Wicca, a religião da natureza

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A maioria das religiões mais visíveis na atualidade falam sobre a relação do ser humano com as outras pessoas, a Wicca vai muito além. Ela fala não só sobre as nossas relações humanas, mas também com os animais, natureza e conosco mesmos. Wiccanianos celebram a mudança das estações e das fases lunares através de rituais capazes de nos conectar comos fluxos e refluxos trazidos para a Terra e, conseqüentemente, para nossas vidas em decorrência dessas mudanças naturais.

A natureza é o coração e alma da religião Wicca que ensina que todos os seres, animados e inanimados possuem vida e são merecedores de nosso respeito e consideração. Sendo assim, vemos a natureza como diferentes faces da Deusa capazes de nos suportar, proteger, alimentar e manter vivos. Por esta razão, os Wiccanianos expressam uma grande reverência a natureza e buscam no seu dia adia formas de se integrarem à ela, procurando viver em harmonia com as leis naturais, levando em consideração formas de se viver ecologicamente, reciclando, reutilizando e reduzindo a exploração dos recursos naturais. A posição Pagã de reverência e preservação à natureza é completamente diferente daquela incentivada pelas religiões patriarcais, onde o homem foi ordenado a dominar e explorar os recursos naturais e o meio ambiente. Hoje em dia muitos Bruxos são ecologistas, ambientalistas, líderes comunitários, sempre preocupados com a atual situação ecológica e social.

A Wicca é uma religião muito plural e, sendo assim, diferentes Bruxos expressarão seu respeito pela Terra de formas variadas. Alguns são vegetarianos, outros recicladores conscientes e muitos ainda tornam-se ativistas ambientais engajados na luta e preservação da Terra. Cada um possui seu próprio chamado. Encarar a Terra como Sagrada é vital para os Wiccanianos. Isto facilita a conscientização de nosso verdadeiro lugar no mundo e na sociedade. Wiccanianos buscam a unidade com as forças naturais, com os animais, árvores, oceanos, sol, lua e estrelas por acreditarem que as forças da natureza são manifestações do Divino.

De acordo com o pensamento Wiccaniano, a Terra é um organismo vivo e quando preservada e reverenciada torna-se nossa aliada e não inimiga. O contrário ocorre quando ela é explorada e usurpada. Podemos perceber quantas doenças e desastres naturais estão ocorrendo nos últimos tempos por causa da exploração indiscriminada da Mãe Terra. Se tudo na natureza é vivo e possui um espírito, também carrega em si sabedoria, muito mais antiga e sábia, para ser compartilhada com os seres humanos do que os nossos conhecimentos atuais. As forças encontradas na natureza são antigas e desejam se comunicar conosco para ensinar a forma de curar a Terra e mostrar o caminho de volta a um modo de vida mais harmônico. Todos os Wiccanianos acreditam que a Terra está doente e que o retorno da Deusa será capaz de promover a cura da Mãe Terra. Por isso, devemos viver em harmonia com ela, reverenciando todas as formas de vida e precisamos desenvolver maneiras de nos religarmos à Deusa para que ela continue nos dando vida, força e energia para crescer. As principais características da Wicca como religião da natureza baseiam-se :

– Na crença de que rituais e poderes adormecidos dentro de nós precisam ser despertos para transformar e curar a vida.

– Na convicção de que devemos buscar através da natureza formas de entrar em contato com ela, buscando nossa reconexão com os seus fluxos naturais que invariavelmente trazem mudanças interiores em cada ser.

– Na afirmação da vida e de sua sacralidade da Terra como símbolo da perfeição, totalidade, unidade, completitude e cura para todos os males

– Nas forças da natureza como a energia sustentadora da vida, vendo nela a própria Deusa manifestada.

– Na preservação e cuidado com a natureza, considerada templo e moradia dos Deuses que acreditamos

A Wicca não é uma religião antropocêntrica e exatamente por isto não coloca as necessidades humanas acima daquelas encontradas na natureza. Sua filosofia prega um melhor relacionamento entre homem e natureza. Para a Wicca também não existe a idéia de que a natureza deve ser valorizada enquanto a humanidade deve ser desvalorizada. Para nós cada coisa tem a sua importância e lugar. A Terra é o corpo da Deusa e cada Wiccaniano através de suas atitudes, respeito à natureza e ações conscientes torna-se uma agulha fazendo a acupuntura que trará a cura para o mundo. Nós Bruxos acreditamos que o retorno da ligação com a natureza é a única maneira de preservar nossa própria existência, para vivermos melhor e em harmonia com toda a vida. Aprendendo a viver em conexão com a natureza os Wiccanianos forjam uma profunda ligação com o Divino.

(Fonte: Wicca para Todos, Claudiney Prieto)

 

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A religiosidade no período medieval

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 Autoria de Ana Carolina Lappe do Prado Teixeira Neto

 

INTRODUÇÃO

O contexto histórico do período medieval foi marcado por aspectos relacionados ao terror: tortura, forte influência religiosa na vida do povo, bruxaria, colheitas mal sucedidas, miséria, marginalização, violência, crescimento demográfico acompanhado da falta de alimentos, supremacia do Estado perante os súditos, desigualdade social. A partir do estudo desses aspectos, a tentativa de se traçar um panorama da situação apresenta-se mais palpável.

 Entretanto, a análise isolada dos componentes históricos sem um olhar atento acerca da formação mental daquele período não é satisfatória para a sua plena compreensão. A nossa inserção em outro paradigma – obviamente bastante distinto do medieval – colabora com que vejamos outras situações diferentemente, a partir dos olhos da própria sociedade na qual fomos criados. Dessa forma, não é fácil, hoje, conceber a ideia de que torturar um indivíduo em praça pública teria finalidade didática ao resto do povo. Entretanto, a dor do condenado na Idade Média simbolizava aos demais a força do Estado e de Deus para com aqueles que ousassem transgredir as regras políticas e morais impostas. A tortura e a pena de morte, dentre outras medidas sancionatórias, eram algo que, por constituírem práticas correntes na época, justificavam-se e eram, de certa forma, dotadas de efetividade.

Destarte, procura-se aqui lançar um olhar mais abrangente acerca da presença da religiosidade no contexto social medieval, bem como uma breve análise das práticas da Inquisição e das acusações de bruxaria por meio de casos concretos.

A INFLUÊNCIA DA IGREJA NA SOCIEDADE MEDIEVAL

Europa, ano de 1666, Elizabeth Cubon foi acusada de prática de bruxaria. Em um período repleto de práticas ofensivas à integridade humana, a ré teve “sorte” em não ter morrido queimada na fogueira. O contexto histórico da Inquisição iniciou-se no século XIII e desde o seu princípio foi verificada a aplicação de procedimentos penais tidos atualmente como agressivos e atrozes. O estudo de tais procedimentos sancionadores deve estar acompanhado de uma análise histórica dos costumes, crenças e valores vigentes na época, os quais nos ajudarão a compor o paradigma vivido por aquela sociedade.

