Quando iniciamos o estudo de algo que nos é novo, a primeira pergunta que nos vem à mente é: “de onde surgiu?”.
Portanto, nada mais correto do que usar a história da Arte como ponto de partida.
De onde veio a
Wicca? Como tornou-se o que é hoje ? O que ela é hoje ?
Wicca é uma palavra do inglês arcaico que quer dizer “
bruxo” (plural wicce). Há quem diga que seu significado é “sábio”, mas isso não corresponde à verdade.
A palavra tem sua origem na raiz indo-européia ‘wikk-‘, significando ‘magia’, ‘
feitiçaria’. O nome
Wicca é o mais usado para denominar nossa religião. Ela também é conhecida como
Bruxaria,
Feitiçaria, Antiga Religião e Arte dos Sábios, ou simplesmente, a Arte.
As origens da
Bruxaria remontam à aurora da humanidade. Nossas crenças começaram a tomar forma no Paleolítico, há aproximadamente vinte e cinco mil anos. Neste período, o ser humano era nômade e suas principais fontes de subsistência eram a caça e a coleta. Tudo era misterioso para o homem e a mulher do paleolítico: o trovão, o sol, a escuridão… Para eles, o mundo era um lugar perigoso, cheio de forças que deveriam ser temidas, respeitadas e reverenciadas. Com o tempo, a idéia das forças foi evoluindo para a idéia de
Deuses.
Um dos primeiros e, seguramente, o mais importante
Deus primitivo a surgir foi o
Deus de Chifres.
Para que o clã nômade sobrevivesse, uma das principais atividades era a caça: dela provinham carne para alimentar-se, peles para vestir-se, ossos e chifres para fazer instrumentos. Assim, tomou forma na mente do ser humano primitivo a idéia de um
Deus das Caçadas, dotado de chifres, símbolo de seu poder. Alguns membros do clã iniciaram a prática de atividades de caráter mágico-religioso, compostos por um elemento religioso (esboços de rituais e
mitos dedicados à adoração do
Deus de Chifres, forças da natureza e espíritos dos antepassados) e por um elemento mágico (práticas que tentavam atrair a benevolência destas
divindades e espíritos, a fim de manipulá-la para interesses práticos do clã). Neste momento estava se delineando algo que se assemelhava muito a grosso modo com um a classe sacerdotal. Estes ‘sacerdotes’ realizavam ritos do que hoje é denominado
maga simpática, ou seja, práticas baseada na atração dos semelhantes. Pintavam-se cenas de membros do clã vencendo e abatendo animais cobiçados, para garantir o sucesso da próxima caçada. Miniaturas destes mesmos animais eram confeccionadas, em osso, chifre ou barro, e então simulava-se sua caça e abate. Estes ritos eram geralmente dirigidos por um destes ‘sacerdotes’, geralmente usando a primeira de todas as túnicas: peles de animais e uma máscara dotada de chifres.
Em Trois Frères, na França, existe uma pintura de doze mil anos, conhecida como “Le Sorcier” (“O
Feiticeiro”). É a figura de um homem vestido de peles, com cauda e chifres de cervo. A sua volta, paredes cobertas por pinturas de animais em caçadas. A seus pés, uma saliência na rocha, constituindo um altar. Mas as caçadas não eram a única coisa que faziam o clã sobreviver. Havia um Mistério: o da fertilidade. O clã precisava continuar. De tempos em tempos, a barriga das mulheres crescia, e, ao fim de algumas luas, delas surgia um novo membro da tribo, pequeno, mas que crescia com o passar do tempo. Os animais também tinham filhotes, e isso garantia o alimento das futuras gerações. A chave de todo esse Mistério era a mulher, aquele enigmático ser que, se já não bastasse ser a única responsável pela continuação da tribo (ainda não havia a consciência da participação do homem na reprodução), também alimentava as crianças com leite de seu próprio corpo. Além disso, aquela criatura mágica vertia sangue de dentro de seu corpo em algumas ocasiões, mas mesmo assim não morria.
Todas estas constatações deram origem ao surgimento de uma
Deusa da Fertilidade, uma Grande Mãe.
