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Magia sexual
A História da Sexualidade
A
sociedade vive desde o século XVIII, com a ascensão da burguesia, uma fase de
repressão sexual. Nessa fase, o sexo se reduz a sua função reprodutora e o
casal procriador passa a ser o modelo. O que sobra vira anormal - é expulso,
negado e reduzido ao silêncio. Mas a sociedade burguesa - hipócrita - vê-se
forçada a algumas concessões. Ela restringe as sexualidades ilegítimas a
lugares onde possam dar lucros, como nas casas de prostituição e hospitais
psiquiátricos. A justificativa para isso seria que, em uma época em que a
força de trabalho é muito explorada, as energias não podem ser dissipadas nos
prazeres. Certo?
Segundo Michel Foucault, filósofo francês, está quase tudo errado. A hipótese
descrita acima é chamada por ele de hipótese repressiva e vem sendo aceita
quase como uma verdade absoluta. Mas Foucault descontrói esse pensamento e
formula uma nova e desconcertante hipótese, mostrando a seus leitores que
ainda que certas explicações funcionem, elas não podem ser encaradas como as
únicas verdadeiras, pois, segundo ele, a verdade nada mais é do que uma
mentira que não pode contestada em um determinado momento.
De certa forma, a hipótese repressiva não pode ser contestada, já que serve
bem à sociedade atual. Foucault afirma que, para nós, é gratificante formular
em termos de repressão as relações de sexo e poder por uma série de motivos.
Primeiramente, porque, se o sexo é reprimido, o simples fato de falar dele e
de sua repressão ganham um ar de transgressão. Segundo, porque, aceitando-se
a hipótese repressiva, pode-se vincular revolução e prazer, pode-se falar num
período em que tudo vai ser bom: o da liberação sexual. Sexo, revelação da verdade,
inversão da lei do mundo são, hoje, coisas ligadas entre si. Finalmente,
insiste-se na hipótese repressiva porque aí tudo que se diz sobre o sexo
ganha valor mercantil. Por exemplo, certas pessoas (psicólogos) são pagas
para ouvirem falar da vida sexual dos outros.
Esse enunciado da hipótese repressiva vem acompanhado de uma forma de
pregação: a afirmação de uma sexualidade reprimida é acompanhada de um
discurso destinado a dizer a verdade sobre o sexo. Foucault, no livro
História da Sexualidade I, interroga o caso de uma sociedade que há mais de
um século se "fustiga ruidosamente por sua hipocrisia, fala prolixamente
de seu próprio silêncio, obstina-se em detalhar o que não se diz e promete-se
liberar das leis que a fazem funcionar". A questão básica não é
"por que somos reprimidos, mas por que dizemos, com tanta paixão, com
tanto rancor contra nosso passado mais próximo, contra nosso presente e
contra nós mesmos que somos reprimidos?".
A partir daí, o autor nos propõe uma série de questionamentos: a repressão
sexual é mesmo uma evidência histórica, como tanto se afirma por aí? Serão os
meios de que se utiliza o poder mesmo repressivos? Será que não se utilizam
de formas mais ardilosas e discretas de poder? A crítica feita à repressão
quer mesmo acabar com esta ou faz parte da mesma rede histórica que denuncia?
Existe mesmo uma ruptura histórica entre Idade da repressão e a análise
crítica da repressão? Não seria para incitar a falar sobre ele que o sexo é
exibido como segredo que é indispensável desencavar?
Não é que Foucault diga que o sexo não vem sendo reprimido; afirma, sim, que
essa interdição não é o elemento fundamental e constituinte a partir do qual
se pode escrever a história do sexo a partir da Idade Moderna. Ele coloca a
hipótese repressiva numa economia geral dos discursos sobre sexo a partir do
século XVII. Mostra que todos esses elementos negativos ligados ao sexo
(proibição, repressão etc.) têm uma função local e tática numa colocação
discursiva, numa técnica de poder, numa vontade de saber.
A hipótese de Foucault é que há, a partir do século XVIII, uma proliferação
de discursos sobre sexo. Diz ele que foi o próprio poder que incitou essa
proliferação de discursos, através de instituições como a Igreja, a escola, a
família, o consultório médico. Essas instituições não visavam proibir ou
reduzir a prática sexual. Visavam, sim, o controle do indivíduo e da
população.
A explosão discursiva sobre sexo de que trata Foucault veio acompanhada de
uma depuração do vocabulário sobre sexo autorizado, assim como de uma
definição de onde e de quando podia se falar dele. Regiões de silêncio - ou,
pelo menos, de discrição - foram estabelecidas entre pais e filhos,
educadores e alunos, patrões e serviçais etc.