Hoje, com a tendência de valorização cada vez mais incisiva dos direitos humanos, direitos individuais, não é simples conceber as práticas de tortura utilizadas pela Inquisição. Todavia, na vigência do século XIV, por exemplo, a soberania da Igreja encontrava o seu poder no intenso temor a Deus compartilhado pela maior parte da sociedade. Caberia à Igreja, assim, a função de salvar os fiéis e de determinar a punição daquelas práticas que não condissessem com os ideais morais da Santa Igreja.

Carlo Ginzburg, em Mitos, Emblemas e Sinais, aponta de forma esclarecedora o simbolismo da “alteza”, isto é, aquilo inatingível, o que também engloba o que não deve ser questionado. Assim, reflete-se a manutenção desse simbolismo tanto pela esfera política quanto pela esfera religiosa. No que concerne à esfera política, havia a intenção excessivamente conservadora de manutenção da hierarquia social e política, censurando-se de maneira atroz qualquer um que ousasse desafiar a ordem Estatal. Frisa-se que a esfera religiosa atuava conjuntamente com a política, de modo que uma reforçava o poderio da outra; ademais, os dogmas religiosos eram incontestáveis: era vedado tentar conhecer os segredos de Deus. Ginzburg aponta o uso político da religião como o mais oculto dos segredos do poder.

Aliás, se adotarmos essa perspectiva do autor, teríamos, nesse uso político da religião, uma utilização indubitavelmente bem articulada.

Como exemplo de a legitimidade do poder conter um fundamento religioso, o historiador Quentin Skinner nos traz Bossuet que, em seu tratado Política retirada das palavras mesmas das Santas Escrituras, em 1679, afirmava que “todo súdito que resista às determinações de um rei, mesmo que este seja perverso, “seguramente receberá a condenação eterna”, e ainda que “toda resistência à autoridade constitui uma resistência ao mandamento divino” (p. 192).” (BOSSUET apud SKINNER, 1999, p. 393).

Destarte, e dado o poderio da Igreja, o principal instrumento por ela utilizado no período da Inquisição era o terror, o qual era incitado tanto pelas práticas de tortura e morte – havia incontáveis maneiras de se matar o indivíduo após a tortura – quanto pela interferência constante da esfera religiosa na vida da sociedade. Aliás, a eficácia da tortura e das penas capitais como teor didático durou enquanto não tinha lugar a concepção individualista. É o que demonstra Lynn Hunt em A Invenção dos direitos humanos: uma história. A princípio, o objetivo principal da prática pública da tortura seria o de servir de exemplo aos demais. Assim, as dores sofridas pelo condenado não pertenciam somente a ele, tendo propósitos políticos capazes de reafirmar a autoridade estatal e a ordem moral. Contudo, com o passar do tempo, essa questão mudou de figura, pois pela visão individualista a dor era apenas do indivíduo. Dessa forma, não mais caberia o sacrifício dele para o “bem” da comunidade. O corpo passou a ter um papel distinto daquele que tinha no início dessa prática e as pessoas começaram a se ver mais como indivíduos do que como mero “povo”.

Voltando-se à interferência da Igreja, a intolerância a quaisquer exercícios de questionamento adentrava a vida de cada um, tendo em vista que as denúncias eram muito bem-vindas ao Tribunal do Santo Ofício. A obra Dar a Alma, de Adriano Prosperi, demonstra essa intervenção do Santo Ofício na vida da mulher solteira, em busca de encontrar possíveis ocorrências de infanticídio – o qual, por sinal, era também rigidamente punido com a morte da mãe. Mais uma vez o terror das punições constando como didático, isto é, quanto pior a punição, mais claro ficaria à sociedade que as ordens impostas pela Igreja não deveriam ser violadas em qualquer hipótese. Prosperi narra que na Carolina a investigação de secretos infanticídios era extremamente invasiva no corpo feminino:

[…] bastava a presença de leite no seio ou, ainda mais, um crescimento e uma súbita normalização do ventre para que tivesse início o inquérito e fosse justificável o interrogatório com tortura. […] Uma vez comprovado, seguia-se uma punição extremamente severa[1].

A chamada “visita ginecológica” consistia na inspeção periódica do corpo das mulheres solteiras, o que revelava a desimportância da mulher, bem como o seu caráter secundário: o seu corpo não era sequer um quesito de sua própria autonomia, cabendo ao Estado e à Igreja decidir o que fazer ou não com ele.

A justificativa implicava na importância da instituição familiar para a Igreja, de modo que essa investigação seria legitimada por estar cumprindo os preceitos divinos. Foi assim que, em 1556, na França, tornou-se obrigatório informar a gravidez ao Estado. Ora, tal fato revela, e muito, a forte associação entre o Estado e a Igreja – são muitos os historiadores contemporâneos que entendem que o fim do Império Romano acarretou na perda de um sistema universal, isto é, deixou uma lacuna a ser preenchida pelos novos Estados que, por sua vez, buscavam essa universalidade na religião cristã. Assim, embora fosse uma medida imposta pelo rei Henrique II, encontrava em seu seio uma justificativa de cunho religioso, que norteava toda a sociedade da época. Aclara-se esse fato com a diferença, citada pelo autor, entre o infanticídio dentro de uma instituição familiar e o infanticídio praticado por mulheres que não eram casadas. Fato que demonstra que o condenável não era puramente o infanticídio, mas principalmente a sua prática por uma mulher que não compactuasse com o ideal de família da Igreja.

OS DELITOS DE FÉ

Como vimos, o controle social exercido pelo Santo Ofício era bastante aprimorado e qualquer ameaça a este modelo deveria ser banida de modo a não se proliferar. Esse mesmo cenário deu lugar à caça às bruxas, uma longa perseguição com históricos de tortura e matança em busca da “erradicação do mal”. Para Robert Mandrou, o sistema mental que consistia na caça às feiticeiras era constituído por três elementos básicos: uma forte crença cristã, uma experiência visível para todos do processo judiciário vigente e, por fim, sentenças, fogueiras, torturas, confissões e o que mais representasse o julgamento divino. Esses três pilares compunham satisfatoriamente a tradição da época, colaborando com a fundamentação e legitimidade do Poder Eclesiástico.

No que tange à esfera do Direito Canônico, dentre os delitos quanto à fé estavam: heresia, cisma, apostasia, blasfêmia, perjúrio, simonia, sacrilégio, magia, dentre outros[2]. Cabe, aqui, ressaltar que tais delitos dificilmente poderiam ser ocultados dos olhos dos Tribunais Eclesiásticos, uma vez que, como foi dito acima, estes dispunham de tentáculos que lhes permitiam infiltrar-se dentro da vida e da intimidade de cada um. A denúncia secreta era uma prática corrente na época, e a Inquisição apenas necessitava de um pequeno rastro, de uma pequena e aparente irregularidade, para desenvolver a sua investigação, dando continuidade ao processo.