Figuras pré-históricas desta
Deusa são incontáveis. Uma das mais famosas é a Vênus de Willendorf: seu corpo parece uma grande massa disforme da qual se destacam um gigantesco par de seios e uma proeminente barriga grávida. Ela não tem pés nem braços, e seu
rosto está coberto. Estas características
são comuns a várias outras ‘Vênus’ pré-históricas, e se devem à ênfase que o ser humano primitivo dava ao aspecto de fertilidade da mulher.
A
Deusa era a Grande Mãe Natureza, fonte de toda a vida. Com o tempo, os homens foram se conscientizando de seu papel na reprodução, e o aspecto de fertilizador passou a ser mais um dos atributos do
Deus de Chifres. Ele tornou-se filho da
Deusa, pois dela era nascido, e também seu amante, pois a fertilizava para que um novo ser surgisse. A partir desta concepção, novos ritos foram adicionados às práticas mágico-religiosas, onde esculpiam-se ou pintavam-se animais ou humanos copulando, e todo o clã entregava-se ao ato sexual, já tendo recebido a graça dos
Deuses.
No Neolítico, o ser humano desenvolveu a agricultura, e começou a formar aldeias e povoados. Com a descoberta das técnicas de plantio, a
Deusa assumiu maior importância, passando a acumular também o aspecto de guardiã da colheita. O
Deus de Chifres começou a ganhar uma nova face, a de alegre
Deus das Florestas, protetor dos animais e criaturas dos bosques. Quando o homem adquiriu a noção das estações do ano, esboçaram-se as primeiras idéias sobre a Roda do Ano. Havia um período quente e fértil, onde realizavam-se as colheitas e a natureza mostrava todo seu esplendor.
Neste período, reinava a
Deusa das árvores secavam e caíam e tudo parecia estar morto. O povo voltava a depender da caça para sobreviver, pois não podia viver só dos alimentos armazenados. Quem regia este período era o
Deus das Caçadas, que também adquiria seu novo aspecto de Sombrio Senhor da Morte (nesta época nasceram também os primeiros conceitos sobre a vida após a morte). Surgiram então os primeiros
mitos sobre a descida da
Deusa ao mundo subterrâneo que, séculos mais tarde, tomaria forma definitiva na Grécia, com o
mito de Perséfone, e na Mesopotâmia, com a lenda de Ishtar.
As culturas desenvolveram-se com o passar dos séculos, e novos aspectos dos
Deuses foram descobertos. Cultos religiosos se estruturaram, centrados nos ciclos e nascimento, morte e renascimento da natureza. O tempo da plantação e o tempo da colheita eram muito importantes, marcados com festividades, assim como o período do recolhimento do gado e a época de sua liberação ao pasto. Nestas datas, juntamente com as de mudanças de estação, realizavam-se encenações de
mitos nos quais um
Deus Velho morria para um
Deus Jovem nascer, representando a morte da antiga colheita e o nascimento de uma nova.
Estes cultos possibilitaram o refinamento da classe sacerdotal, que chegou ao requinte de gerar representantes como os druidas, sacerdotes celtas que encantaram os gregos e romanos com sua profunda filosofia e integração com a natureza. Sua erudição era admirável, e acumulavam funções como a de legisladores, médicos, poetas, bardos e guardiões da tradição oral. Na Grécia Antiga, floresceram os Cultos de Mistério, dos quais deve destacar-se os Ritos de Elêusis e os Mistérios Órficos. Também foram de grande importância os cultos dionisíacos. Deve-se ter em mente que estas
são linhas gerais do início da
bruxaria, que confunde-se com o surgimento das primeiras manifestações religiosas humanas.
O que relatei acima aconteceu, em épocas diferentes, nos mais variados lugares. É verdade que nem tudo ocorreu exatamente da mesma maneira em todos os lugares: enquanto no Crescente Fértil da Mesopotâmia nasciam avançadas civilizações, na Europa ainda vivia-se de caça e coleta. Mas o que impressiona e é importante não
são as diferenças, e sim as semelhanças dos primeiros esboços de religião. Meu objetivo, com a pequena exposição acima, foi dar ao estudante noções de como foi o surgimento da idéia dos
Deuses e seu desenvolvimento.
