente, Horo indigna-se com a atitude materna, e, num súbito impulso de ira, degola a mãe; depois transporta o corpo mutilado para a montanha, onde ele se transforma numa estátua de sílex.

O Senhor Universal, furioso com a série de disparates, ordena que Set vá buscar Horo. Aquele, em lugar de cumprir as ordens recebidas, trava luta com Horo e arranca-lhe os olhos, que logo se transformam no astro do dia. Hator, que encontrou o infeliz Horo naquele deplorável estado, derrama-lhe leite de gazela nas cavidades oculares e crescem-lhe novos olhos.

Entretanto Set não abandonara seus sinistros projectos. Simu­lando sincera reconciliação com o adversário, convida-o para um banquete, no qual a paz seria selada e o passado esquecido. Na verdade, aproveita a ocasião para agir de maneira infame, deson­rando seu hóspede. Horo, com o auxílio materno, vinga-se do rival usando o mesmo processo. Na sessão imediata do tribunal, na presença de todos os deuses-juízes, cobre Set de confusão.

Ainda que a decisão judicial fosse favorável a Horo, Set tenta um último recurso. Recorre, novamente, às competições. Subiriam ambos em barcos de pedra e quem ganhasse a regata seria o rei e ganharia o trono. Horo construiu uma barca de madeira e deu-lhe aspecto de pedra, iludindo o concorrente. Naturalmente que sua barca chegou à meta, enquanto a de Set logo imergiu. Este, imediatamente, se transforma num hipopó­tamo, vira a embarcação de Horo e quase o consegue matar. Horo queixa-se a Neit. A decisão que ela emitira fora confir­mada reiteradas vezes pelos deuses, e, contudo, restava sem efeito. Set continuava a exigir seus direitos e não se submetia à decisão judicial. Como se o tribunal não estivesse satisfatoriamente esclarecido a respeito dos direitos dos litigantes, o Senhor Uni­versal manda uma consulta, por escrito, a Osíris, pai de Horo. Aquele logo responde admirando-se de que a decisão judicial tardasse tanto a ser cumprida; admirava-se de que demorassem em investir Horo do poder real, visto que seus direitos eram incontestáveis. Continuando a carta, salienta que, na qualidade de deus da Vegetação, estava na iminência de deixar o país sem víveres; como deus dos Defuntos, via-se compelido a enviar para a terra alguns emissários da Morte, que de imediato reprimiriam a Injustiça e a Mentira. Tremem os deuses; a carta produziu seus efeitos. Temendo as palavras ameaçadoras de Osíris, os juizes correm a proferir o veredicto solene: o trono pertence a Horo.Set, agrilhoado, comparece diante do Senhor Universal,

e é constrangido a reconhecer os direitos do rival. Isto feito, Horo, solenemente, ascende ao trono paterno; regozijo universal; lsis exulta; os deuses o aclamam; a felicidade é total.

Quanto a Set, deixam-lhe o consolo de urrar no céu como deus ou génio das Tempestades. Como se vê, o conto, às vezes, tem afinidade com as fábulas milésias. Já quiseram ver, nessa produção da época dos Ramsés, um testemunho do enfraquecimento da fé; mas esse conto, criado para divertir o povo, dirigia-se a um público muito diferente do que actualmente estamos habituados a estudar. Não sabemos, exatamente, como eles encaravam essas brincadeiras.

 

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