Todas as pequenas querelas, todas as tagarelices de aldeia podem servir de base para denúncias, e para testemunhos acabrunhantes como os que se seguem: a aparência pouco atraente e a vestimenta do acusado, as extravagâncias do comportamento […] [3].

Iniciado o processo, era possível que o acusado sequer soubesse do que se tratava, uma vez que a denúncia era secreta e as provas testemunhais colhidas não lhe eram transmitidas. No entanto, algo era imprescindível: era exigida deste a confissão, a qual poderia ser obtida mediante a tortura, caso necessário. A importância da confissão estava no que esta representava o arrependimento do culpado, isto é, possibilitava demonstrar que este buscava voltar para o rebanho, do qual, vale dizer, nunca deveria ter saído. Aos olhos de hoje, pode-se discutir a possibilidade de a tortura ter ocasionado falsas confissões; entretanto, para os olhos da Igreja da época, não era por ocorrência da tortura que o acusado oferecia a confissão: para a Inquisição, se este confessava seu crime, era culpado. O princípio da presunção de inocência estava às moscas, já que quase nunca era utilizado. Evidente está que neste processo poucos dispunham de uma defesa efetiva.

COM RELAÇÃO À BRUXARIA

As ocorrências de bruxaria no final do século XII não se deram por mero acaso. A vida em uma sociedade tomada pela religiosidade fazia do dualismo Bem/Mal algo necessário ao entendimento entre o que era permitido segundo os desígnios morais/religiosos e o que era proibido. Desse modo, coube à Igreja apontar como demoníaco tudo aquilo que contestasse a sua ordem, como a prática de bruxaria. A ideia de que o Demônio estaria sempre na sociedade, pronto a provocar a tentação e o cometimento do pecado, foi acompanhada da crescente presença de bruxas, as quais estariam mancomunadas com o Mal.

Acrescenta-se que as consequências das práticas de magia, as quais em grande parte possuíam o intuito de dominar a natureza, ou mesmo de agir contrariamente a ela, dificilmente poderiam ser explicadas na época segundo a Ciência. Isso certamente corroborava com a sua condenação pela Igreja e com o juízo de que aquilo seria fruto de forças ocultas. Com relação aos objetivos dos sortilégios, esses eram os mais variados, podendo ter finalidade de adoentar, encantar, tornar colheitas improdutivas, ocasionar tempestades, provocar a impotência sexual – como nos seguintes trechos “feitiço de impotência, essa operação perversa que pretendia impedir a consumação do casamento” (MANDROU, 1979, p.68) e também “ O diabólico feitiço de impotência traduz certamente uma preocupação obsessiva largamente difundida” -, dentre muitos outros. Cabe aqui uma ressalva de que a “fama” dada pela Igreja às bruxas certamente era superior ao poder que realmente possuíam.

Pode-se dizer – não, porém, sem a devida cautela – que é possível que mulheres tidas como bruxas no período de sua perseguição pudessem ser pessoas com transtornos psíquicos, não compreendidas. Ademais, o ambiente em que viviam, no qual a superstição, a tradição e os mistérios eram demasiado presentes, também era em parte responsável por sugestionar a presença de práticas de feitiçaria. A ordem eclesiástica buscou coibir tais práticas de várias formas, sendo a fogueira uma das mais famosas. Depois de um longo processo inquisitório, constando a obtenção da sentença, a tortura, a confissão, etc., o corpo da feiticeira seria lançado ao fogo para erradicar o mal nele presente – embora valha lembrar que cada país possuía suas particularidades de como encarar os hereges. Robert Mandrou cita que, juntamente com o corpo, objetos – como livros, facas, imagens, e outros que pertencessem à bruxa – também eram queimados [4].

A caça às bruxas era facilitada pela sua denúncia, que podia ser feita sem que estas soubessem o seu delator. Nessas denúncias são frequentes os relatos concernentes às finalidades dos sortilégios, descritas aqui anteriormente.

Esses temores aldeões nutrem-se também por vezes da presunção imprudente das mulheres reputadas como feiticeiras que se gabam de seus poderes extraordinários na ocasião de uma tormenta ou de uma chuva há muito desejada. Por pouco que se fundam coincidências e rancores pessoais, os testemunhos acumulam rapidamente sobre os suspeitos todos os males: dores de rins, reumatismo, falsos partos e perdas de aves domésticas[5].

É interessante como a questão da colheita e da criação de animais é intensamente abordada nos relatos que dizem respeito à bruxaria. No caso de Elizabeth Cubon, o qual está anexado a este artigo, pode-se observar:

John Quay complained that when Elizabeth frequented Keg ny How’s house there were great losses in his cattle. As for his own crop after her visit in May, nothinge grew but oats and darnell; that he did not reape of 2 dayes plowing of barley but one bowle. Elizabeth frequented those places att the beginninge of every quarter of the yeare and that his cattle died, and since he gott an oath of her his cattle died not.

Além do caso em questão, há diversos outros em que uma queda drástica na colheita era tida como culpa das bruxas, ao passo que uma elevação na produtividade era fruto da ausência das feiticeiras; logo então se afigurava a denúncia. Ginzburg em Andarilhos do bem relata como os benandanti – tidos como os feiticeiros do bem, os quais se diziam combater em causa da fé – afirmavam aos inquisidores que, quando eram vencedores em sua luta contra as bruxas, a colheita era boa e abundante. Em contrapartida, quando estes perdiam a luta contra as bruxas, a colheita seria ruim.

Ora, qual seria a relação entre bruxaria e produtividade da colheita? Mandrou realiza um esclarecimento bastante oportuno quanto a isso. Primeiramente atesta-se que a maior parte das perseguidas era miserável, o que automaticamente elimina o benefício do confisco econômico de sua apreensão. E é justamente a miséria que nos encaminha ao segundo ponto: os rebanhos e as colheitas estavam constantemente entrando em crise, de modo que o desespero sem ter a quem pedir auxílio era recorrente. Desse modo, a atmosfera de terror criada pela própria estrutura da época contribuía com o terror gerado pela possibilidade de perda do único sustento disponível àquelas pessoas. A necessidade de acusar alguém pelas desgraças ocorridas e a imaginação condicionada pela superstição talvez tenham sido os motivos de culparem-se as bruxas.

O mito de que as bruxas possuíam o poder de se transformar em animais também era bastante difundido. O caso de Elizabeth Cubon traz várias denúncias de que esta se transformava frequentemente em uma lebre.