O Surgimento do Cristianismo
Ao contrário do que se pensa, o cristianismo não foi imediatamente adotado pelo povo europeu ao ser declarado religião oficial do Império Romano.
Esta conversão dos Romanos ao catolicismo teve motivos políticos, e não teve grande penetração fora dos centros urbanos. A grande massa da população permaneceu fiel a seus
deuses antigos. Os cultos antigos, então, receberam a denominação pejorativa de “pagãos” (“pagani”,plural de paganu, ‘morador do campo’), por ter como foco de resistência à nova religião o povo dos campos, longe das cidades e das zonas de comércio e ensino.
Os missionários cristãos, com o tempo, passaram a ter mais aceitação nas cidades, mas continuavam sendo repelidos no campo, nas montanhas e nas regiões distantes, verdadeiros enclaves da Antiga Religião. Houve ainda uma tentativa de reativar o paganismo e o culto aos
Deuses antigos como religião oficial do Império Romano.
Esta última esperança deveu-se ao Imperador Juliano (conhecido como “O Apóstata”), que reinou no século IV EC. Mas, como sabemos, essa tentativa não foi frutífera, derrubada pela própria conjuntura da época, onde já se pressentia o poder de manipulação, domínio e intriga do cristianismo, evidenciado nos séculos seguintes.
Um dos ardis utilizados pelos cristãos era o de apropriar-se de festividades pagãs como
orações religiosas de sua própria religião.
Assim, por exemplo, o festival do solstício de inverno, onde se comemorava o nascimento do
Deus-Sol, transformou-se no Natal cristão.
Também o festival de Samhain, comemorado em intenção dos mortos, recebeu o nome de Dia de Todos os
Santos, logo seguido pelo dia de Finados.
A despeito destas tentativas, as tradições pagãs continuaram mantendo sua força. A partir de um decreto do Papa Gregório, os cristãos também se apossaram dos locais sagrados da Antiga Religião e, derrubando os templos ali existentes, erigiram suas igrejas. Os
Deuses de cada santuário foram transformados em
santos e
santas (um exemplo é
Santa Brígida, da Irlanda, na verdade a
Deusa Bhríd, protetora do fogo e dos partos).
Quando os cristãos deram-se conta da importância da
Deusa-Mãe para as pessoas, aumentaram a proeminência da Virgem Maria no culto cristão.
Mitos e práticas pagãs foram, sistematicamente, absorvidas, distorcidas e transformadas em ritos cristãos. Esculturas de temas pagãos foram incluídos em igrejas e capelas.
O maior exemplo de sincretismo entre costumes pagãos e cristãos é o cristianismo irlandês, que ainda hoje conserva hábitos célticos mesclados a liturgias cristãs. Os padres tinham a seu favor o tempo, o poder e a força. Os pagãos tinham que lutar sozinhos contra a profanação de seus templos, crenças e costumes. Desta maneira, o povo simples dos campos foi acostumando-se à nova religião, e gradualmente, foi sendo convertido. Mas os sacerdotes restantes da Antiga Religião não se renderam à nova ordem. Juntamente com pessoas ainda fiéis às antigas crenças, mantiveram o culto ao
Deus de Chifres e à
Deusa Mãe.
As crenças pagãs, enfatizando a adoração aos
Deuses e a realização dos festivais de fertilidade, foram amalgamando-se à magia popular, criando a
Bruxaria Européia. A magia popular consistia em um conjunto de
feitiços feitos com o uso de ervas, bonecos e diversos outros meios. Estes
feitiços tinham como objetivo a cura, a boa sorte, atrair amores, e fins menos nobres, como a morte de algum inimigo.
São práticas desenvolvidas a partir do que restara da magia simpática pré-histórica, unidas ao conhecimento xamânico dos povos bárbaros.
Os teólogos cristãos passaram então a sustentar que a
Bruxaria não existia. Assim, pretendiam terminar com a credibilidade dos
bruxos e anular sua influência. Foi um período de relativa paz para a Arte. Mas logo os cristãos perceberam que seus esforços para exterminar completamente o paganismo não haviam dado resultado.