A Igreja Católica, com a Contra-Reforma, deu início ao processo de incitação
dos discursos sobre sexo ao estimular o aumento das confissões ao padre e
também a si mesmo. As "insinuações da carne" têm de ser ditas em
detalhes, incluindo os pensamentos sobre sexo. O bom cristão deve procurar
fazer de todo o seu desejo um discurso. Ainda que tenha havido uma interdição
de certas palavras, esta é apenas um dispositivo secundário em relação a essa
grande sujeição, é apenas uma maneira de tornar o discurso sobre sexo
moralmente aceitável e tecnicamente útil.
Ainda no século XVIII e principalmente no século XIX, houve uma dispersão dos
focos de discurso sobre o sexo, que antes eram restritos à Igreja. Houve uma
explosão de discursos sobre sexo, que tomaram forma nas diversas disciplinas,
além de se diversificarem na forma também. A medicina, a psiquiatria, a
justiça penal, a demografia, a crítica política também passam a se preocupar
com o sexo. Analisa-se, contabiliza-se, classifica-se, especifica-se a
prática sexual, através de pesquisas quantitativas ou causais.
Esses discurso são, realmente, moralistas, mas isso não é o essencial. O
essencial é que eles revelam a necessidade reconhecida de superar esse
moralismo. Supõe-se que se deve falar de sexo, mas não apenas como uma coisa
que se deve simplesmente coordenar ou tolerar, mas gerir, inserir em sistemas
de utilidade, regular para o bem de todos, fazer funcionar segundo um padrão
ótimo. O sexo não se julga apenas, mas administra-se . Portanto, regula-se o
sexo não pela proibição, mas por meio de discursos úteis e públicos, visando
fortalecer e aumentar a potência do Estado (que não significa aqui
estritamente República, mas também cada um dos membros que o compõe).
Um dos exemplos práticos dos motivos para se regular o sexo foi o surgimento
da população como problema econômico e político, sendo necessário analisar a
taxa de natalidade, a idade do casamento, a precocidade e a freqüência das
relações sexuais, a maneira de torná-las fecundas ou estéreis e assim por
diante. Pela primeira vez, a fortuna e o futuro da sociedade eram ligados à
maneira como cada pessoa usava o seu sexo. O aumento dos discursos sobre sexo
pode, então, ter visado produzir uma sexualidade economicamente útil.
Da mesma forma em que o sexo passou a ser um problema para a demografia, também
passou a despertar as atenções de pedagogos e psiquiatras. Na pedagogia, há a
elaboração de um discurso acerca do sexo das crianças, enquanto, na
psiquiatria, estabelece-se o conjunto das perversões sexuais. Ao se assinalar
os perigos, despertam-se as atenções em torno do sexo. Irradiam-se discursos,
intensificando a consciência de um perigo incessante - o que incita cada vez
mais o falar sobre sexo.
O exame médico, a investigação psiquiátrica, o relatório pedagógico, o
controle familiar, que aparentemente visam apenas vigiar e reprimir essas
sexualidades periféricas, funcionam, na verdade, como mecanismos de dupla
incitação: prazer e poder. "Prazer em exercer um poder que questiona,
fiscaliza, espreita, espia, investiga, apalpa, revela; prazer de escapar a
esse poder. Poder que se deixa invadir pelo prazer que persegue - poder que
se afirma no prazer de mostrar-se, de escandalizar, de resistir." Prazer
e poder se reforçam.
Pode-se afirmar, então, que um novo prazer surgiu: o de contar e o de ouvir. É
a obrigação da confissão, que se difundiu tão amplamente, que já está tão
profundamente incorporada a nós, que não a percebemos mais como efeito de um
poder que nos coage. A confissão se diversificou e tomou novas formas:
interrogatórios, consultas, narrativas autobiográficas. O dever de dizer tudo
e o poder de interrogar sobre tudo se justificam no princípio de que a
conduta sexual é capaz de provocar as conseqüências mais variadas, ao longo
de toda a existência. O sexo aparece como uma superfície de repercussão para
outras doenças. Mas pressupõe-se que a verdade cura quando dita a tempo e
quando dita a quem é devido.
Michel Foucault constrói, portanto, uma nova hipótese acerca da sexualidade
humana, segundo a qual esta não deve ser concebida como um dado da natureza
que o poder tenta reprimir. Deve, sim, ser encarada como produto do
encadeamento da estimulação dos corpos, da intensificação dos prazeres, da
incitação ao discurso, da formação dos conhecimentos, do reforço dos
controles e das resistências. As sexualidades são, assim, socialmente
construídas. Assim como a hipótese repressiva, é uma explicação que funciona.
Cada um que aceite a verdade que mais lhe convém. Ou invente novas verdades.
Por Lara Haje
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