Two good Samaritans, Henry Maddrell, of Ballamaddrell, and William Cubbon, of Ballacubbon, stood surety for her. The main charges brought against her were that she had cast evil spells upon cattle, crops, and churning ; that she could transform herself into a hare ; and that she claimed the power to lessen or increase a man’s store.

O curioso é que o mito estava bastante disseminado, de modo que ter visto uma lebre no campo – um local perfeitamente normal para a ocorrência desse animal – era imediatamente associado à feiticeira em questão e à desgraça que adviesse em seguida. Assim, quando William Tyidesley e Mr. H. Calcott andavam e comentavam sobre Elizabeth Cubon, a égua de Mr. Calcott sofreu de um mal súbito e posteriormente faleceu. Uma minúcia oportuna: haviam avistado uma lebre durante o seu trajeto. O trecho segue:

[…]till they returned to the very selfe same place where the sd Mr. Calcott said, ‘What, doe you call Elizabeth Cubon a hare’ and there his Mare fell sick that she was not able to goe further, and was forced to leave her there and rid home behind Capt John Stanley . . . . and his sd Mare came home after but soone died.

Percebe-se que, naquele momento histórico, a relação entre o que se pensava justificar e o que de fato aquilo justificava era descoincidente: para aquela comunidade, tudo de ruim era fruto de feitiçaria. Ao analisar o caso de Elizabeth Cubon, observa-se que praticamente todos os relatos existentes contra ela são de associações míticas da acusada com acontecimentos externos – não há provas de fato que ela teria ocasionado a morte da égua, por exemplo. Entretanto, em razão de naquela época não haver melhor explicação para os acontecimentos, era cabível essa relação que se fazia.

Outro ponto interessante ao qual nos reportamos é a dificuldade, por vezes ocorrida, de a Justiça encontrar a prova dos frequentadores das cerimônias sabáticas. Uma das provas mais procuradas e satisfatórias era a marca de insensibilidade, também chamada de punctum diabolicum. Este era um sinal corpóreo que o Diabo colocaria em seus seguidores, de modo que nesse ponto o acusado não sentiria dor alguma e não correria sangue quando a agulha fosse retirada. “[…] a procura da prova faz-se […] com o concurso de médicos, de cirurgiões barbeiros que começam por raspar todo o corpo do acusado […]” (MANDROU, 1979, p.78). Era comum a ideia de que o Diabo poderia proteger os acusados para que estes não fossem descobertos, de modo que os juízes deveriam ser ainda mais espertos.

Robert Mandrou narra que um juiz responsável por um processo de feitiçaria era ocupado pelo medo de que pudesse ser enganado pelas mentiras satânicas, o que o faria desconfiar até das provas concretas; no séc. XVII, por exemplo, após uma procura interminável do punctum diabolicum, os juízes concluíram que o demônio teria interferido para ocultá-lo momentaneamente e enganar a justiça[6].

Como dito, os métodos de punição das práticas de bruxaria variavam bastante de um país para outro – enquanto um país empregava abundantemente a pena capital com relação às bruxas, outro país aplicava penas predominantemente brandas. Lynn Hunt nos conta, por exemplo, que a Grã-Bretanha tinha supostamente substituído a tortura judicial pelos júris no sec. XIII, mas a tortura ainda ocorria nos séculos XVI e XVII nos casos de sedição e feitiçaria.

Com o tempo, verificou-se que a Justiça Comum foi ocupando o lugar dos Tribunais Eclesiásticos no julgamento dessas práticas. No período de transição, em que as duas Justiças julgavam as feiticeiras, por vezes a penitência da Justiça Eclesiástica era mais branda, como se pode observar no caso de Elizabeth Cubon Kewin:

“The Sentence

Elizabeth Kewin for useing of unlawfull meanes in the nature of sorcery as appears by the foregoeing proofes is censured to doe 3 Sundayes penance in the parish churches of Kirk Malue, Kirk Arborey and KK Christ Rushen with a scheadule on her breast […]”

CONCLUSÃO

Ao longo desse breve panorama histórico relacionado a um paradigma diverso do nosso, um dos maiores desafios é o de observar a realidade daquela época a partir da neutralidade, mas sem perder a visão crítica. Ao iniciar-se este trabalho, as práticas de tortura foram caracterizadas como atrozes aos olhos atuais. O questionamento que se faz, então, é se os olhos atuais seriam os mais indicados para se entender o paradigma medieval. Frisa-se que a concepção do que constitui uma punição cruel sempre esteve intimamente associada às expectativas culturais vigentes.

Assim sendo, a tortura era encarada com grande naturalidade na Idade Média; era um instrumento de aplicação da justiça. Além disso, pode-se dizer que era, de certo modo, compatível com as rudes condições da vida medieval, de modo que a sociedade não encarava com estranheza a ocorrência de penas capitais e de tortura. Contestar as práticas vigorantes seria um ultraje, o que explica o lento processo de desuso da tortura. A Igreja provavelmente adotou a prática da tortura pelo fato de ela mesma estar inserida em um paradigma no qual esse costume era comum; ademais, a Igreja influenciava o paradigma medieval e também nele estava inserida.

Em última análise, a tortura servia indiretamente para salvar uma alma, tendo em vista que ela estava diretamente relacionada com a confissão e esta, como foi melhor explicado no trabalho, com a salvação de uma alma no plano espiritual.