Fizeram então mais uma tentativa: transformaram o
Deus de Chifres na personificação do Mal, do Antideus, do Inimigo.
A natureza dos
Deuses pagãos é completamente diferente da do todo-poderoso “senhor de bondade” dos cristãos.
Nossos
Deuses são quase “humanos”, pois têm características tanto ‘boas’ quanto ‘más’. A teologia cristã já pressupunha a existência de um antagonista a seu Jeová (o ‘Satan’ hebraico do Antigo Testamento e o ‘diabolos’ do Novo): um Inimigo.
Ele ainda não possuía forma definida e, quando era representado, o era em forma de serpente, como a que persuadiu Adão a comer a fruta da Árvore da Sabedoria. Dando a seu Satã a forma do
Deus de Chifres (notadamente de
deuses agro-pastoris como Pã e Sileno, dotados de cascos de bode e pequenos cornos), os cristãos conseguiram iniciar um clima de terror e medo em relação aos praticantes da Antiga Religião, o que os forçou a praticarem seus ritos em segredo.
Mas a era mais triste da Arte ainda estava por vir. A Era das Fogueiras.
A situação da Igreja até ao século XIII era caótica. Facções adversárias lutavam entre si, cada uma digladiando-se em favor de um dogma. Nos numerosos concílios realizados, ora, uma das facções impunham sua visão, ora outra. Isso favorecia um desmoralizante ‘entra-e-sai’ de dogmas, o que desacreditava a Igreja. Algumas destas facções também criticavam a corrupção e o jogo de poder dentro da classe sacerdotal, e levantavam dúvidas sobre o poder espiritual do papado.
Foi então criado um instrumento de repressão: o Tribunal de
Santa Inquisição consistia em um corpo investigatório ignorante, brutal e preconceituoso, dirigido pela ordem dos Dominicanos.
Sua função primordial era a de acabar com as facções que se opunham a Igreja (denominadas ‘heréticas’), através do extermínio sistemático de seus membros. Exemplos destas facções ‘heréticas’ eram os cátaros, os gnósticos e os templários. Com o tempo, os cristãos perceberam outro uso para seu Tribunal. Ainda persistiam Cultos aos
Deuses Antigos, e, graças a transformação do
Deus de Chifres no Demônio Cristãos, eram acusados de delitos absurdos, como o canibalismo, a destruição de lavouras (acusar de tal crime uma Religião dedicada à manutenção da fertilidade das colheitas é, no mínimo, ridículo) e muitos outros. Foi então proclamada, em 1484, a Bula contra os
Bruxos, pelo Papa Inocêncio VIII.
Neste documento, ele relacionava os crimes atribuídos aos
bruxos e dava plenos poderes à Inquisição para prender, torturar e punir todos aqueles que fossem suspeitos do ‘crime de
feitiçaria’.
Em 1486 foi publicado o Malleus Malleficarum (‘Martelo dos Feiticeiros’), escrito pelos dominicanos Kramer e Sprenger.
O livro, absurdo e miseógino, era um manual de reconhecimento e caça aos
bruxos, e, principalmente, às
bruxas (o livro trazia afirmações surpreendentes, como: “quando uma mulher pensa sozinha, pensa em malefícios”). A partir daí, a Igreja abandonou completamente a postura de ignorar a
Bruxaria: pelo contrário, não acreditar na sua existência era considerada a maior das heresias. Iniciou-se então um período de duzentos anos de terror, conhecido entre os
bruxos como “Era das Fogueiras”.
Mas os
bruxos (e também os hereges e inocentes: doentes mentais, homossexuais, pessoas invejadas por poderosos, mulheres velhas e/ou solitárias) não pereciam só em fogueiras: eram também enforcados e esmagados sob pedras. Isso quando não pereciam nas torturas, as quais
são tão cruéis e sádicas que não merecem nem ser mencionadas.
A Inquisição tornou-se uma válvula de escape para as neuroses da época: em época de forte repressão sexual, condenavam-se mulheres jovens, que eram despidas em frente a um grupo de ‘investigadores’, tinham todo seu corpo revistado diversas vezes, a procura de uma suposta marca do diabo’ e, por fim, eram açoitadas, marcadas a ferro e violentadas. Terminavam condenadas e executadas como
bruxas. Seu crime: serem mulheres jovens, belas e invejadas. Anciãs que moravam sozinhas, geralmente em companhia de alguns animais, como gatos (daí a lenda da ligação dos gatos com as
bruxas), eram alvo de desconfiança e logo declaradas ‘feiticeiras’, e assim, assassinadas.