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História da bruxaria

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 Quando iniciamos o estudo de algo que nos é novo, a primeira pergunta que nos vem à mente é: “de onde surgiu?”.
Portanto, nada mais correto do que usar a história da Arte como ponto de partida.
De onde veio a Wicca? Como tornou-se o que é hoje ? O que ela é hoje ?
Wicca é uma palavra do inglês arcaico que quer dizer “bruxo” (plural wicce). Há quem diga que seu significado é “sábio”, mas isso não corresponde à verdade.
A palavra tem sua origem na raiz indo-européia ‘wikk-‘, significando ‘magia’, ‘feitiçaria’. O nome Wicca é o mais usado para denominar nossa religião. Ela também é conhecida como Bruxaria, Feitiçaria, Antiga Religião e Arte dos Sábios, ou simplesmente, a Arte.
As origens da Bruxaria remontam à aurora da humanidade. Nossas crenças começaram a tomar forma no Paleolítico, há aproximadamente vinte e cinco mil anos. Neste período, o ser humano era nômade e suas principais fontes de subsistência eram a caça e a coleta. Tudo era misterioso para o homem e a mulher do paleolítico: o trovão, o sol, a escuridão… Para eles, o mundo era um lugar perigoso, cheio de forças que deveriam ser temidas, respeitadas e reverenciadas. Com o tempo, a idéia das forças foi evoluindo para a idéia de Deuses.
Um dos primeiros e, seguramente, o mais importante Deus primitivo a surgir foi o Deus de Chifres.
Para que o clã nômade sobrevivesse, uma das principais atividades era a caça: dela provinham carne para alimentar-se, peles para vestir-se, ossos e chifres para fazer instrumentos. Assim, tomou forma na mente do ser humano primitivo a idéia de um Deus das Caçadas, dotado de chifres, símbolo de seu poder. Alguns membros do clã iniciaram a prática de atividades de caráter mágico-religioso, compostos por um elemento religioso (esboços de rituais e mitos dedicados à adoração do Deus de Chifres, forças da natureza e espíritos dos antepassados) e por um elemento mágico (práticas que tentavam atrair a benevolência destas divindades e espíritos, a fim de manipulá-la para interesses práticos do clã). Neste momento estava se delineando algo que se assemelhava muito a grosso modo com um a classe sacerdotal. Estes ‘sacerdotes’ realizavam ritos do que hoje é denominado maga simpática, ou seja, práticas baseada na atração dos semelhantes. Pintavam-se cenas de membros do clã vencendo e abatendo animais cobiçados, para garantir o sucesso da próxima caçada. Miniaturas destes mesmos animais eram confeccionadas, em osso, chifre ou barro, e então simulava-se sua caça e abate. Estes ritos eram geralmente dirigidos por um destes ‘sacerdotes’, geralmente usando a primeira de todas as túnicas: peles de animais e uma máscara dotada de chifres.
Em Trois Frères, na França, existe uma pintura de doze mil anos, conhecida como “Le Sorcier” (“O Feiticeiro”). É a figura de um homem vestido de peles, com cauda e chifres de cervo. A sua volta, paredes cobertas por pinturas de animais em caçadas. A seus pés, uma saliência na rocha, constituindo um altar. Mas as caçadas não eram a única coisa que faziam o clã sobreviver. Havia um Mistério: o da fertilidade. O clã precisava continuar. De tempos em tempos, a barriga das mulheres crescia, e, ao fim de algumas luas, delas surgia um novo membro da tribo, pequeno, mas que crescia com o passar do tempo. Os animais também tinham filhotes, e isso garantia o alimento das futuras gerações. A chave de todo esse Mistério era a mulher, aquele enigmático ser que, se já não bastasse ser a única responsável pela continuação da tribo (ainda não havia a consciência da participação do homem na reprodução), também alimentava as crianças com leite de seu próprio corpo. Além disso, aquela criatura mágica vertia sangue de dentro de seu corpo em algumas ocasiões, mas mesmo assim não morria.
Todas estas constatações deram origem ao surgimento de uma Deusa da Fertilidade, uma Grande Mãe.
Figuras pré-históricas desta Deusa são incontáveis. Uma das mais famosas é a Vênus de Willendorf: seu corpo parece uma grande massa disforme da qual se destacam um gigantesco par de seios e uma proeminente barriga grávida. Ela não tem pés nem braços, e seu rosto está coberto. Estas características são comuns a várias outras ‘Vênus’ pré-históricas, e se devem à ênfase que o ser humano primitivo dava ao aspecto de fertilidade da mulher.
A Deusa era a Grande Mãe Natureza, fonte de toda a vida. Com o tempo, os homens foram se conscientizando de seu papel na reprodução, e o aspecto de fertilizador passou a ser mais um dos atributos do Deus de Chifres. Ele tornou-se filho da Deusa, pois dela era nascido, e também seu amante, pois a fertilizava para que um novo ser surgisse. A partir desta concepção, novos ritos foram adicionados às práticas mágico-religiosas, onde esculpiam-se ou pintavam-se animais ou humanos copulando, e todo o clã entregava-se ao ato sexual, já tendo recebido a graça dos Deuses.
No Neolítico, o ser humano desenvolveu a agricultura, e começou a formar aldeias e povoados. Com a descoberta das técnicas de plantio, a Deusa assumiu maior importância, passando a acumular também o aspecto de guardiã da colheita. O Deus de Chifres começou a ganhar uma nova face, a de alegre Deus das Florestas, protetor dos animais e criaturas dos bosques. Quando o homem adquiriu a noção das estações do ano, esboçaram-se as primeiras idéias sobre a Roda do Ano. Havia um período quente e fértil, onde realizavam-se as colheitas e a natureza mostrava todo seu esplendor.
Neste período, reinava a Deusa das árvores secavam e caíam e tudo parecia estar morto. O povo voltava a depender da caça para sobreviver, pois não podia viver só dos alimentos armazenados. Quem regia este período era o Deus das Caçadas, que também adquiria seu novo aspecto de Sombrio Senhor da Morte (nesta época nasceram também os primeiros conceitos sobre a vida após a morte). Surgiram então os primeiros mitos sobre a descida da Deusa ao mundo subterrâneo que, séculos mais tarde, tomaria forma definitiva na Grécia, com o mito de Perséfone, e na Mesopotâmia, com a lenda de Ishtar.
As culturas desenvolveram-se com o passar dos séculos, e novos aspectos dos Deuses foram descobertos. Cultos religiosos se estruturaram, centrados nos ciclos e nascimento, morte e renascimento da natureza. O tempo da plantação e o tempo da colheita eram muito importantes, marcados com festividades, assim como o período do recolhimento do gado e a época de sua liberação ao pasto. Nestas datas, juntamente com as de mudanças de estação, realizavam-se encenações de mitos nos quais um Deus Velho morria para um Deus Jovem nascer, representando a morte da antiga colheita e o nascimento de uma nova.
Estes cultos possibilitaram o refinamento da classe sacerdotal, que chegou ao requinte de gerar representantes como os druidas, sacerdotes celtas que encantaram os gregos e romanos com sua profunda filosofia e integração com a natureza. Sua erudição era admirável, e acumulavam funções como a de legisladores, médicos, poetas, bardos e guardiões da tradição oral. Na Grécia Antiga, floresceram os Cultos de Mistério, dos quais deve destacar-se os Ritos de Elêusis e os Mistérios Órficos. Também foram de grande importância os cultos dionisíacos. Deve-se ter em mente que estas são linhas gerais do início da bruxaria, que confunde-se com o surgimento das primeiras manifestações religiosas humanas.
O que relatei acima aconteceu, em épocas diferentes, nos mais variados lugares. É verdade que nem tudo ocorreu exatamente da mesma maneira em todos os lugares: enquanto no Crescente Fértil da Mesopotâmia nasciam avançadas civilizações, na Europa ainda vivia-se de caça e coleta. Mas o que impressiona e é importante não são as diferenças, e sim as semelhanças dos primeiros esboços de religião. Meu objetivo, com a pequena exposição acima, foi dar ao estudante noções de como foi o surgimento da idéia dos Deuses e seu desenvolvimento.
O Surgimento do Cristianismo
Ao contrário do que se pensa, o cristianismo não foi imediatamente adotado pelo povo europeu ao ser declarado religião oficial do Império Romano.
Esta conversão dos Romanos ao catolicismo teve motivos políticos, e não teve grande penetração fora dos centros urbanos. A grande massa da população permaneceu fiel a seus deuses antigos. Os cultos antigos, então, receberam a denominação pejorativa de “pagãos” (“pagani”,plural de paganu, ‘morador do campo’), por ter como foco de resistência à nova religião o povo dos campos, longe das cidades e das zonas de comércio e ensino.
Os missionários cristãos, com o tempo, passaram a ter mais aceitação nas cidades, mas continuavam sendo repelidos no campo, nas montanhas e nas regiões distantes, verdadeiros enclaves da Antiga Religião. Houve ainda uma tentativa de reativar o paganismo e o culto aos Deuses antigos como religião oficial do Império Romano.
Esta última esperança deveu-se ao Imperador Juliano (conhecido como “O Apóstata”), que reinou no século IV EC. Mas, como sabemos, essa tentativa não foi frutífera, derrubada pela própria conjuntura da época, onde já se pressentia o poder de manipulação, domínio e intriga do cristianismo, evidenciado nos séculos seguintes.
Um dos ardis utilizados pelos cristãos era o de apropriar-se de festividades pagãs como orações religiosas de sua própria religião.
Assim, por exemplo, o festival do solstício de inverno, onde se comemorava o nascimento do Deus-Sol, transformou-se no Natal cristão.
Também o festival de Samhain, comemorado em intenção dos mortos, recebeu o nome de Dia de Todos os Santos, logo seguido pelo dia de Finados.
A despeito destas tentativas, as tradições pagãs continuaram mantendo sua força. A partir de um decreto do Papa Gregório, os cristãos também se apossaram dos locais sagrados da Antiga Religião e, derrubando os templos ali existentes, erigiram suas igrejas. Os Deuses de cada santuário foram transformados em santos e santas (um exemplo é Santa Brígida, da Irlanda, na verdade a Deusa Bhríd, protetora do fogo e dos partos).
Quando os cristãos deram-se conta da importância da Deusa-Mãe para as pessoas, aumentaram a proeminência da Virgem Maria no culto cristão.
Mitos e práticas pagãs foram, sistematicamente, absorvidas, distorcidas e transformadas em ritos cristãos. Esculturas de temas pagãos foram incluídos em igrejas e capelas.
O maior exemplo de sincretismo entre costumes pagãos e cristãos é o cristianismo irlandês, que ainda hoje conserva hábitos célticos mesclados a liturgias cristãs. Os padres tinham a seu favor o tempo, o poder e a força. Os pagãos tinham que lutar sozinhos contra a profanação de seus templos, crenças e costumes. Desta maneira, o povo simples dos campos foi acostumando-se à nova religião, e gradualmente, foi sendo convertido. Mas os sacerdotes restantes da Antiga Religião não se renderam à nova ordem. Juntamente com pessoas ainda fiéis às antigas crenças, mantiveram o culto ao Deus de Chifres e à Deusa Mãe.
As crenças pagãs, enfatizando a adoração aos Deuses e a realização dos festivais de fertilidade, foram amalgamando-se à magia popular, criando a Bruxaria Européia. A magia popular consistia em um conjunto de feitiços feitos com o uso de ervas, bonecos e diversos outros meios. Estes feitiços tinham como objetivo a cura, a boa sorte, atrair amores, e fins menos nobres, como a morte de algum inimigo. São práticas desenvolvidas a partir do que restara da magia simpática pré-histórica, unidas ao conhecimento xamânico dos povos bárbaros.
Os teólogos cristãos passaram então a sustentar que a Bruxaria não existia. Assim, pretendiam terminar com a credibilidade dos bruxos e anular sua influência. Foi um período de relativa paz para a Arte. Mas logo os cristãos perceberam que seus esforços para exterminar completamente o paganismo não haviam dado resultado.
Fizeram então mais uma tentativa: transformaram o Deus de Chifres na personificação do Mal, do Antideus, do Inimigo.
A natureza dos Deuses pagãos é completamente diferente da do todo-poderoso “senhor de bondade” dos cristãos.
Nossos Deuses são quase “humanos”, pois têm características tanto ‘boas’ quanto ‘más’. A teologia cristã já pressupunha a existência de um antagonista a seu Jeová (o ‘Satan’ hebraico do Antigo Testamento e o ‘diabolos’ do Novo): um Inimigo.
Ele ainda não possuía forma definida e, quando era representado, o era em forma de serpente, como a que persuadiu Adão a comer a fruta da Árvore da Sabedoria. Dando a seu Satã a forma do Deus de Chifres (notadamente de deuses agro-pastoris como Pã e Sileno, dotados de cascos de bode e pequenos cornos), os cristãos conseguiram iniciar um clima de terror e medo em relação aos praticantes da Antiga Religião, o que os forçou a praticarem seus ritos em segredo.
Mas a era mais triste da Arte ainda estava por vir. A Era das Fogueiras.
A situação da Igreja até ao século XIII era caótica. Facções adversárias lutavam entre si, cada uma digladiando-se em favor de um dogma. Nos numerosos concílios realizados, ora, uma das facções impunham sua visão, ora outra. Isso favorecia um desmoralizante ‘entra-e-sai’ de dogmas, o que desacreditava a Igreja. Algumas destas facções também criticavam a corrupção e o jogo de poder dentro da classe sacerdotal, e levantavam dúvidas sobre o poder espiritual do papado.
Foi então criado um instrumento de repressão: o Tribunal de Santa Inquisição consistia em um corpo investigatório ignorante, brutal e preconceituoso, dirigido pela ordem dos Dominicanos.