A maioria das vítimas dos tribunais de Inquisição não eram verdadeiros praticantes da Arte, mas muitos
bruxos pereceram na mão dos cristãos. Aproximadamente nove milhões de crimes como este foram cometidos durante a Inquisição, ironicamente em nome de uma religião que se dizia ‘de amor’. Nunca uma religião demonstrou tanta necessidade de exterminar seus antagonistas como o cristianismo.
A perseguição aos
bruxos não resumiu-se apenas aos países católicos: espalhou-se pela Europa protestante.
Os protestantes não se guiavam pelo Malleus Malleficarum, mas davam razão à sua paranóia através do uso de uma citação do Antigo Testamento: “não deixarás que nenhum
bruxo viva”.
Na Era das Fogueiras, os praticantes da Antiga Religião adotaram o único comportamento que lhes possibilitaria a sobrevivência: “foram para o subterrâneo”, ou seja, mantiveram o máximo de discrição e segredo possível.
A sabedoria pagã só era passada por tradição oral, e somente entre membros da mesma família ou vizinhos da mesma aldeia.
Como técnica de proteção, os próprios
bruxos ajudaram a desacreditar sua imagem, sustentando que a
Bruxaria não passava de lenda, ou disseminando idéias de
bruxos como figuras cômicas e caricatas, dignas de pena e riso.
Por volta do final do século XVII, a perseguição aos
bruxos foi diminuindo gradativamente, estando virtualmente extinta no século XVIII. A
Bruxaria parecia, finalmente, ter morrido.
Mas os grupos de
bruxos (“covens”) resistiam, escondidos nas sombras. Algo que surgiu nos primórdios da humanidade não morreria assim tão facilmente.
A partir da metade do século XIX, a
Bruxaria tornou-se novamente objeto de discussão, graças ao renascer do interesse em
mitologia, folclore e magia.
Em 1862, Jules Michelet lançou sua obra “A
Feiticeira”, na qual falou sobre a sobrevivência dos cultos pagãos nas Idades Média e Moderna e sobre o surgimento paralelo do satanismo. Apesar de importante, as principais intenções de seu livro eram políticas: pretendia provar que a
Bruxaria era um culto surgido nas camadas inferiores da sociedade em protesto à repressão da classe dominante.
Isso pode ser verdadeiro para o satanismo, mas não corresponde à realidade quando se trata de
Bruxaria. Mas isso não diminui a importância de seu livro: sua tese da sobrevivência dos cultos pagãos influenciou o
trabalho de vários antropólogos e folcloristas do final do século XIX e do início do século XX.
Um deles foi o norte-americano Charles Leland, um folclorista conhecido na época por suas pesquisas sobre cultura cigana.
Em 1899, Leland lançou um livro intitulado “Aradia, ou o Evangelho das
Bruxas”. Foi a primeira obra de grande importância para o renascimento da
Bruxaria no século XX. Neste livro, Leland registrava as crenças reunidas por uma
bruxa toscana chamada Maddalena, que ele conhecera em uma viagem pela Itália no ano de 1866. O livro fala da
vecchia religione praticada naquela região: o culto à
Deusa Aradia, filha de Diana com seu irmão Lúcifer. Aradia foi la
prima strega (‘a primeira
bruxa’), enviada à Terra por sua mãe para ensinar as artes da
feitiçaria aos humanos.
A idoneidade do livro é contestada atualmente por alguns historiadores da
feitiçaria, que argumentam que Leland dirigiu sua pesquisa para enquadrar-se em suas concepções e nas idéias de Michelet. Outros dizem ainda que Maddalena traiu a boa fé do folclorista. O fato é que nada disto tira o mérito do livro, um clássico da
Bruxaria moderna.