Sua função primordial era a de acabar com as facções que se opunham a Igreja (denominadas ‘heréticas’), através do extermínio sistemático de seus membros. Exemplos destas facções ‘heréticas’ eram os cátaros, os gnósticos e os templários. Com o tempo, os cristãos perceberam outro uso para seu Tribunal. Ainda persistiam Cultos aos Deuses Antigos, e, graças a transformação do Deus de Chifres no Demônio Cristãos, eram acusados de delitos absurdos, como o canibalismo, a destruição de lavouras (acusar de tal crime uma Religião dedicada à manutenção da fertilidade das colheitas é, no mínimo, ridículo) e muitos outros. Foi então proclamada, em 1484, a Bula contra os Bruxos, pelo Papa Inocêncio VIII.
Neste documento, ele relacionava os crimes atribuídos aos bruxos e dava plenos poderes à Inquisição para prender, torturar e punir todos aqueles que fossem suspeitos do ‘crime de feitiçaria’.
Em 1486 foi publicado o Malleus Malleficarum (‘Martelo dos Feiticeiros’), escrito pelos dominicanos Kramer e Sprenger.
O livro, absurdo e miseógino, era um manual de reconhecimento e caça aos bruxos, e, principalmente, às bruxas (o livro trazia afirmações surpreendentes, como: “quando uma mulher pensa sozinha, pensa em malefícios”). A partir daí, a Igreja abandonou completamente a postura de ignorar a Bruxaria: pelo contrário, não acreditar na sua existência era considerada a maior das heresias. Iniciou-se então um período de duzentos anos de terror, conhecido entre os bruxos como “Era das Fogueiras”.
Mas os bruxos (e também os hereges e inocentes: doentes mentais, homossexuais, pessoas invejadas por poderosos, mulheres velhas e/ou solitárias) não pereciam só em fogueiras: eram também enforcados e esmagados sob pedras. Isso quando não pereciam nas torturas, as quais são tão cruéis e sádicas que não merecem nem ser mencionadas.
A Inquisição tornou-se uma válvula de escape para as neuroses da época: em época de forte repressão sexual, condenavam-se mulheres jovens, que eram despidas em frente a um grupo de ‘investigadores’, tinham todo seu corpo revistado diversas vezes, a procura de uma suposta marca do diabo’ e, por fim, eram açoitadas, marcadas a ferro e violentadas. Terminavam condenadas e executadas como bruxas. Seu crime: serem mulheres jovens, belas e invejadas. Anciãs que moravam sozinhas, geralmente em companhia de alguns animais, como gatos (daí a lenda da ligação dos gatos com as bruxas), eram alvo de desconfiança e logo declaradas ‘feiticeiras’, e assim, assassinadas.
A maioria das vítimas dos tribunais de Inquisição não eram verdadeiros praticantes da Arte, mas muitos bruxos pereceram na mão dos cristãos. Aproximadamente nove milhões de crimes como este foram cometidos durante a Inquisição, ironicamente em nome de uma religião que se dizia ‘de amor’. Nunca uma religião demonstrou tanta necessidade de exterminar seus antagonistas como o cristianismo.
A perseguição aos bruxos não resumiu-se apenas aos países católicos: espalhou-se pela Europa protestante.
Os protestantes não se guiavam pelo Malleus Malleficarum, mas davam razão à sua paranóia através do uso de uma citação do Antigo Testamento: “não deixarás que nenhum bruxo viva”.
Na Era das Fogueiras, os praticantes da Antiga Religião adotaram o único comportamento que lhes possibilitaria a sobrevivência: “foram para o subterrâneo”, ou seja, mantiveram o máximo de discrição e segredo possível.
A sabedoria pagã só era passada por tradição oral, e somente entre membros da mesma família ou vizinhos da mesma aldeia.
Como técnica de proteção, os próprios bruxos ajudaram a desacreditar sua imagem, sustentando que a Bruxaria não passava de lenda, ou disseminando idéias de bruxos como figuras cômicas e caricatas, dignas de pena e riso.
Por volta do final do século XVII, a perseguição aos bruxos foi diminuindo gradativamente, estando virtualmente extinta no século XVIII. A Bruxaria parecia, finalmente, ter morrido.
Mas os grupos de bruxos (“covens”) resistiam, escondidos nas sombras. Algo que surgiu nos primórdios da humanidade não morreria assim tão facilmente.
O Renascer da Bruxaria.
A partir da metade do século XIX, a Bruxaria tornou-se novamente objeto de discussão, graças ao renascer do interesse em mitologia, folclore e magia.
Em 1862, Jules Michelet lançou sua obra “A Feiticeira”, na qual falou sobre a sobrevivência dos cultos pagãos nas Idades Média e Moderna e sobre o surgimento paralelo do satanismo. Apesar de importante, as principais intenções de seu livro eram políticas: pretendia provar que a Bruxaria era um culto surgido nas camadas inferiores da sociedade em protesto à repressão da classe dominante.
Isso pode ser verdadeiro para o satanismo, mas não corresponde à realidade quando se trata de Bruxaria. Mas isso não diminui a importância de seu livro: sua tese da sobrevivência dos cultos pagãos influenciou o trabalho de vários antropólogos e folcloristas do final do século XIX e do início do século XX.
Um deles foi o norte-americano Charles Leland, um folclorista conhecido na época por suas pesquisas sobre cultura cigana.
Em 1899, Leland lançou um livro intitulado “Aradia, ou o Evangelho das Bruxas”. Foi a primeira obra de grande importância para o renascimento da Bruxaria no século XX. Neste livro, Leland registrava as crenças reunidas por uma bruxa toscana chamada Maddalena, que ele conhecera em uma viagem pela Itália no ano de 1866. O livro fala da vecchia religione praticada naquela região: o culto à Deusa Aradia, filha de Diana com seu irmão Lúcifer. Aradia foi la prima strega (‘a primeira bruxa’), enviada à Terra por sua mãe para ensinar as artes da feitiçaria aos humanos.
A idoneidade do livro é contestada atualmente por alguns historiadores da feitiçaria, que argumentam que Leland dirigiu sua pesquisa para enquadrar-se em suas concepções e nas idéias de Michelet. Outros dizem ainda que Maddalena traiu a boa fé do folclorista. O fato é que nada disto tira o mérito do livro, um clássico da Bruxaria moderna.
A década de 20 produziu dois importantes livros para a Bruxaria moderna: um deles foi “O Ramo de Ouro” (‘The Golden ‘Bough’), gigantesca obra do antropólogo James Frazer, versando sobre rituais de fertilidade.
As idéias que expôs em sua obra, juntamente com o conhecimento passado por Leland em ‘Aradia’ levaram a antropóloga Margaret Murray a lançar seu importante livro “O Culto de Bruxaria na Europa Ocidental” (‘The Witch-Cult in Western Europe’), em 1921. Nele Murray sustentava que a Bruxaria era uma antiqüíssima religião organizada, presente em toda a Europa, baseada no culto a um deus chifrudo da fertilidade, que ela denominou de Dianus (ela falou mais sobre ele em seu livro ‘The God of the Witches’). De acordo com ela, essa religião havia sobrevivido à perseguição e continuava com suas práticas, de maneira oculta. Muitas críticas já foram feitas à Murray, e a maioria se baseou na fraqueza de alguns de seus argumentos para defender a suposta ‘organização’ dessa religião.
Hoje sabemos que ela não era tão organizada nem praticada em tantos lugares quanto Murray sustentava, mas indubitavelmente existia um culto pagão, praticado de formas diferentes em lugares diferentes, que sobreviveu à perseguição.
Em 1948 Robert Graves escreveu sua excelente obra “A Deusa Branca” (‘The White Goddess’), no qual concordava com Murray quanto à existência de um culto pagão disseminado pela Europa, mas apoiava a tese de que sua divindade mais importante era uma Deusa-Mãe, e não o Deus de Chifres. Três anos depois, em 1951, caíram as últimas leis anti-feitiçaria da Inglaterra.
A porta estava aberta para os bruxos. Surge então Gerald Gardner, o mais importante personagem do renascimento da Bruxaria como religião. Gardner era um folclorista inglês, amigo pessoal do grande mago Aleister Crowley.
Admirador de Frazer e Murray, realizava profundas pesquisas sobre os cultos de fertilidade pré-cristãos e sua sobrevivência. No decorrer destas pesquisas, em 1939, conheceu um grupo de pessoas que mais tarde descobriu fazerem parte de um Coven secreto (como o eram todos, na época).
Gardner ficou fascinado: a existência destes bruxos confirmava as teses de Margaret Murray. Estabeleceu uma relação de amizade profunda com os membros deste Coven (denominado Coven de New Forest), e acabou por receber Iniciação.
O Coven de New Forest, dirigido por uma bruxa conhecida por ‘Old Dorothy’, era representante de uma tradição que havia sobrevivido às perseguições.
Há quem insinue que Gardner inventou o Coven para dar bases à seu trabalho posterior, e que Old Dorothy nem ao menos existiu. Essas declarações foram brilhantemente refutadas com evidências históricas por Doreen Valiente, no ensaio “Em Busca de Old Dorothy”, publicado no livro ‘The Witches’ Way”(‘O Caminho dos Bruxos’), do casal Janet e Stewart Farrar.
Com o passar do tempo, Gardner preocupou-se com o futuro da Tradição, pois todos os membros do Coven eram idosos, e não havia previsão de aceitar novos iniciados. Ele não aceitou esse destino, e pediu permissão para publicar algumas práticas da religião. Relutantes, os Sábios do Coven negaram. Mesmo assim, Gardner publicou, em 1948, “High Magic’s Aid”, um romance no qual descrevia, sutilmente, alguns rituais da Arte. A publicação do livro causou polêmica entre o Coven de New Forest, e Gardner quase foi banido. Mas, com a queda das leis anti-feitiçaria, os Sábios do Coven reviram sua posição e deram permissão a Gardner para afirmar que a Bruxaria estava viva, desde que não revelasse nenhum segredo.
Então, em 1954, Gerald Gardner publicou o primeiro livro da Bruxaria Moderna: “Witchcraft Today”, seguido de “The Meaning of Witchcraft”(1959). Neles, Gardner afirmava estarem certas as teorias de Murray, pois ele mesmo era um bruxo iniciado.
Os livros falavam apenas superficialmente sobre a Tradição que lhe havia sido confiada, concentrando-se mais no aspecto histórico da religião. Paralelamente à publicação dos livros, Gardner saiu do Coven de New Forest e iniciou seu próprio Coven, iniciando pessoas que lhe pareciam sinceras e dedicadas. A essas pessoas, transmitia integralmente o conteúdo de um manuscrito, por ele denominado de “Livro das Sombras”. Este livro continha integralmente a Tradição do Coven de New Forest, mesclada a práticas mágicas retiradas da Clavícula de Salomão e dos escritos de Crowley. Seu conteúdo, copiado por todo iniciado, passou a ser denominado de Tradição Gardneriana, a primeira Tradição da Bruxaria Moderna. O ‘Livro das Sombras’ Gardneriano teve três versões, conhecidas pelas letras A, B e C. O texto que é utilizado atualmente pelos Covens Gardnerianos é o C, escrito por Gardner em conjunto com uma de suas iniciadas, Doreen Valiente, responsável por grandes mudanças no texto original.
Valiente “paganizou” ao máximo os ritos e textos, retirando qualquer influência de magia judaico-cristã ou textos escritos por Crowley.
Atualmente, a Gardneriana é a mais sigilosa de todas as Tradições modernas. Gardner morreu em 1964, e o comando de seus Covens foi passado à Monique Wilson, conhecida como Lady Olwen.
Na década de 60, surgiu outro personagem importante na história moderna da Arte: Alex Sanders, que recebeu o título de “Rei dos Bruxos”. Sanders era um grande interessado em bruxaria, que nunca havia conseguido ingressar em um dos Covens Gardnerianos.
De algum modo que até hoje não está bem esclarecido, conseguiu tomar posse de um ‘Livro das Sombras’ Gardneriano. Uniu o conhecimento do livro (provavelmente cópia do texto A) ao que afirmava ter sido transmitido por sua avó, uma bruxa familiar.
    Sanders possuía um temperamento completamente antagônico ao de Gardner. Era um especialista em marketing pessoal, o que lhe deu extrema notoriedade. Milhares de pessoas foram iniciadas em seus Covens, e ele aparecia em entrevistas em TV, rádio e jornais. Era tão público que foi ameaçado de maldição por bruxos mais tradicionais, temendo que ele revelasse algum grande segredo da Arte. Mas isto nunca ocorreu: Sanders era um “show-man”, mas não era burro.
A Tradição Alexandriana, fundada por Alex Sanders, é muito semelhante à Gardneriana. Sua principal diferença é a maior ênfase mágico-cabalística, quase inexistente na Tradição de Gardner. Sanders morreu em 1988, mas sua Tradição é uma das mais difundidas no mundo.
Existe também uma Tradição moderna denominada Alexandriana-Gardneriana (Al-Gard), que tenta conciliar os ensinamentos de ambas, com a inclusão de novos elementos, em sua maioria de origem céltica.
Os maiores representantes públicos atuais da Al-Gard são Janet e Stewart Farrar, da Irlanda.
Nos EUA, o primeiro bruxo a se manifestar publicamente foi o anglo-gitano Raymond Buckland, iniciado por Gardner e Lady Olwen.
Considerado pelo próprio Gardner um de seus herdeiros, Buckland migrou para os Estados Unidos logo após a morte do bruxo. Lá, ganhou notoriedade por seus livros sobre Ocultismo e por ser o fundador da Tradição Saxônica da Bruxaria, a Seax-Wica.
Nos Estados Unidos, com raras exceções, a Arte ganhou um novo aspecto, inexistente na Bruxaria Européia: o aspecto político. A Bruxaria uniu-se ao feminismo para gerar uma nova forma da Religião. Surgiram então Covens denominados “Diânicos”, formados só por bruxas.
Algumas das representantes da Bruxaria feminista americana são Starwahk, Zsuzsana Budapest e Laurie Cabot. Com exceção da primeira, nenhuma delas é levada muito a sério pelos bruxos tradicionalistas europeus, que julgam-nas produtoras de distorções no verdadeiro espírito da Arte.
(Artigo originalmente escrito para instrução reservada de alunos. (…)A reprodução por qualquer meio é livre (…): 1993, Daniel Pellizzari.)
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