A década de 20 produziu dois importantes livros para a
Bruxaria moderna: um deles foi “O Ramo de Ouro” (‘The Golden ‘Bough’), gigantesca obra do antropólogo James Frazer, versando sobre rituais de fertilidade.
As idéias que expôs em sua obra, juntamente com o conhecimento passado por Leland em ‘Aradia’ levaram a antropóloga Margaret Murray a lançar seu importante livro “O Culto de
Bruxaria na Europa Ocidental” (‘The Witch-Cult in Western Europe’), em 1921. Nele Murray sustentava que a
Bruxaria era uma antiqüíssima religião organizada, presente em toda a Europa, baseada no culto a um
deus chifrudo da fertilidade, que ela denominou de Dianus (ela falou mais sobre ele em seu livro ‘The God of the Witches’). De acordo com ela, essa religião havia sobrevivido à perseguição e continuava com suas práticas, de maneira oculta. Muitas críticas já foram feitas à Murray, e a maioria se baseou na fraqueza de alguns de seus argumentos para defender a suposta ‘organização’ dessa religião.
Hoje sabemos que ela não era tão organizada nem praticada em tantos lugares quanto Murray sustentava, mas indubitavelmente existia um culto pagão, praticado de formas diferentes em lugares diferentes, que sobreviveu à perseguição.
Em 1948 Robert Graves escreveu sua excelente obra “A
Deusa Branca” (‘The White Goddess’), no qual concordava com Murray quanto à existência de um culto pagão disseminado pela Europa, mas apoiava a tese de que sua
divindade mais importante era uma
Deusa-Mãe, e não o
Deus de Chifres. Três anos depois, em 1951, caíram as últimas leis anti-
feitiçaria da Inglaterra.
A porta estava aberta para os
bruxos. Surge então Gerald Gardner, o mais importante personagem do renascimento da
Bruxaria como religião. Gardner era um folclorista inglês, amigo pessoal do grande
mago Aleister Crowley.
Admirador de Frazer e Murray, realizava profundas pesquisas sobre os cultos de fertilidade pré-cristãos e sua sobrevivência. No decorrer destas pesquisas, em 1939, conheceu um grupo de pessoas que mais tarde descobriu fazerem parte de um Coven secreto (como o eram todos, na época).
Gardner ficou fascinado: a existência destes
bruxos confirmava as teses de Margaret Murray. Estabeleceu uma relação de amizade profunda com os membros deste Coven (denominado Coven de New Forest), e acabou por receber Iniciação.
O Coven de New Forest, dirigido por uma
bruxa conhecida por ‘Old Dorothy’, era representante de uma tradição que havia sobrevivido às perseguições.
Há quem insinue que Gardner inventou o Coven para dar bases à seu
trabalho posterior, e que Old Dorothy nem ao menos existiu. Essas declarações foram brilhantemente refutadas com evidências históricas por Doreen Valiente, no ensaio “Em Busca de Old Dorothy”, publicado no livro ‘The Witches’ Way”(‘O Caminho dos
Bruxos’), do casal Janet e Stewart Farrar.
Com o passar do tempo, Gardner preocupou-se com o futuro da Tradição, pois todos os membros do Coven eram idosos, e não havia
previsão de aceitar novos iniciados. Ele não aceitou esse destino, e pediu permissão para publicar algumas práticas da religião. Relutantes, os Sábios do Coven negaram. Mesmo assim, Gardner publicou, em 1948, “High Magic’s Aid”, um romance no qual descrevia, sutilmente, alguns rituais da Arte. A publicação do livro causou polêmica entre o Coven de New Forest, e Gardner quase foi banido. Mas, com a queda das leis anti-
feitiçaria, os Sábios do Coven reviram sua posição e deram permissão a Gardner para afirmar que a
Bruxaria estava viva, desde que não revelasse nenhum segredo.
Então, em 1954, Gerald Gardner publicou o primeiro livro da
Bruxaria Moderna: “Witchcraft Today”, seguido de “The Meaning of Witchcraft”(1959). Neles, Gardner afirmava estarem certas as teorias de Murray, pois ele mesmo era um
bruxo iniciado.
Os livros falavam apenas superficialmente sobre a Tradição que lhe havia sido confiada, concentrando-se mais no aspecto histórico da religião. Paralelamente à publicação dos livros, Gardner saiu do Coven de New Forest e iniciou seu próprio Coven, iniciando pessoas que lhe pareciam sinceras e dedicadas. A essas pessoas, transmitia integralmente o conteúdo de um manuscrito, por ele denominado de “Livro das Sombras”. Este livro continha integralmente a Tradição do Coven de New Forest, mesclada a práticas mágicas retiradas da Clavícula de Salomão e dos escritos de Crowley. Seu conteúdo, copiado por todo iniciado, passou a ser denominado de Tradição Gardneriana, a primeira Tradição da
Bruxaria Moderna. O ‘Livro das Sombras’ Gardneriano teve três versões, conhecidas pelas letras A, B e C. O texto que é utilizado atualmente pelos Covens Gardnerianos é o C, escrito por Gardner em conjunto com uma de suas iniciadas, Doreen Valiente, responsável por grandes mudanças no texto original.
Valiente “paganizou” ao máximo os ritos e textos, retirando qualquer influência de magia judaico-cristã ou textos escritos por Crowley.
Atualmente, a Gardneriana é a mais sigilosa de todas as Tradições modernas. Gardner morreu em 1964, e o comando de seus Covens foi passado à Monique Wilson, conhecida como Lady Olwen.
Na década de 60, surgiu outro personagem importante na história moderna da Arte: Alex Sanders, que recebeu o título de “Rei dos
Bruxos”. Sanders era um grande interessado em
bruxaria, que nunca havia conseguido ingressar em um dos Covens Gardnerianos.
De algum modo que até hoje não está bem esclarecido, conseguiu tomar posse de um ‘Livro das Sombras’ Gardneriano. Uniu o conhecimento do livro (provavelmente cópia do texto A) ao que afirmava ter sido transmitido por sua avó, uma
bruxa familiar.
Sanders possuía um temperamento completamente antagônico ao de Gardner. Era um especialista em marketing pessoal, o que lhe deu extrema notoriedade. Milhares de pessoas foram iniciadas em seus Covens, e ele aparecia em entrevistas em TV, rádio e jornais. Era tão público que foi ameaçado de maldição por
bruxos mais tradicionais, temendo que ele revelasse algum grande segredo da Arte. Mas isto nunca ocorreu: Sanders era um “show-man”, mas não era burro.
A Tradição Alexandriana, fundada por Alex Sanders, é muito semelhante à Gardneriana. Sua principal diferença é a maior ênfase mágico-cabalística, quase inexistente na Tradição de Gardner. Sanders morreu em 1988, mas sua Tradição é uma das mais difundidas no mundo.
Existe também uma Tradição moderna denominada Alexandriana-Gardneriana (Al-Gard), que tenta conciliar os ensinamentos de ambas, com a inclusão de novos elementos, em sua maioria de origem céltica.
Os maiores representantes públicos atuais da Al-Gard
são Janet e Stewart Farrar, da Irlanda.
Nos EUA, o primeiro
bruxo a se manifestar publicamente foi o anglo-gitano Raymond Buckland, iniciado por Gardner e Lady Olwen.
Considerado pelo próprio Gardner um de seus herdeiros, Buckland migrou para os Estados Unidos logo após a morte do
bruxo. Lá, ganhou notoriedade por seus livros sobre
Ocultismo e por ser o fundador da Tradição Saxônica da
Bruxaria, a Seax-Wica.
Nos Estados Unidos, com raras exceções, a Arte ganhou um novo aspecto, inexistente na
Bruxaria Européia: o aspecto político. A
Bruxaria uniu-se ao feminismo para gerar uma nova forma da Religião. Surgiram então Covens denominados “Diânicos”, formados só por
bruxas.
Algumas das representantes da
Bruxaria feminista americana
são Starwahk, Zsuzsana Budapest e Laurie Cabot. Com exceção da primeira, nenhuma delas é levada muito a sério pelos
bruxos tradicionalistas europeus, que julgam-nas produtoras de distorções no verdadeiro espírito da Arte.
(Artigo originalmente escrito para instrução reservada de alunos. (…)A reprodução por qualquer meio é livre (…): 1993, Daniel Pellizzari.)
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